Mesmo entre apoiantes do Kremlin, torna-se cada vez mais claro que as pesadas baixas sofridas pelas forças russas as tornaram incapazes de quebrar o impasse em Donbass. Uma associação de oficiais veteranos até já pediu publicamente a Vladimir Putin que abandone o rótulo de “operação militar especial”, como gosta de chamar à sua invasão, e que declare guerra à Ucrânia, de maneira a poder recorrer à mobilização massiva dos russos. Veem-se cada vez mais carrinhas móveis de recrutamento por toda a Rússia, avançou o Moscow Times, enquanto o Estado-Maior ucraniano anunciava que o Kremlin começava a tirar dos armazéns velhos tanques soviéticos T-62, considerados obsoletos desde os anos 80, de maneira a conseguir reequipar algumas das suas forças.
Mesmo os recentes avanços nos arredores de Severodonetsk, procurando cercar a maior cidade sob controlo ucraniano em Lugansk, têm sido feitos à base de esmagadoras barragens de artilharia. Ao mesmo tempo que os comandantes russos se mostram receosos de arriscar a sua infantaria e forças mecanizadas, após o falhanço das ofensivas arrojadas nos primeiros momentos da invasão.
Não que isso torne o avanço russo menos aterrorizante para os civis apanhados pelo meio. O Kremlin tenta “apagar Severodonetsk da face da terra”, alertou o governador de Lugansk, Serhii Haidai, em declarações partilhadas no Telegram, havendo quem trace paralelos com o cerco a Mariupol, onde ainda esta segunda-feira foram descobertos duzentos cadáveres numa cave, denunciaram autoridades locais. Já em Severodonetsk, mais uma vez, o regime de Putin é acusado de impedir a fuga de civis, destruindo uma das pontes da cidade, este fim de semana. E “se destruírem mais uma ponte, então a cidade ficará, infelizmente, totalmente isolada”, enquanto escalam os bombardeamentos, lamentou o governador de Lugansk.
A dependência dos russos em relação à sua artilharia é vista como sintoma de uma falta de recursos humanos crónica. Mas o Kremlin tem plena consciência que uma mobilização em massa seria extremamente impopular, tendo enfrentado mais de uma dezena de ataques contra centros de recrutamento, este mês, pela calada da noite, recorrendo a cocktails molotov.
“Os cocktails molotov são o canário na mina de carvão”, notou Frederick Kagan, investigador do American Enterprise Institute, à Foreign Policy, referindo-se ao velho truque dos mineiros para detetar gases venenosos. Contudo, a Rússia – que se tem visto obrigada a fundir batalhões táticos de grupo que sofreram demasiadas baixas, de maneira a deixá-las de novo operacionais, causando problemas de coordenação e criando o que alguns analistas descrevem como “grupos-Frankenstein” – precisa rapidamente de mais tropas se quer voltar a ganhar ímpeto.
Daí que ainda a semana passada o Parlamento russo, ou Duma, tenha recebido uma proposta da Rússia Unida, o partido de Putin, para subir a idade máxima com que militares se podem realistar, atualmente estipulada nos 40 anos, de maneira a atrair veteranos. Um recrutador na Chechénia até ofereceu um bónus inicial de 300 mil rublos (cerca de cinco mil euros) a um jornalista da Radio Free Europe, que estava disfarçado.
O Kremlin está a “rapar o fundo do tacho, procurando tudo o que possa encontrar”, salientou Frederick Kagan. Para já, mais de mil mercenários russos e sírios saíram da Líbia, onde apoiavam as forças do senhor da guerra Khalifa Haftar, avançou o Financial Times, enquanto parte das tropas russas colocadas na Síria se retiraram, um “desenvolvimento preocupante para Israel”, frisou o Times of Israel, receoso que o regime de Bashar Al-Assad comece a depender mais do apoio dos combatentes do Hezbollah e do Irão.
Moscovo também lançou contra a Ucrânia tropas vindas da Ossétia do Sul e Abkhazia, dois territórios separatistas da Geórgia, deixando-os mais desprotegidos. O que pode explicar a promessa do porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, esta terça-feira, de não levar a cabo, para já, um referendo à independência da Ossétia do Sul, não fosse isso abrir mais uma frente.
No entanto, o grosso das tropas colocadas pelo Kremlin na Ucrânia é oriunda da vastidão da Rússia. Sobretudo das minorias étnicas mais pobres, sejam elas budistas, muçulmanas ou xamanistas, que vivem perto das suas extensas fronteiras.
“É esse o segredo sujo das forças armadas russas. “Os vassalos periféricos da Rússia – buriat-mongóis, daguestaneses, tuvanos – são a carne de canhão de Putin”, acusou Alexey Kovalev, grande repórter do Meduza, num artigo na Foreign Policy.
“Parecem estar a combater e a morrer desproporcionalmente no exército do Kremlin”, continuou Kovalev. “Enquanto aqueles de etnia russa, especialmente de regiões mais ricas como Moscovo e São Petersburgo esmagadoramente conseguem evitar servir na linha da frente, sobretudo evitando o recrutamento”. Não espanta que o primeiro condenado por crimes de guerra durante a invasão seja um jovem sargento siberiano, que cresceu perto da Mongólia.