Simões Ilharco. “O PS é o controleiro-mor da comunicação social”

Histórico do jornalismo recorda 50 anos de profissão e uma vida com peripécias surpreendentes.   

Trabalhou no Diário de Notícias, de onde viria a ser saneado por Saramago. Ocupou a RTP no 25 de Abril, esteve nos Jogos Olímpicos de Moscovo, em 1980, seguia a bordo, com Balsemão, de um avião que teve de aterrar de emergência em Nova Iorque por causa de uma ameaça de bomba. Entrevistou Sá Carneiro, Soares e Cunhal. Pelo meio, na tropa, sobreviveu a um tiro à queima-roupa na barriga, disparado pelo seu camarada Seixas da Costa. Simões Ilharco recorda uma carreira de 50 anos no jornalismo, os altos e baixos, as dificuldades e as recompensas.

Na altura em que se tornou jornalista já havia cursos?

Não, não. O curso era a tarimba das redações e a tarimba da vida. Não havia cursos de Comunicação Social. O meu sonho e a minha vocação foi sempre o jornalismo. Só que, como naquela altura não havia curso superior de Comunicação Social, tirei um curso de Economia. Depois fui logo para o jornalismo e entrei para o Diário de Notícias.

De onde vinha esse sonho? Gostava de escrever, de ler jornais?

Talvez esteja no sangue, porque o meu pai foi jornalista, deve ser uma coisa herdada. Sempre tive paixão pelo jornalismo, já lá vão cinquenta anos, e todos os dias escrevo, quase todos os dias sai um artigo meu n’A Bola. E até há pouco tempo escrevia para o Diário de Notícias e para o Público. E escrevi para os principais jornais e ainda para a Antena 1, para o Povo Livre, para a Acção Socialista, para o Jornal de Comércio, para o Semanário…

Que idade tinha quando entrou para o Diário de Notícias?

24. Foi em 71. E sabe que a tarimba das redações tem uma grande vantagem: nós contactamos com grandes jornalistas e aprendemos mais do que numa aula de uma universidade, em que só se aprende a teoria, mas depois na prática é tudo diferente.

O Diário de Notícias foi o primeiro sítio onde trabalhou?

Sim. Mas como era difícil fazer jornalismo político antes do 25 de Abril, fiz desporto até ao 25 de Abril – crónicas, reportagens, com o Fernando Pires, que foi um grande amigo – e só a partir de ‘74 fui mais para o jornalismo político. Fundei o Povo Livre [órgão oficial do PPD/PSD], a convite do dr. Sá Carneiro. Ele queria que eu fosse diretor, mas fiquei só como chefe de redação. Sabe porquê? Porque estava na tropa e como prezo ser uma pessoa séria, estar na tropa e ser diretor era incompatível. O dr. Sá Carneiro, que era extremamente simpático para mim, e correto, queria que eu fosse diretor. Mas eu: ‘Compreende, sou militar, é incompatível. Mas fico como chefe de redação e faço o jornal’. Ele nunca interferiu. E eu tinha um ordenado principesco. [risos] Sabe quanto é que eu ganhava em 74? 14 contos. Era bastante dinheiro. É capaz de ter sido o melhor ordenado de toda a minha vida [risos]. E o dr. Sá Carneiro era uma pessoa extraordinária, corretíssima para comigo.

A imagem que temos é de alguém bastante combativo.

Mas sem perder a elegância e a educação. Era combativo mas não perdia nunca o respeito pelas pessoas, nem o respeito nem a elegância. Ele e o dr. Mário Soares foram as pessoas que mais gostei de entrevistar.

Eram pessoas bastante diferentes.

Mas tinham uma coisa que os unia: as respostas não eram soundbytes, tinham substância, conteúdo, e muitas delas faziam doutrina, até. Não eram trocadilhos para o telejornal das oito. Era uma grande diferença para agora. Entrevistei-os muito e gostava muito deles. Acho até que foram os melhores políticos que tivemos. E eram dois estadistas, coisa que em minha opinião o Marcelo e o Costa não são. Nem têm projeto político. Nem um nem outro. Pode não concordar comigo – não temos de estar de acordo –, mas o poder político atual é muito fraco. O Costa não passa de um negociador, e o Marcelo é um comentador. E nem um nem outro tem um projeto. O país precisava de um poder forte que arrebatasse o povo, de um projeto que entusiasmasse, mas não temos. O PRR é um conjunto de intenções económicas, mas está longe de ser um projeto. E o projeto do Marcelo são os beijinhos e as selfies. [risos]

A popularidade?

A popularidade. O Soares tinha projeto e o Sá Carneiro também. O projeto de Soares era a Europa, e conseguiu mobilizar os portugueses. E o Sá Carneiro, com a social-democracia, entusiasmava. Agora não temos projeto, além de que o poder é muito fraco. Estou de acordo com o engenheiro Mira Amaral, que disse que a direita é ‘fofinha’. E o único sinal forte que tivemos da oposição ultimamente foi o artigo do professor Cavaco Silva no Público, a acusar António Costa de falta de coragem política. Antes desse artigo, escrevi um texto no Facebook em que o título era ‘Costa nada faz, não acredite nele’. Isto para ver como estou em sintonia… ou melhor, o professor Cavaco Silva é que está em sintonia comigo, porque isto foi escrito antes.

Vou ler uma passagem: ‘Costa é um político cobarde, não se mete em nada que possa afetar a sua cotação eleitoral. Governa a pensar nas eleições e não no país’. Isto é anterior ao artigo do professor Cavaco Silva, mas é quase a mesma coisa, há muita convergência. Mas, como lhe estava a dizer, a direita é ‘fofinha’ e o PS é o controleiro-mor da comunicação social. Todos os partidos têm grande apetência em controlar a comunicação social. Mas a maior apetência é a do PS.

Mas o PS consegue. Passos Coelho, por exemplo, tinha toda a comunicação social contra ele.

E o Cavaco. O PS é bem-sucedido. E não toleram críticas, silenciam as vozes incómodas. Com uma direita ‘fofinha’ e a comunicação social toda controlada, a mexicanização do país é uma hipótese a não excluir. O país está anestesiado.

Fez a tropa onde?

Fiz a recruta em Mafra, no convento do Saramago, e depois fui para a EPAM – Escola Prática de Administração Militar, ali no Lumiar, e depois ocupámos a televisão no 25 de Abril.

Fala-me do controlo da comunicação social mas quando começou a trabalhar também existia censura.

Por isso é que eu não fiz jornalismo político, fiz só desporto, e aí não havia controlo.

E os seus colegas da área política queixavam-se?

Alguns estavam comprometidos com o Estado Novo, não se queixavam muito. Eu é que nunca fui muito apologista do Estado Novo e como não tinha condições para fazer esse jornalismo fazia só desporto. E também estive – pouco tempo – na secção internacional. Fiz a notícia da morte do De Gaulle, e o escândalo do Watergate. Ainda me lembro do título: ‘Watergate, um escândalo que abalou a América e fez cair um presidente’. Mas era mais desporto.

Qual foi o primeiro trabalho que fez?

Comecei com um jogo de basquetebol, entre Portugal e a Inglaterra. A equipa era a base do CIF, que tinha uma equipa de basquetebol feminino. E ganhámos esse jogo. Fui eu que fiz essa crónica. Ainda pus: ‘Muito querer e muita alma na vitória lusa’. Depois tinha outra coisa: sabia titular bem e pediam-me para fazer títulos. O Fernando Pires viu que eu tinha jeito – presunção e água benta, cada um toma a que quer [risos] – e começou-me a dar sempre o jogo importante da jornada. Esses tempos que passei com o Fernando Pires foram dos melhores da minha carreira.

Ia ver os jogos e depois escrevia as peças?

E até lá fora. Fui aos Jogos Olímpicos de Moscovo fazer reportagem, em 1980, estive 30 dias lá. E não havia telemóveis nem computadores. Fazia por telex, escrevia todos os dias. E mandavam-me muitas vezes ao estrangeiro, fazer crónicas de futebol, ora com o Benfica, ora com o Sporting, ora com o Porto. Eu era pluralista. Vi o Porto eliminar o Milão em San Ciro, com um golo de livre do Duda [1979]. Nas Antas, o Porto empatou 0-0 e lá ficou 1-1. Nessa altura o golo fora ainda contava. E o Porto eliminou o Milan. No golo do Porto, a bola bateu no peito do guarda-redes italiano, que era o Albertozzi, e entrou. No dia a seguir, os jornais italianos diziam: ‘Papera de Albertosi’. 

Isso queria dizer frango?

Frango do Albertosi. O Porto empatou, era o Pedroto o treinador, fiz a crónica para o Diário de Notícias e para a Rádio Renascença. Dei os parabéns ao Porto na Renascença, passado meia hora era toda a gente a dar os parabéns ao Porto. E era caso para isso, eliminar o Milan em San Ciro é uma proeza.

E os Jogos Olímpicos de Moscovo?

Passava a vida na aldeia olímpica, no centro de imprensa, no estádio olímpico, no hotel. O meu colega Carlos Miranda, que foi enviado especial d’A Bola pôs ‘Moscovo, cidade proibida’, inspirado no Jorge Amado. Como quem diz ‘não tive tempo para nada’. Eu também não tive. Mas houve uma coisa curiosa. Os Jogos de Moscovo foram muito melhores do que a guerra do Putin [risos], nem são coisas comparáveis. Mas os Estados Unidos boicotaram os Jogos de Moscovo, como represália à invasão do Afeganistão por parte da União Soviética. Mas eu critiquei o boicote, porque achava – ainda hoje acho – que política e desporto não devem ser misturados. E quando cheguei à redação, o meu diretor, que era o Mário Mesquita, diz-me assim: ‘Você ultrapassou o Le Monde pela esquerda!’ [risos] Ele queria um exercício de anti-comunismo primário, mas em plena Guerra Fria eu não achei razoável fazer uma coisa dessas.

Em 71 como era o ambiente na redação?

Maravilhoso, de grande camaradagem. E até lhe vou dizer mais: dantes, quando íamos lá fora, quando eu ia com o Vítor Santos, pel’A Bola, o David Sequerra, o Faria de Morais, pela Capital, o Aurélio Márcio, pelo Diário Popular, havia entreajuda. 

Camaradagem?

Camaradagem. Quando eu ia à cabine do árbitro. Como eu falava bem inglês, era na altura em que o árbitro ainda falava com os jornalistas, eles pediam-me para eu ir falar com o árbitro. E aquilo que o árbitro dizia eu dava a todos. E o Vítor Santos ia à cabine da equipa adversária do Porto ou do Benfica e o que eles diziam ele dava-me a mim. Isso hoje é impensável. Ajudávamo-nos uns aos outros, e jornais diferentes, concorrentes.

Na redação do DN era ali na Avenida da Liberdade. Devia-se fumar bastante, devia haver máquinas de escrever…

Havia, havia. Eu fazia as crónicas em manuscrito, uma vez o Fernando Pires é que insistiu comigo: ‘Você tem de começar a escrever à máquina’. E foi um conselho muito útil, porque depois com os computadores e com os telemóveis foi uma vantagem. Ainda hoje mando as crónicas para A Bola por email. Ele era muito meu amigo. Os outros grandes amigos que eu tinha era o Guilherme Melo, o Alexandre Manuel e o Celso Madeira, que era o chefe de secretaria. Foram grandes camaradas. E não os esquecerei. Tive grandes amigos na comunicação social. Eu também tive sempre uma postura correta. Vou-lhe contar. De 81 a 83 fui chefe de redação da Antena 1. Não era diretor de jure mas era diretor de facto. Eu é que era o homem-forte. Entrei em 81 mas o conselho de redação votou contra mim. Passado um ano e meio, dois anos, vieram pedir-me desculpa e para continuar. Só que a rádio tem notícias de meia em meia hora, eu estava cansado, entrava às seis da manhã, saía à uma da noite. Este horário aguenta-se um ano, dois anos.

É violento. E por que votaram contra si?

Talvez pela minha ligação ao PSD. Depois vieram pedir desculpa, foi uma grande homenagem que me prestaram. E o dr. Mário Soares também queria que eu continuasse, quando fez o Bloco Central. Mas eu disse: ‘Sr. dr., desculpe, mas eu estou cansado, isto é muito violento’.

Recuemos um pouco. Estava a trabalhar no 25 de Abril?

Estava na EPAM [Escola Prática de Administração Militar]. E o António Patrício Gouveia, que tinha sido meu colega em Económicas, telefonou-me: ‘Há um golpe militar’. E depois só pediram voluntários, não obrigaram ninguém a aderir. E eu fui de alma e coração. E depois ocupei a televisão.

Como foi isso?

A RTP estava para ser ocupada por tropa de elite, Comandos ou Pára-quedistas. E foi pelos cadetes da EPAM, por nós. Foi giro. Olhe, o Zé Mensurado, que era pivot, chegou lá e queria entrar. E eu disse: ‘Desculpe, mas tenho que ir falar com o meu chefe’. E fui lá acima falar com o chefe, o António Reis. Passado um bocadinho fui lá. ‘Zé Mensurado, desculpe mas não precisamos dos seus serviços’. E ele achou extremamente educada a maneira como o dispensei. A ocupação foi pacífica, não houve resistência. E estivemos a ocupar a televisão muito tempo ainda, mais de um mês. Mas o 25 de Abril foi positivo, foi uma coisa boa que aconteceu ao país. O programa do MFA tinha os 3Ds, que eram ‘democratizar’, ‘descolonizar’ e ‘desenvolver’. Só o desenvolvimento, quanto a mim, é que ainda não está cumprido totalmente. Mas a descolonização foi a possível, a democratização é praticamente plena. O desenvolvimento é que ainda está um bocadinho aquém.

É verdade que apanhou um tiro quando estava na tropa?

Apanhei, apanhei. Foi em 75, há quase 50 anos. Apanhei um tiro na barriga, foi o Seixas da Costa. Conhece?

O embaixador?

O embaixador. Foi ele que me deu o tiro. Estávamos na tropa, encostou-me a arma à barriga e disse assim: ‘E se eu te desse um tiro?’. E disparou. Depois disse que foi sem querer, que não sabia que a arma estava carregada. É a vida. Mas sobrevivi. Até costumo dizer na brincadeira que quem leva um tiro à queima-roupa na barriga e sobrevive fica vacinado para tudo! [risos]

Lembra-se do que sentiu?

Parecia um filme de cowboys. Fiquei prostrado, a esvair-me, e levaram-me para o Hospital Militar. Fiquei entre a vida e a morte, fui operado de urgência, com o Dr. Leote Nobre, que me salvou a vida, com uma competência exemplar. Levei duas transfusões de sangue, depois fui operado e fiquei bom. 

Como se resolveu a situação?

Sabe que naquele tempo os pais mandavam nos filhos. E eu disse ao meu pai que tinha sido sem querer, não foi com intenção de matar e o meu pai ilibou-o. ‘Se foi sem querer, foi sem querer’. Naquela altura também era difícil incriminá-lo.

A tropa era um bocado a ‘tropa fandanga’. [risos] Mas a coisa foi um bocado especulada, porque eu era do PPD e ele era do MES [Movimento de Esquerda Socialista], só depois é que foi para o PS. Eu do PPD e ele do MES… Depois, como eu estava entre a vida e a morte, podia morrer a qualquer instante, o dr. Sá Carneiro tinha um comunicado já feito: ‘O nosso heroico militante Simões Ilharco, selvaticamente assassinado por um elemento da extrema-esquerda…’. [risos]

A coisa ficou por aí?

Ficou. Já o encontrei várias vezes e falo com ele. O Crime fez manchete uma vez com isso: ‘Secretário de Estado dá tiro a jornalista’.

Ficou com sequelas?

Levei toda a minha vida sem nenhum incidente. Fiz muitas viagens, tenho dois filhos dos quais me posso orgulhar, um é magistrado, o outro é advogado. Estou convencido de que se não tenho perdoado talvez não tivesse levado uma vida tão boa e tão feliz como tive. Ainda estou no ativo com a minha idade, já viu? Não fiquei com a pedra no sapato. Até falo com ele e já o quis entrevistar depois disso. Não fiquei a remoer. Acho que devemos perdoar o mal que nos fazem. Não pode ser o ‘olho por olho, dente por dente’. Se eu não lhe tenho perdoado, era capaz de não levar uma vida tão feliz.

E guardou a bala como recordação?

A bala está alojada na fossa ilíaca. Como estava em local inacessível, o dr. Leote Nobre não pôde tirá-la. Mas já fiz um exame à coluna e a bala está em sítio que não causa transtorno nenhum. No meio do azar tive sorte. E tinha uma declaração do médico para os aeroportos. Se a bala acusasse [no detetor de metais], eu mostrava a declaração. Mas nunca apitou.

Além desse episódio insólito, aquele período do verão quente, a seguir ao 25 de Abril, foi conturbado.

Fui saneado do Diário de Notícias, pelo Saramago. Lembra-se dos 24? Eu fui um deles. Andei na rua a gritar: ‘O Diário de Notícias é do povo, não é de Moscovo’. Mas depois o Cunha Rego, a direção que veio a seguir, convidou-me a voltar, o saneamento não me causou grande mossa. Aliás, depois também entrevistei o Cunhal, o Carvalhas e o Jerónimo de Sousa. A última entrevista que o Cunhal deu à imprensa escrita foi a mim, para o Semanário. Não fiquei com nenhum rancor. 

E ainda chegou a trabalhar com o Saramago ou foi logo saneado?

Cheguei, cheguei. Ele tinha confiança em mim. Quando era eu que estava a fechar, ele dizia: ‘Então vou descansado’. Repare que ali houve um ato de rebeldia. Eu fui saneado pelo Saramago e saneado pelo PS duas vezes: pelo Mário Bettencourt Resendes, em 96, e a Edite Estrela também me saneou da Acção Socialista. Mas os saneamentos do PS para mim foram mais cruéis e mais gravosos do que os do PC. E vai concordar comigo. Com o Saramago houve um ato de rebeldia da nossa parte, nós contestámos na praça pública a orientação do jornal, houve um ato de indisciplina. O saneamento é mais justificável. Agora, pelo PS foi por coisas que escrevia, o que é mais gravoso e mais cruel. Com o PS não tive nenhum ato de indisciplina, foi censura pura. Eu fui sempre incómodo a escrever.

Disse que o ambiente no Diário de Notícias quando chegou era muito bom. Depois do 25 de Abril manteve-se assim ou mudou?

Era um bocado diferente. Foi sempre bom, mas depois houve uma grande instabilidade, a direção mudava com muita frequência. E quando há instabilidade o ambiente ressente-se um pouco, é normal. Mas o Diário de Notícias agora afundou-se quase com o aparato do Titanic. Nós ao domingo chegámos a tirar 240 mil exemplares, tinha um suplemento de Desporto, que fazia eu e o Fernando Pires.

A camaradagem de que falou estendia-se para lá da das horas do expediente?

Às vezes íamos cear ao Ribadouro. Eu ficava sempre a fechar, dava o OK para o jornal ir para a rotativa. Ia buscar o meu exemplar à rotativa e levava-o para casa debaixo do braço, às cinco, seis, sete da manhã. Depois via o que tinha deixado passar ou não. Se tivesse deixado passar alguma coisa [uma gralha] caía-me tudo em cima no dia a seguir.

Até houve um amigo, o Rocha Vieira, que foi diretor do Tal & Qual, que me dizia: ‘Eles para ti são muito maus. Estão-te sempre a cravar para fechares o jornal, és uma vítima’. Mas tinham grande confiança em mim. Os tipógrafos diziam que eu era quem fechava melhor o jornal. Tinha essa fama – fama e proveito. Estavam sempre a pedir-me para fechar e eu não dizia que não. Mas prejudiquei-me. Vi pouco os meus filhos a crescer, a família sai sacrificada. Chegava tardíssimo. Uma vez o corpo do título da manchete era inferior ao corpo do título do meio da página. Não podia deixar passar uma coisa dessas. Tive de fazer a página nova na tipografia. Houve uma vez que bati o recorde, fiz 14 páginas de novo. E o Fernando Pires dava-me sempre apoio. Dessa vez contei-lhe que tinha feito 14 páginas e ele disse: ‘O jornal está a ser feito com os pés, vou atuar rapidamente e em força’. Apoiou-me. Fechei o jornal vezes sem conta. No tempo do Mário Mesquita, do Cunha Rego…

Isso era quase uma vida do avesso, deitar-se a essas horas.

Depois dormia até à uma, duas da tarde, chegava à redação às três, quatro, lá me pediam para fechar, e começava tudo outra vez. O jornalismo é uma profissão apaixonante, e muito absorvente, mas pouco gratificante. Um terço dos jornalistas portugueses ganha 700 euros, sabia? É muito pouco para a responsabilidade.

No seu tempo ganhava-se melhor, não era?

Cheguei a ganhar 400 contos [dois mil euros] limpos. Estava no Semanário e no Diário de Notícias. Foi o máximo que ganhei.

Que trabalhos lhe deram mais gozo?

Foram os Jogos Olímpicos de Moscovo e foi uma reportagem com o Balsemão quando ele era primeiro-ministro. Ele foi à ONU, a Nova Iorque, e depois foi ao Canadá. Vínhamos de regresso e houve uma ameaça de bomba a bordo. O avião voltou para trás e eu fiz a reportagem para a Antena 1, toda a noite, numa cabine telefónica do aeroporto JFK. Já viu como os telefones funcionam nos Estados Unidos? Ouvia-se melhor do que se estivesse a falar do Marquês para minha casa em Alfragide! [risos] Não sei se sabe, o Príncipe de Edimburgo fez uma viagem aos Estados Unidos e no final deu uma conferência de imprensa. E perguntaram-lhe: ‘Do que gostou mais nos Estados Unidos, o que o impressionou mais?’. E ele: ‘O funcionamento dos telefones’.

Isso deve ter sido pouco depois do acidente de Camarate. Devia estar bem vivo o trauma.

Foi dois anos depois de Camarate. E o avião aterrou de emergência no aeroporto Kennedy, depois vasculharam aquilo tudo, o avião foi todo vistoriado, e regressámos no dia a seguir. E eu passei toda a noite a mandar despachos para a Antena 1.

Fez muitas viagens além dessas duas, a Moscovo e a Nova Iorque?

Fui ao Canadá, ao Brasil, à Alemanha, ao Senegal, fui com o Cavaco a Angola… Fiz uma reportagem tão boa com o Cavaco na Madeira, sabe o prémio que me deram? Mandaram-me à Madeira outra vez! Uma vez até fui experimentar um pneu da Pirelli à Suíça. As viagens nessa altura eram um prémio, um estímulo. E eu, como arranjava grandes ‘cachas’ e grandes exclusivos, davam-me muitos ‘prémios’.

Arranjava grandes ‘cachas’ porque tinha boas fontes?

Sim, dei o fim do Bloco Central no Diário de Notícias… Foi o Eduardo Pereira, que era ministro da Administração Interna, que me deu essa notícia. E o Mário Mesquita deu um título bom: ‘Bloco Central acaba quando a CEE começa’. [risos] O Mesquita tinha bons editoriais quando era diretor do Diário de Notícias. Alguns críticos para o PS. Estávamos com os salários em atraso – ainda o DN era uma empresa pública – e ele dizia que o governo não podia estar para as empresas públicas como o McEnroe [tenista norte-americano conhecido pelo seu mau génio] estava para os árbitros. [risos] Fez outro editorial contra os ‘yes men’ do PS, que dizem ao líder o que o líder quer ouvir, e queriam neutralizá-lo no Largo do Rato, por causa dessas críticas. Ele procurou dar uma certa independência ao jornal, retirá-lo do situacionismo, porque o DN sempre teve uma vocação situacionista que roubou um bocadinho a credibilidade. Foi o jornal do Saramago, o jornal do Sá Carneiro, o jornal do Soares, teve tantos donos que a credibilidade se foi esvaindo.

Quando acaba por sair do DN?

Em 96. Estive de 1971 a 1996, 25 anos. E depois reformei-me aos 55 – havia uma lei do Ferro Rodrigues, com 55 de idade e 30 ou mais anos de descontos podia reformar-me, e aproveitei. Estou reformado há 20 anos, e nunca houve uma falha. E isso dá-me uma certa independência, não dependo de ninguém. E continuo sempre a escrever. Dia sim, dia não publico um texto de opinião n’A Bola. Não pagam mas mantenho o meu nome.

E aproveitou a reforma para fazer outras coisas?

Não. Eu tenho o bichinho do jornalismo. Fazer outra coisa para mim é impensável. Ou é o jornalismo ou então não é nada.

Começou na secção de Desporto do DN e hoje continua a escrever n’A Bola. O que pensa do desporto em Portugal?

Somos melhores no desporto do que na política. Fomos campeões da Europa de futebol, campeões do mundo de hóquei em patins, campeões do mundo de canoagem, ganhámos medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos. Na política não temos estes títulos. E o desporto é uma escola de virtudes.

Isso é uma visão um bocadinho idílica.

Não é bem idílica. É a visão do ideal olímpico do Coubertin, do desporto amador. Mas concordo consigo. O ideal olímpico não tem correspondência com o que se vê pelo mundo fora. De vez em quando há umas manchas que toldam um bocado os ideais desportivos.

Temos os casos de doping no ciclismo, por exemplo.

E os incidentes [do título] no Dragão. Fiz um artigo para A Bola com o título ‘O 25 de Abril ainda não chegou ao Dragão’. O comportamento das claques, a droga… não digo que o desporto seja uma escola de virtudes perfeita.

E depois há os casos de corrupção, os dirigentes sob suspeita.

Também há políticos corruptos. A corrupção é nos dois lados. O nosso país é um bocado corrupto e impreparado. Costumo dizer que Portugal não é um país para gente séria, porque quanto mais séria a pessoa é, mais baixa é a sua reforma. Eu tenho uma reforma baixa, fui sempre sério. Na nossa profissão tem de se fazer favores, jeitinhos, fretes, recados, e eu nunca fiz isso. Costumo dizer ‘pobre mas honrado’.

Sofreu represálias?

Essas coisas a gente não chega a saber. Estes saneamentos foram represálias por coisas que escrevi e não gostaram. Mas nunca fui, como dizem os ingleses, ‘His master’s voice’. Fui sempre independente e escrevi sempre pela minha cabeça, fui sempre o dono das minhas prosas.

Destes 50 anos de jornalismo, o que tira como o melhor e o pior?

O melhor foi ter sido sempre fiel ao jornalismo. Chegar à minha idade, vou fazer 75 anos agora, de consciência tranquila. O pior foram os delitos de opinião. Se há liberdade de expressão é contraditório uma pessoa ser punida por determinada opinião. Isso foi o pior. Mas vou escrever até poder. Conhece aquela da Maria da Fé? ‘Cantarei até que a voz me doa’. No meu caso será até que mão me doa.