De certa forma, o princípio da noite da última terça-feira em Las Ventas trouxe-me à memória o princípio da noite de 4 de julho de 2004, no Estádio da Luz. Um jovem amigo, que trazia dentro de si a esperança juvenil de um triunfo há muito sonhado, saiu da cabeça baixa da arena de Madrid depois de ter demorado uma eternidade a quebrar a resistência do último touro que deveria ser o protagonista da sua noite de estreia na maior praça de Espanha.
Tal como Ronaldo chorou aos soluços no meu ombro, eu vi Juanito atravessar aquele infinito pedaço de terra batida de 60 metros de diâmetro com uma aura de profunda tristeza a envolvê-lo. Em Las Ventas costuma haver sempre um vento assassino preparado para desfazer as manobras de capa e muleta, desagradando o público que tanto se volta contra o touro como contra o toureiro.
O sonho de Juanito foi levado pelo vento e por uma besta malhada de 588 quilos que não estava disposta nem a ser dominada e muito menos a morrer sem resistência. Digo-lhe, como disse a Cristiano Ronaldo, há dezoito anos: «És um menino. Tens ainda tudo para ganhar, na arena e na vida!». O orgulho que perpassa por Las Ventas é de uma arrogância que roça o extremo dos Grandes de Espanha. «Eso no es Sevilla!», gritam nas bancadas. E é por isso que, desde que foi inaugurada em 1934, apenas 14 rabos foram concedidos a 12 toureiros naquela que é a segunda maior praça do planeta depois da da Cidade do México.
Eu, que nasci sem irmãos, fiz dos meus amigos irmãos infinitos. Trago-os, dia a dia, no meu abraço. Na tristeza e na alegria. Hoje, felizmente, aqui em Ponta Delgada, na alegria imensa do meu mano Francisco Febrero (por extenso Xitó), que festeja a sua neta, princesa Leia, uma pequenina que é o reflexo do seu sorriso tão fácil como um domingo de manhã. A vida de todos nós, humanos simples e sem ambições de grandezas plenas de popularidade, também é feita de vitórias e de derrotas. Eu vivo, pessoal e profundamente, um momento de derrota. Não me inferiorizo por assumi-lo.
Talvez me sinta, por isso, mais íntimo das derrotas dos meus companheiros. Mas não nasci para viver do lado dos derrotados. A despeito de todos os erros, de tantas batalhas perdidas e ainda por perder, chegarei ao fim do caminho com a certeza de que ganhei numa vida feita à medida daquilo que eu próprio decidi, uma vida de momentos gloriosos de sol, nunca medíocre, nunca entediante, nunca vida-vidinha, nunca digna de arrependimento.
Por isso, ouço a voz de Victor Jara, o poeta, professor e cantor torturado e fuzilado pelos sicários de Pinochet depois do golpe de 11 de setembro de 1973: «Levántate y mira la montaña/De donde viene el viento, el sol y el agua/Tú que manejas el curso de los ríos/Tú que sembraste el vuelo de tu alma». Os velhacos abandonaram o seu corpo numa rua de uma favela de Santiago. Chovia sangue. O cadáver de um homem atirado para um monte de lixo pode ser a imagem inequívoca de um vencedor. Mas nunca de um derrotado.
Há muitos, muito anos, mais de trinta, eu estava em São Miguel para fazer para A Bola a reportagem de um confronto entre dois clubes que tinham a ambição de chegarem um dia à I Divisão do futebol português: Santa Clara e Alverca. Não me lembro do resultado, mas também não importa. O Alverca chegou primeiro e depois partiu para não voltar. O Santa Clara ainda cá está.
O treinador do Alverca era o meu querido amigo Minervino Pietra. Poucos jogadores vi como Pietra. Aquele cabelo crespo, revoltado, aquela figura magra de matador de touros, a valentia que colocava em cada movimentos, mesmo que o adversário que caísse sobre ele pesasse 588 quilos como o monstro de Juanito em Las Ventas.
Em maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto»: escreveu Manuel Alegre, meu mestre muito querido que fez o favor de me ensinar tantas e tantas coisas, sobretudo o princípio da coragem, dessa coragem que vem de dentro e não nos permite que nos verguemos nunca perante a prepotência. Em muitos momentos da minha vida tive de escolher entre dois caminhos, sendo que o da coragem e o da verdade era também o da dor que fica connosco para sempre, sem subterfúgios, sem alívios, só dor de ter a alma em carne viva. De cada vez que abro os braços para receber neles um amigo, sinto que, de certa forma, estou no meu posto.
Estive no meu posto em Madrid, estou no meu posto em São Miguel, estou no meu posto quando preciso de dizer a Minervino José Lopes Pietra, a quem chamávamos o Cara d’Osga – ele que esteve sempre no seu posto! – que tenho uma abraço para lhe dar que não precisa de palavras. Tu sabes o que quero dizer-lhe. Ele sabe o tamanho da amizade do meu silêncio.