Há uma certa mania na literatura de falar-se no suicídio, por outro lado, em tantos outros lugares este impõe-se como um limite, um tenebroso tabu. É difícil encontrar menção senão de forma velada ao tema nos jornais, e persiste uma certa vergonha em relação a esse acto tão definitivo, o qual não se consegue estancar por constituir uma espécie de epidemia secreta que se reveste, amiúde, de um conteúdo moral, atingindo o fundamento da existência, o desejo de viver outro dia, persistir entre os vivos. Ainda que seja uma das principais causas de morte no mundo, poucos se atrevem a dar atenção ao tema, mesmo ou sobretudo nas alturas em que parece estar a ganhar expressão, e por receio de piorar as coisas. Resta à literatura e à filosofia indagar no profundo enigma psicológico das mortes por imitação, como se tantos fossem encorajados pela revelação de que há outros para quem o suicídio se oferece como uma solução. Mas depois é como se também residisse entre quem fica uma espécie de culpa, algo que obriga a um processo de exoneração da família e dos amigos mais próximos. Seja como for, mesmo se os vínculos solidários na nossa sociedade têm vindo a ser enfraquecidos, esse estranho estigma persiste e indicia um conjunto de aspectos nas sociedades actuais que parecem conduzir um número cada vez maior de pessoas à depressão e ao desespero mais profundos, estando a aumentar o número de pessoas que sofrem de perturbações mentais. Nas últimas décadas, um número bastante expressivo de pensadores tem rastreado a ligação entre “o flagelo na saúde mental” e a pressão provocada por esta sociedade da fantasia empreendedora. Mark Fisher é um dos autores que dedicou os últimos anos da sua vida, antes de ceder por fim a esse gesto derradeiro, a entender a forma como o capitalismo, num grau inédito em qualquer outro sistema social, se alimenta dos humores das populações ao mesmo tempo que os reproduz. E vinca que sem delírio e confiança, o capital não poderia funcionar. De acordo com este crítico da cultura, neste sistema, o trabalho e a vida tornam-se inseparáveis. “O capital segue-nos quando sonhamos. O tempo deixa de ser linear, torna-se caótico, esboroando-se em divisões punctiformes. À medida que a produção e a distribuição são reestruturadas, o mesmo acontece com os sistemas nervosos. Para se funcionar de forma eficaz enquanto elemento de uma produção em cima do prazo, há que desenvolver uma capacidade para reagir a acontecimentos imprevistos, há que aprender a viver em condições de tal instabilidade, ou ‘precariedade’ (…) Os períodos de trabalho vão sendo alternados com períodos de desemprego. Tipicamente, damos por nós empregados numa sequência de trabalhos de curto prazo, incapazes de planear o futuro.” No livro “Realismo Capitalista, este autor que viria a pôr termo à vida em 2017, aos 48 anos, fala-nos num presente puramente fungível em que tanto o espaço como as psiques podem ser processados e refeitos como bem se queira. Fisher lembra que já nas décadas de 1960 e 1970 autores como Laing, Foucault, Deleuze e Guattari, entre outros, defenderam que certas condições mentais extremas, como a esquizofrenia, por exemplo, eram um resultado do ambiente social em que o indivíduo está imerso, e, assim, sustentaram que a loucura não era uma categorial natural, mas, sim, política. “Todavia, o que é necessário agora”, frisa Fisher, “é uma politização de um número muito maior de distúrbios vulgares. Aliás, a questão é mesmo a sua própria vulgaridade: na Grã-Bretanha, a depressão é hoje a doença que o Serviço Nacional de Saúde mais trata.” Para este teórico britânico, estando provada a correlação entre as taxas cada vez maiores de problemas mentais e o modo neoliberal do capitalismo praticado no mundo desenvolvido, torna-se crucial “reenquadrar o problema cada vez maior do stresse (e da angústia) nas sociedades capitalistas”. Fisher denuncia o regime da “privatização do stresse”, pondo o dedo sobre essa forma de condicionamento que leva a que os indivíduos sintam que lhes cabe a eles encontrar a solução das suas próprias angústias psicológicas.
Cada um de nós irá experienciar essa vertigem que nos domina de forma mais ou menos esporádica, uma sensação de estar sujeito a uma pressão difusa, uma ameaça que ataca e nos fragiliza exactamente por ser tão difícil reconhecer onde começa e onde acaba esse elemento antagonista. Chegamos a sentir-nos fúteis por ceder à lamúria, por vivermos constantemente exaustos, e lidamos com uma certa ironia com essa tendência que assumimos como algo de dramático na nossa natureza. Rui Knopfli acertou nesse registo leviano que se imputa aos espíritos que parecem comprazer-se ao fingir a desolação. “Às vezes tenho desejos/ de me aproximar serenamente/ da linha dos eléctricos/ e me estender sobre o asfalto/ com a garganta pousada no carril polido./ Estamos cansados/ e inquietam-nos trinta e um/ problemas desencontrados./ Não tenho coragem de pedir emprestados/ os duzentos escudos/ e suportar o peso de todas as outras cangas./ Também não quero morrer/ definitivamente./ Só queria estar morto até que isto tudo/ passasse./ Morrer periodicamente./ Acabarei por pedir os duzentos escudos/ e suportar todas as cangas./ De resto, na minha terra/ não há eléctricos.”
Este é o modo de aligeirar a coisa, de se abeirar do abismo apenas para calibrar o instinto de sobrevivência. Um modo de afinar o instrumento humorístico quando a vida parece empurrar-nos para o desgaste, o tom sorumbático, um mal-estar persistente, sem qualquer espécie de clareza. Aqui há um suicídio light, um lançar de si a linha e o anzol para a zona mais negra apenas para se pescar a si mesmo, ao alento que nos diz que, afinal, nada do que nos aflige é tão grave que ponha em causa os prazeres de se estar vivo. Lembremos que já Nietzsche, num aforismo tão célebre quanto vertiginoso de “Além do bem e do mal” (1886), sentenciava que, em noites de profunda agonia, essas noites em que o choro e o ranger de dentes de Job em nós estende o seu alcance ganhando um outro eco, o pensamento do suicídio é um forte consolo. É importante referir, contudo, que Nietzsche não está ali a defender a consumação do acto, limitando-se a reconhecer como a hipótese deste serve como um alívio, pois oferece à nossa consciência essa noção de que, no limite, há ainda um gesto que funcionará como a solução definitiva para todos os males. Voltando ao terreno da ironia, antes de Knopfli também Bertolt Brecht assumia a hipótese do suicídio como um destempero que parece atingir os seres que têm em si algo de tão fútil que acaba por corroer esse laço que não só nos liga à vida como estrutura a nossa moralidade. Assim, para ele entregar-se a essas comiserações parece ser algo de imoral: “Suicidar-se/ É coisa corriqueira./ Pode-se falar nisso à mulher-a-dias,/ Discutir com um amigo os prós e os contras./ Há que evitar um/ Certo pathos simpático/ Mas não é preciso fazer disto um dogma./ No entanto, parece-me preferível/ O pequeno bluff do costume:/ Estar farto de mudar de roupa, ou melhor:/ A mulher pôr-lhos/ ( O que faz um certo efeito aos que se impressionam com essas coisas/ E não é demasiado bombástico.)/ De qualquer modo/ Não se deve dar a impressão/ De que se dava/ Muita importância a si mesmo.”
Pela amostra, os poetas preferem desinflar a coisa, retirar-lhe precisamente a carga enfática, para que pesem sobretudo os motivos, e se estes forem sérios (quase se poderia dizer “honestos”, como se o suicídio acima de tudo devesse ser um acto de honestidade perante si mesmo, e não uma forma derradeira de se pavonear, sacrificando-se em nome do espectáculo), então o acto será digno. O certo é que a literatura tem uma espécie de cadastro no que toca a fazer com que, em certos períodos, o suicídio tenha sido algo como uma moda. Basta pensar nesse regueiro de suicídios que foi aberto por “A Paixão do Jovem Werther”, o atormentado romance em que Goethe se inspirou no suicídio real de um amigo, e nas suas próprias fantasias adolescentes de morte, para, como reconheceria na sua biografia – “Poesia e Verdade” –, apaziguar em si esse impulso autodestrutivo. Acontece que, 50 anos antes, em 1774, o livro foi publicado e alcançou um êxito terrível, levando muitos jovens europeus com desgostos de amor a imitarem o protagonista, dando um tiro a si próprios. Assim, Goethe viveu com grande apreensão esse sucesso do seu livro que, reedição após reedição, e com as sucessivas traduções que foi conhecendo, tardava em ver os seus efeitos serem reconduzidos a um exorcismo literário, tornando-se uma macabra influência que levou inclusivamente as autoridades de alguns países a proibi-lo por motivos de saúde pública. Goethe tinha criado Werther para dirigir a sua pulsão autodestrutiva contra um alter-ego, cindindo em dois a sua paixão, criando esse fantasma que continuou, no entanto, a assombrá-lo. Até hoje, o termo “efeito Werther” designa esse misterioso reflexo de imitação que o comportamento suicida apresenta.
Desde então, é natural que muitos poetas se tenham medido ou auscultado esse apelo demoníaco da ficção, que nos diz que um personagem pode ser de tal modo tangível para o leitor que o seu exemplo se pode tornar um agente de contágio. E se muitos foram aqueles que se esforçaram por retirar peso a essa questão decisiva e central, no século XX talvez nenhum outro autor tenha alcançado maior repercussão nesse conflito do que Albert Camus, cujo ensaio “O Mito de Sísifo” (1942) irrompe com a seguinte declaração: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Concluir que a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da Filosofia”. Ora, reconhecendo a forma como caímos vítimas do absurdo, num século que nos expôs a condições de degradação de todos os ideais que medem a perspectiva histórica com um aperfeiçoamento do Homem, declarando-a uma ingenuidade de todo o tamanho, uma vez mais a tentação do suicídio se impunha. Contudo, esta solução é recusada pelo autor franco-argelino, uma vez que é tida como uma cedência precisamente ao elemento absurdo da existência. Camus oferece um testemunho contra essa desistência, vincando que a única dignidade do homem se encontra na “rebelião tenaz contra a sua condição, a perseverança de um esforço tido por estéril”. Assim, Camus elege a própria vida e o presente como um território que deve, a todo o momento, ser reconquistado, lembrando que “a verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo no presente”. Resta, portanto, não negar-se à morte, mas estabelecer as condições para que a vida seja uma exploração intensa, pois “se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta”.
Na teoria isto até funciona. Mas depois não basta um ou outro momento de clareza reflexiva, quando o suicídio é um remédio que forjado pelo desespero para pôr fim a um ciclo ininterrupto de misérias. A este respeito, merece destaque um trabalho assombroso de reportagem levado a cabo por Leila Guerriero. “Os Suicidas do Fim do Mundo” (2005), impõe-se como um dos mais pregnantes e admiráveis exercícios no campo do chamado romance de não-ficção, o qual teria sido inaugurado por Truman Capote com o seu “A Sangue Frio”. A jornalista trabalhava para o diário argentino “La Nacion” e foi através de um email de uma ONG, que pretendia divulgar um projecto que levaria uma equipa de jovens negociadores de Harvard a intervir em situações de violência, conflito ou desagregação social, que teve conhecimento de uma vaga de suicídios que ocorreram entre 1997 e 1999 numa aldeia localizada numa região bastante inóspita no interior da Patagónia, Las Heras, na província de Santa Cruz. Ora, o aspecto mais funesto do relato prendia-se com o facto de a média das idades daqueles que se tinham matado rondar os 25 anos. Nas suas primeiras investigações, Guerriero depressa se deu conta de que não fora revelada uma lista das vítimas, nem houve sequer, por parte das autoridades, um esforço para averiguar o que estava na base daquela vaga de suicídios sem precedentes.
Ao longo de três anos, e depois de ter tentado em vão propor uma reportagem de fôlego a várias publicações, Leila Guerriero acabou por usar as suas férias em Verões subsequentes para deixar Buenos Aires e visitar a aldeia que parecia assinalar o fim do mundo, sendo escassa a população, e não estando dotada de um cinema ou sequer de uma biblioteca. Devido à intempérie, nem as árvores ali vingavam, e, assim, a jornalista deparou-se com um pequeno povoado esmagado pelo vazio, pelo deserto que o envolve e que se faz ouvir no tom ominoso dos ventos fortes, sentidos pelos habitantes como o anúncio de uma presença demoníaca, que faz com que o Inverno se instale na intimidade daquela humanidade em perpétuo isolamento. “Na Patagónia, a agressão natural da paisagem e a solidão histórica aumentam a possibilidade de mal-estar, gerando este tipo de saídas”, escreve Guerriero. “Isto repete-se noutras localidades com falta de enraizamento, falta de qualidade nas relações. Parece que tudo é erótico-agressivo e começam a dar-se relações cruzadas, sem capacidade de oxigenação. (…) O que também ficou claro é que quando não se tem uma estrutura que ofereça inserção e reconhecimento, uma legitimação da auto-estima através do amor e da valorização, numa estrutura onde estão todos apoiados muito fragilmente e numa relação social com alto nível de desemprego, surgem sintomas violentos, gera-se silêncio, frieza, e chega-se a uma situação de perda de sentido da vida, de reivindicação de atenção através de condutas auto-agressivas muito fortes, como o alcoolismo ou o suicídio, e a algo que se poderia chamar melancolia social.”
Nesta aldeia, que vê a sua população definhar sem possibilidade de escapar, um cenário de extinção impôs-se após a indústria do petróleo que empregava quase todos os habitantes ter sido privatizada, levando a que os postos de trabalho tivessem sido extintos. O enorme aumento do desemprego provocou proporcionais aumentos do alcoolismo, violência doméstica, prostituição, gravidez adolescente e suicídios. E inserindo-se na aldeia, vivendo lá por períodos e relacionando-se com as pessoas, Guerriero foi capaz de mergulhar naquele contexto, e procurar as pistas para a bizarra sequência de suicídios, que, tendo ocorrido em datas diferentes, pareciam estar relacionados entre si, tendo-se dado sempre no mesmo dia do mês, no último dia do ano ou do milénio, no Natal, ou em outros momentos com algum simbolismo. Até ali, várias teorias haviam ganhado fôlego, correndo como rumores tão mais impressivos quanto correspondiam aos piores agouros: a primeira suicida teria deixado uma lista com os nomes das seguintes, e as circunstâncias e as datas dos respectivos suicídios; uma seita teria recrutado os jovens para depois os induzir ao suicídio; rituais de magia negra colocariam os jovens no transe que os levou ao fatídico acto; os espíritos dos índios sepultados naquela zona estariam a vingar-se… Afinal, as razões eram na verdade de ordem bem mais vulgar, e nesse campo da vulgaridade que, tal como Fisher, Guerriero traça as ligações e desenha, a partir daquela localidade, uma relação de causa e efeito. “Porque sim, porque não havia nada que fazer, porque estavam aborrecidos, porque não se davam bem com os pais, porque não tinham pais ou porque tinham demasiados, porque lhes batiam, porque os faziam abortar, porque bebiam tanto álcool e tantas drogas, porque lhes tinham feito mal, porque saíam de noite, porque roubavam, porque saíam com mulheres, porque saíam com mulheres da noite, porque tinham traumas de infância, traumas de adolescência, traumas da primeira juventude, porque gostariam de ter nascido noutro lado, porque não os deixavam ver o pai, porque a mãe os havia abandonado, porque tinham violado, porque eram solteiros, porque tinham amores, mas infelizes, porque haviam deixado de ir à missa, porque eram católicos, evangélicos, apaixonados pelo desenho, ‘punks’, sentimentais, estranhos, estudiosos, vaidosos, sem ocupação, trabalhadores do petróleo, porque tinham problemas, porque não os tinham de todo.”
Uns anos mais tarde, numa entrevista ao El País, Leila Guerriero era recordada da epígrafe que escolheu para abrir o livro. “É necessário humildade, não orgulho.” É uma frase que arrancou a “O Ofício de Viver”, de Cesare Pavese, escritor italiano que, como se sabe, preferiu escolher a hora da sua morte. E Guerriro explica o que a levou a escolher esta frase, e como foi um primeiro passo para resgatar do processo de moralização e culpa aqueles que decidem acabar com a sua vida. “Pavese é uma pessoa com uma inteligência superior, que fala com autoridade porque é um tipo que acabou por se suicidar. No seu diário, deixou diversas reflexões acerca do conteúdo desse gesto. É habitual pensar-se no suicida como uma pessoa cobarde ou egoísta, e creio que essa epígrafe resume na perfeição como, na verdade, é ao contrário. Serve, pelo menos, para rebater alguns desses lugares comuns que se teceram em torno do suicídio. E parece-me que na palavra ‘humildade’ está também essa coisa tão tremendamente perturbadora do suicídio que é a aceitação do ‘não aguento mais’. Para que chegues ao ponto de dizer ‘não aguento mais’, é precisa uma humildade e uma coragem descomunal. Como acontece sempre que te recusas, sempre que dizes ‘não posso’”.
A este respeito, um dos escritores que mais longe foi no esforço de obrigar a que se reconhecesse a seriedade desse gesto foi Louis Aragon, que no seu “Tratado do Estilo”, escreve isto: “Vejo passar o cortejo dos suicidas. A este respeito aviso já que detesto chalaças. Por vezes a conversa toma conta do assunto. Enorme repugnância me mantém a ela estranho. Fazem-me perguntas, e não posso senão dizer a que ponto todos os homens me parecem fantoches, a que ponto me espanto por ver a vida continuar, não posso senão dizer que os suicidas são para mim os únicos mortos, os únicos verdadeiramente respeitados. Sobre mim desabam logo interrogações severas. Que diabo espero eu, nesse caso? E é verdade. É verdade que não me matei. O facto aliás nota-se à légua. A qualquer hora do dia se o pode verificar. O infame mais rasca está até em condições de me pôr a mão em cima e desatar a rir. Está certo, não me matei. Mas que prazer podem vocês sentir ante essa observação tão deprimente? Pois estou, estou vivo. Como outro qualquer. Não o digo para me desculpar. Não me matei e se o não fiz não foi por não ter pensado nisso. Ainda há bocado. Olhe, dizia eu para comigo, seria coisa de uma simplicidade infantil. Punha logo a andar uma data de ideias. E ainda por cima a única testemunha do que isso comporta até sou eu. Não me matei e tudo isto se desfaz num escárnio esmagador. Caríssima mó, não me desandes agora da cabeça. Que estava eu a dizer? Ah, pois. Dentre todas as ideias a do suicídio é afinal a que distrai melhor um homem. Mas dito isto, vamos lá, silêncio. Matem-se, ou então não se matem. Mas não andem praí a arrastar as vossas lesmas da agonia, esses vossos cadáveres tão antecipados, não mostrem como quem não quer a coisa o enchumaço na algibeira, essa coronha de revólver que irresistivelmente reclama um biqueiro no cu. Não andem para aí, com esse incessante arquejo, a insultar o verdadeiro suicídio. Mais baixo, mil vezes mais baixo do que este que se espanta e pergunta porquê este fogão a gás ou este elevador, é o pouco voraz que após compreender a grandeza de semelhante destino vive à sombra da mançanilheira sem jamais adormecer, essoutro que tratando dos negócios a si mesmo reserva uma hora por dia de fúnebre desespero.”
Também João Barrento, em “Como um Hiato na Respiração – diário do dia seguinte”, um livro em diálogo com uma série de autores (Maria Gabriela Llansol à cabeça), e todo ele dedicado à indagação sobre a morte, inclusivamente a “morte livre”, defende que “há um direito ao gesto final que as leis civis e morais do mundo não podem impedir. E o gesto final pode ser simplesmente o da recusa de con-viver com o desastre do mundo. E o da entrada na invisível e serena ‘passividade do morrer’ que antecede o gesto.” Num outro momento, o tradutor e ensaísta vinca que “perdemos a morte porque lhe negamos o direito a vir, e a nós próprios o dever ético, e muitas vezes também estético, de a chamar no momento certo.”
Para atestar da seriedade desse gesto final, acto que, de resto, dispensaria qualquer outro qualificativo, bastaria municiarmo-nos de uma lista dessas que, no fundo, não são mais que tentativas de juntar aquilo que rejeita toda a agremiação – isto porque, o que há de verdadeiramente exemplar no suicídio, é essa soberania da consciência de um ser que recusa viver mais um dia que seja, que se desfaz de toda a esperança, e alcança o fim quando tantos precisam dele para se assustarem diante do nada e se encorajarem a suportar o mundo e engolir outra e outra porção do mesmo. Entre nós, uma lista que vai para além do geral efeito de museificação grotesca que habitualmente essas tarefas conseguem, foi realizada por Luís Filipe Parrado, no poema “Antologia de poetas suicidas (1770-1985)”. Ei-lo: “Karoline Günderode tem 26 anos quando, sem tremer,/ crava no coração um punhal. Heinrich von Kleist/ enfia o cano da pistola na boca, de seguida/ põe fim a tudo. José Asunción Silva consulta um médico,/ em Bogotá, para averiguar da localização precisa,/ no seu peito, do músculo cardíaco. Obtida a informação,/ apressa-se a disparar certeiramente sobre tão exacto lugar./ Trakl toma uma dose mortal de cocaína; Sá-Carneiro/ prefere estricnina; Antonia Pozzi recorre a comprimidos./ Sylvia Plath abre o gás e ajeita a cabeça no forno./ Celan mergulha nas águas do Sena, Berryman nas do Mississípi./ Nesta antologia, organizada por José Luis Gallero,/ já em segunda edição, cada palavra diz, veemente,/ que a fina flor da morte vive, em segredo, em cada coisa;/ mas descansa, leitor, a verdade dos factos é que nem todos/ os poetas são suicidas – pelo contrário, a maioria/ sobrevive até, como mais ou menos talento, mais ou menos/ dificuldade, à pavorosa clandestinidade dos dias./ Alguns dedicam-se inclusive a tráficos bem lucrativos;/ outros, mais discretos, optam pelos trabalhos manuais,/ as palavras cruzadas com recurso ao dicionário,/ a astrologia, a leitura de artigos sobre a pesca submarina,/ no fundo são pessoas tão ansiosas como nós, os poetas,/ capazes de distinguir muito bem o possível do real./ E quase todos, no verão, gostam de ir ao campo colher amoras.”
Mas melhor do que uma qualquer lista de suicidas exemplares, talvez seja mais útil relembrar as palavras de E.M. Cioran a respeito deste tema, notando que talvez nenhum outro tenha zurzido de forma mais implacável, aqui tomando a lição da própria vida, esse “optimismo imbecil e desvitalizado dos profissionais do humanismo progressista”, esses que pretendem ver uma falta de carácter e que gostam de escarafunchar com pinças muito longas na solidão impenetrável e no audaz desespero que leva alguns a quebrarem as grilhetas e recusar-se a aceitar “o ar irrespirável deste mundo”. No fundo, estes são aqueles a quem falta a profundidade e a feroz autonomia que permite aos outros libertarem-se. Cioran vira o bico ao prego e diz-nos que “quem nunca concebeu a sua própria anulação, quem não pressentiu o recurso à corda, à bala, ao veneno ou ao mar, é um escravo aviltado ou um verme rastejante sobre o cadáver cósmico”. Este pensador de origem romena revelou um génio inigualável enquanto poeta da crueldade, aliando a ferocidade das suas análises ao apuro de uma escrita aforística feroz, agressiva e venenosa, mas que não deixa de nos provocar um estranho encanto, pela forma como nos sacode do torpor produzido pelo senso comum, pela tagarelice de tantos cretinos cheios de boas intenções e que, no fim, apenas nos convidam à inércia e a uma aceitação mais ou menos pacífica da ordem instituída, dos privilégios e das coacções a que nos submetemos. Por seu lado, este filósofo com o seu pessimismo exultante, trata de nos abalar com os seus silogismos e ensaios provocadores, sempre enérgicos, sempre inquietantes. Em “Breviário de Decomposição”, obra recentemente editada entre nós pelas Edições 70, com tradução de Miguel Martins, questiona: “haverá riqueza maior do que o suicídio que cada um traz dentro de si?”
Cioran obriga-nos a reconhecer os elementos da amargura através do qual o fio das nossas vidas vai cosendo o seu percurso e nota como o suicídio é uma compreensão particularmente lúcida desses outros gestos que repetimos contra nós próprios, contra a capacidade de afirmarmos a nossa vontade. “Todos os utensílios nos ajudam a isso, todos os nossos abismos nos convidam a isso; mas todos os nossos instintos se opõem a isso. Essa contradição desenvolve um conflito irresolúvel no seio do espírito. Quando começamos a reflectir acerca da vida, a descobrir nela um infinito de vacuidade, os nossos instintos já se erigiram em guias e fautores dos nossos actos; eles refreiam o voo da nossa inspiração e a agilidade do nosso desprendimento.”
A partir da questão do suicídio, Cioran erige uma espécie de utopia do avesso, algo que nos serve não para empreendermos esforços em relação a um horizonte ilusório, mas um sistema para desmantelar esse género de ilusões, um antídoto contra os venenos que são dispensados de forma a obter essa dormência colectiva, essa abdicação da consciência e da capacidade de pôr em causa uma ordem que vai contra os nossos interesses. “Se as religiões nos proibiram que morrêssemos pelas nossas próprias mãos, foi porque viam nisso um exemplo de insubmissão que humilhava os templos e os deuses. Um dos concílios de Orleães considerou o suicídio um pecado mais grave do que o homicídio porque o assassino pode sempre arrepender-se, salvar-se, ao passo que aquele que acaba com a sua vida ultrapassa os limites da salvação. Mas não decorrerá o acto de nos matarmos de uma fórmula radical de salvação? E o nada não equivale à eternidade? O ser, quando só, não tem necessidade de guerrear contra o universo; é a si mesmo que envia o ultimato. Caso, num acto incomparável, tenha sido absolutamente ele próprio, depois já não aspira a ser para sempre. Recusa o céu e a terra como se recusa a si mesmo. Pelo menos, terá alcançado uma plenitude de liberdade inacessível àquele que procura indefinidamente no futuro…”
Cioran consegue penetrar o veio da teologia e ir até à fonte, envenenando as águas com a clareza das suas asserções, defendendo que nenhuma igreja, nenhuma instituição inventou, até agora, um só argumento válido contra o suicídio. “Que responder a quem já não consegue suportar a vida? Ninguém tem a capacidade para tomar em mãos o fardo de outra pessoa.” Este pensador vai mais longe, e tenta provar que o suicídio é, na verdade, um dos aspectos que fundam o próprio conteúdo do que significa ser humano, ou seja, aquele animal que encontrou em si as forças para se furtar ao destino, para rejeitar as penas que lhe são impostas, para denunciar o absurdo através desse acto que sublima o instinto de revolta rompendo de vez com as grilhetas e todas essas condições que o aprisionam. “O suicídio é uma das características distintivas do homem, uma das suas descobertas; nenhum animal é capaz de cometê-lo, e os anjos raramente o imaginaram; sem ele, a realidade humana seria menos curiosa e menos pitoresca: careceria de um ambiente estranho e de uma série de possibilidades funestas que têm o seu valor estético; quando mais não seja por introduzirem na tragédia soluções novas e uma variedade de desfechos.”
Por mais que se evite o assunto, é impossível deixar de reconhecer que, desde a mais remota Antiguidade até aos nossos dias, há homens e mulheres que escolhem a morte, e com esse acto deixam claro que há espíritos que desenvolvem em si uma força de carácter de tal ordem que são capazes de erguer a sua consciência contra toda essa urdidura biológica que nos proíbe de contemplar seriamente o suicídio. E o facto é que o suicídio nunca deixou de nos provocar um arrepio, mesmo numa época como a nossa, em que a vontade se dissolve numa névoa fantasmagórica de inebriantes psicológicos e físicos, quando a tentação da existência cada vez mais parece resultar da capacidade de engendrar vícios, os quais se reproduzem a si mesmos, num mundo que se esvaziou de sentido, que rebaixa e extirpa a vida e explora o desejo, ao mesmo tempo que o recalca e o controla. Mesmo numa época que se caracteriza pela indiferença, pela perda dos vínculos sociais, pela virtualização de todas as experiências e do próprio mundo, mas assim, o suicídio continua a causar-nos um certo arrepio. E se desde há muito se impôs como um tabu e um objecto claro de reprovação social, uma vez que é a mais brutal das denúncias que se pode fazer contra uma sociedade, que supostamente se organiza de forma a prover o bem-estar dos seus membros, é evidente como, num momento em que as crises político-económicas se encadeiam umas nas outras, e são usadas como pretexto para impor sofrimento e desequilíbrios manifestamente injustos, esses indivíduos que chegam a sentir sobre os ombros o fardo das suas épocas, obrigam-nos a reflectir se a vida não terá perdido de vez o seu sentido transcendental, e a morte de Deus não é afinal a perspetiva da sua criação deixada órfã de um horizonte que justifique tantos sacrifícios. Cioran diz-nos que os sábios antigos, que se matavam como prova da sua maturidade, tinham criado uma disciplina do suicídio que os modernos desaprenderam. “Fadados a uma agonia sem génio, nós não somos nem autores das nossas mortes nem árbitros das nossas despedidas; o fim já não é o nosso fim: falta-nos a excelência de uma iniciativa única – através da qual nos redimiríamos de uma vida insípida e sem talento –, tal como nos falta o cinismo sublime, o esplendor antigo de uma arte de parecer”, sentencia o filósofo. E atira-nos à cara um retrato pavoroso dessa procissão que desenhamos engolindo diariamente essa dieta moral que nos torna seres destituídos de todo o vigor no que toca a afectar o seu destino: “Rotineiros do desespero, cadáveres que se aceitam, sobrevivemos todos a nós mesmos e só morremos para cumprir uma formalidade inútil. É como se a nossa vida só se preocupasse em adiar o momento em que poderemos ver-nos livres dela.”