Pandemia e agora guerra criam maior fosso entre mais ricos e mais pobres

O mundo está diferente: “recupera de uma pandemia global, luta para conter o impacto da crise climática e navega numa tempestade geopolítica após a invasão da Ucrânia”, mas fortunas disparam e pobreza também.

Davos voltou a receber os grandes decisores do mundo da economia, política e diplomacia, mas a clivagem entre os muitos ricos e os mais pobres ganhou novos contornos. Primeiro a covid-19 e agora a guerra – que levou ao aumento dos custos da energia e matérias-primas, refletido nos preços finais – ditaram nova realidade. De acordo com o relatório da Oxfam, em dois anos de pandemia quase 600 pessoas tornaram-se multimilionárias e, ao mesmo tempo, há mais 263 milhões de pessoas perto da situação de pobreza extrema este ano. E os números não deixam margem para dúvidas: em dois anos surgiram dezenas de novos milionários no mundo, essencialmente nos setores da alimentação, da energia e farmacêutico. Feitas, as contas, os 10 homens mais ricos do mundo viram a sua riqueza total mais do que duplicar entre março de 2020 e novembro de 2021. “A pandemia e agora os aumentos acentuados dos preços dos alimentos e da energia têm sido, dito de forma simples, uma bonança para eles”, afirma a diretora executiva, Gabriela Buche.

A ONG pede várias medidas fiscais, em que uma delas passa pela criação de um imposto de solidariedade único sobre a nova riqueza adquirida pelos bilionários durante a pandemia com vista a apoiar os mais pobres e conseguir “uma recuperação justa e sustentável”. Em cima da mesa está ainda um imposto temporário sobre os lucros extraordinários obtidos nos últimos anos pelas multinacionais dos setores alimentar, farmacêutico e petrolífero.

 

Em cima da mesa

De acordo com Henrique Tomé da XTB, “a reunião em Davos será importante para percebermos como é que os principais líderes políticos e empresariais olham para os vários desafios, desde as questões em torno do crescimento económico, pandemia, transição energética bem como a situação no leste da Europa que continua por se resolver”, diz ao i.

E lembra que, nos mercados de capitais, os investidores têm estado preocupados com o futuro e muitos acreditam que as maiores economias do mundo possam entrar em recessão no final deste ano ou início do próximo. “A reunião em Davos poderá trazer novos insights quer seja para os investidores como também para os analistas a fim de se perceber se as preocupações também são transversais aos principais líderes mundiais e quais são as suas visões em torno deste tema”, salienta.

“Por outro lado, questões como a pandemia e a guerra na Ucrânia continuam por ser resolvidas e este tema também poderá suscitar o interesse dos investidores para se perceber se é possível encontrar-se uma solução a curto prazo, dado que estas questões também condicionam o crescimento económico e têm tido um forte impacto em determinadas economias”, acrescentou.

Também para Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa, o atual cenário é totalmente diferente: “Este ano a guerra na Ucrânia e a turbulência económica global tornarão, em muitos aspetos, este evento num acontecimento sem precedentes. Nos seus 50 anos de história, o The World Economic Forum (WEF) nunca foi confrontado com questões globais como agora enfrenta em 2022, à medida que o mundo recupera de uma pandemia global, luta para conter o impacto da crise climática e navega numa tempestade geopolítica após a invasão da Ucrânia”, diz ao i.

E os agravamentos tendem-se a acentuar. O economista lembra que a subida da taxa de desemprego, espoletada pelo confinamento ditado pela pandemia, penalizou mais os empregos indiferenciados, dependentes da proximidade social, de muitos trabalhadores do setor da restauração e hotelaria, bem como do trabalho nas fábricas.

No entanto, lembra que, o teletrabalho permitiu que o trabalho menos dependente da proximidade social, mais diferenciado e com salários mais elevados, fosse pouco afetado pelas restrições pandémicas. “As perdas de rendimentos foram mais visíveis nos trabalhos indiferenciados e, consequentemente, assistiu-se a um aumento da desigualdade”, referindo ainda que a “política monetária energicamente expansionista dos bancos centrais, para mitigar a crise económica imposta pelos confinamentos pandémicos, impulsionou os mercados acionistas e o mercado imobiliário e, mais uma vez, agudizou a desigualdade económica”.

 

Agravamento será maior

Para Henrique Tomé, “apesar de os bancos centrais terem apoiado fortemente a economia ao longo dos últimos dois anos, a verdade é que as ajudas financeiras estão a terminar e as desigualdades poderão agravar-se ainda mais”, dando como exemplo, o que se vive nos Estados Unidos, “o fosso entre as classes mais ricas e as mais pobres continua a aumentar, o que pode gerar problemas económicos tanto a médio como a longo prazo”.

E deixa um alerta: “Embora a pandemia tenha acelerado alguns setores, a verdade é que outros setores se têm mantido mais fragilizados, sobretudo aqueles que continuam com dificuldades em acompanhar a inovação – ou que não investem na inovação – mas, por outro lado, a guerra não tem tido um impacto tão agressivo como a pandemia no curto prazo. No entanto, a médio e longo prazo, a guerra poderá ter um maior impacto. Muitos setores estão a ser prejudicados com o aumento dos preços que estão a reduzir as margens das empresas, o que poderá afetar os lucros das mesmas”.

Já Paulo Rosa lembra que “a guerra tem impulsionado os preços da energia e acelerado a inflação”, acrescentando que “este facto diminuiu o rendimento disponível das famílias, acelerando o processo de desigualdade”.

 

E Portugal?

Os especialistas ouvidos pelo i não hesitam: “Portugal e os países mais endividados, nomeadamente os países do sul, são os que mais sofrem com os aumentos das taxas de juro”, diz Henrique Tomé, lembrando, no entanto, “apesar dos últimos dados divulgados pela Comissão Europeia mostrarem que a economia portuguesa deverá ser a que mais deverá crescer este ano, o país continua a crescer a um ritmo muito modesto em comparação com os pares europeus”. E vai mais longe: “Sendo que o nosso país cresce a um ritmo lento, o aumento do custo de vida (devido ao efeito da inflação) e o aumento das taxas de juro poderão ter um impacto negativo na economia portuguesa. Os decisores de política monetária deverão olhar para o caso português com atenção”, afirmando que, embora o Banco de Portugal não tenha autonomia para conduzir as políticas monetárias no país defende que “é necessário que se opte por medidas urgentes para estimular o crescimento da atividade económica a fim de se evitar o pior a longo prazo”.

Também Paulo Rosa garante que Portugal não é exceção. “Preços mais elevados de bens de primeira necessidade, aumentam o custo de vida e penalizam primeiro as famílias de menores rendimentos, agravando a desigualdade”.

Recorde-se que, do lado dos empresários portugueses, é habitual a presença em Davos de Cláudia Azevedo, CEO da Sonae, assim como do lado do Jerónimo Martins é de contar com José Soares dos Santos, membro do conselho de administração, e Henrique Soares dos Santos e Andy Brown, CEO da Galp Energia.