“Neste último meio século de vida a Igreja em Lisboa contou com ele em todas as frentes”, evocou ontem D. Manuel Clemente, na última despedida do padre João Seabra, rosto conhecido dos estudantes e de muitas famílias que acompanhou na Universidade Católica de Lisboa como capelão, nas Equipas de Casais e de Jovens de Nossa Senhora e das comunidades do Colégio de São Tomás, em Lisboa, e, nos últimos anos, do Colégio S. José do Ramalhão em Sintra, ambos geridos pela APECEF – Associação para a Educação, Cultura e Formação, que fundou em 2001. Um caminho inspirado pelo movimento Comunhão e Libertação, que há 30 anos ajudou a trazer para Portugal.
O percurso lembrado nos últimos dias depois da partida do padre na última sexta-feira, depois de dois anos de muita debilitação à conta da doença de Parkinson, começou num Portugal diferente, em que um “atrevido” João Seabra estava cunhado para ser advogado ou político, tendo sido surpresa a decisão que assumiu, aos 23 anos, e já praticamente licenciado em Direito, de que queria ser padre.
“Ninguém o previa. Nem o próprio. Tão-pouco os familiares mais próximos. E dos amigos chegados, só um viu a vocação acontecer”, escreveram em "João Seabra – À Sua Maneira", biografia publicada em 2018, Raquel Abecasis e José Luís Ramos Pinheiro, um trabalho que resultou de dezenas de horas de conversa e testemunhos. Uma figura singular, sugeria ainda ontem, num artigo após a morte, José Luís Ramos Pinheiro, professor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica: “Quem foi este seminarista que combinava a oratória típica de um brilhante licenciado em Direito, com uma narrativa de Deus tocante e comovedora? Quem foi este homem que decidiu entrar no seminário dos Olivais com uma Igreja em crise e um país à beira dela? Quem era o jovem seminarista que foi acalmar os militares do 25 de Abril que pretendiam ocupar o seminário dos Olivais, por suspeita de armas escondidas, trocando graças e cigarros que abateram a tensão e a desconfiança injustificadas? Quem foi este homem a quem nunca custou obedecer, sem, porém, deixar de manifestar o olhar próprio sobre o que via, sentia e pressentia?”
Muita graça na ponta da língua
João Maria Félix da Costa Seabra nasceu a 14 de junho de 1949. O pai era médico, monárquico, crítico de Salazar, a mãe licenciada em Físico-Química, conservadores na moral mas não em relação às ideias.
O Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, seria a primeira montra de uma personalidade extrovertida e incubadora de amizades, entre as quais Marcelo Rebelo de Sousa (os pais, António e Baltazar, já eram amigos), e já na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa manteve-se colega de turma de Marcelo e ainda de Leonor Beleza, Jorge Braga de Macedo, João Amaral, João Soares ou Rão Kyao.
Ainda antes, no Liceu, a religião já era estruturante: de uma família católica praticante – não sabia o que era o contrário – costumava ir à missa das 7h na Basílica da Estrela com Marcelo, recorda-se na biografia. Participavam também nos encontros da Juventude Escolar Católica na Capela do Rato. Quando chegaram ao último ano do liceu, apanharam a primeira turma mista. “Estudámos o mínimo possível e gozámos a vida”, recorda, neste mesmo livro, Marcelo Rebelo de Sousa.
“João Seabra não seria especialmente namoradeiro, enquanto Marcelo se recorda de ‘andar por ali com várias, sem serem namoros ostensivos’. Mas João Seabra tinha mais saída, garantem próximos e próximas da altura. O futuro padre era figura incontornável em todos os grupos e tertúlias e não dispensava o charme exuberante e a muita graça na ponta da língua. O imenso sentido de humor combinado com a inteligência viva e uma insaciável perspicácia faziam dele um ‘adversário’ temível. Um enfant terrible, nas palavras de uma antiga colega”, recordam os biógrafos.
“Ganhava todas as discussões”, sabia mais que os outros e era confiante, continuam, somando por isso anticorpos mas também admiração. Terá sido o brilho de João Seabra a obrigar Marcelo a vencer a timidez. “Se eu sou um bocadinho extrovertido em excesso, é por culpa de João Seabra”, conta neste mesmo livro o hoje Presidente da República – conta-se que se dizia que Seabra chegaria um dia a primeiro-ministro e Marcelo a cardeal.
Na faculdade, a forma de estudar do amigo João tirava do sério Marcelo Rebelo de Sousa. “Marcelo estudava por todos. Seabra não era de grandes esforços. Nas vésperas dos exames era vê-lo em casa de Marcelo, como muitas vezes acontecera durante a fase do liceu. (…) Por vezes dormitava, mas, quando chegava ao fim, estava estudado. Marcelo ficava estarrecido. Como é que João, mesmo a dormitar, havia sido capaz de captar ‘aquela’ parte da matéria?”.
João Soares, colega desses tempos, lembra-o assim: “Tenho a melhor das impressões dele e não é daquelas coisas triviais que se dizem quando as pessoas morrem. Era um tipo inteligentíssimo, vivíssimo. Para mim foi uma surpresa, não direi a conversão, mas a decisão de ir para padre, que já não acompanhei tanto. Mas fomos colegas de anos, com o Marcelo, com o Braga de Macedo, com a Leonor Beleza e tantos outros. Era bom aluno, bom orador. Ia à reunião geral dos estudantes que, às vezes eram momentos mais complicados, e fazia intervenções atrevidas. Um dia a certa altura ele diz: ‘Eu peço a palavra’. Já não me lembro quem é que não queria dar, mas ele insiste: “Peço a palavra e, se não ma dão, eu tomo-a”. Achei imensa graça e passei a usar a frase, às vezes a dizer que estava a citar o padre João Seabra”, conta ao i.
João Soares recorda ainda desses tempos um comício em que o jovem João Seabra apoiou a candidatura monárquica da CEUD, em 1969, a sua primeira incursão na política. “Achei que iria ser um cidadão comum, envolvido nas coisas do seu tempo. Foi uma surpresa vê-lo já de cabeção. Mantivemos sempre uma relação muito cordial. Depois quando fui autarca apareceu-me várias vezes por causa do colégio (São Tomás) que queriam lançar e facilitei sempre. E depois disse-lhe: agora, se fazes favor, apoias-me. Das duas vezes que fui candidato apoiou-me”.
Não sendo crente, João Soares não se lembra de ter ido a uma missa, mas continuou a ver o lado atrevido de João Seabra. “Era atrevido em todos os sentidos e em algo que ainda hoje é ser atrevido, que é as pessoas pensarem pela sua própria cabeça. Pensava pela cabeça dele, não pensava pela cabeça de ninguém. Como também sou assim, tínhamos isso em comum. Tenho família política, mais de esquerda, ele talvez fosse mais à direita, mas não era um homem do regime anterior, isso claramente. Era um homem culto, que pensava pela sua cabeça”.
Nesses anos da faculdade, João Seabra chegou a pensar em casar e em ter dez filhos, lê-se em "João Seabra – À Sua Maneira". Confidenciou então a um amigo, João Amaral, o que lhe andava na cabeça. Estavam em 1972, poucos meses depois da saída oficial do Cardeal Cerejeira do Patriarcado de Lisboa – figura que o inspirou desde que o ajudou numa missa em criança – com uma homilia em que pedia perdão pelo que tivesse feito de mal ou não tivesse feito. “Aquele homem tinha pegado na Igreja Portuguesa em cacos”, contou aos biógrafos. “Aquela homilia, em 1971, tinha eu 21, ia fazer 22 anos, impressionou-me imenso”.
“Estou aqui para ir para padre”
No final de 1972, estava decidido. “Em pleno mês de janeiro de 1973, ainda antes do exame final de Direito, João Seabra telefonou para o Seminário dos Olivais. O jovem finalista de Direito queria anunciar primeiro à Igreja uma decisão que a família e os amigos ignoravam”, conta-se no livro, recordando o inesperado desses dias. João Seabra telefonou para a Paróquia de Santa Isabel, para falar com um padre que tinha conhecido 15 anos antes. Passaram o telefone ao padre José Policarpo, futuro Patriarca.
Marcaram um encontro. “Olhe, eu não quero ir para padre nem nunca quis, mas ultimamente tenho-me convencido de que Deus quer que vá. Portanto, estou aqui para ir para padre” – apresentou-se assim, lembrou aos biógrafos João Seabra, considerando que tinha sido uma maneira pretensiosa de o dizer, “à João Seabra”.
Seria ordenado em 1978. Nunca mais tirou o cabeção, uma das suas imagens de marca. “Tenho a certeza de que Deus me chamou e tenho a certeza desde que tomei essa decisão”, contou numa entrevista, em 1992, a Maria João Avillez. Seriam 11 naquele ano nos Olivais. “Uma das componentes da minha decisão foi um sentido trágico da Igreja. Uma coisa que amava, que tinha sentido segura na minha infância e adolescência, e que via no princípio da década de 70 a esboroar-se à minha volta.”
Na mesma entrevista, respondia sobre as suas contradições: gostar de se vestir bem, de se evidenciar, a vaidade. “Serei talvez mais recrutadamente contraditório do que outros – não sei se estou totalmente consciente dos meus defeitos, mas estou consciente disso (…) – mas o primeiro ponto lúcido e verdadeiro para aceitar na vida uma grandeza é a consciência de sermos pecadores. Diante de um mistério e uma graça imensa como aquela que me aconteceu, a consciência da minha desproporção, de que sou totalmente inadequado a esta história, de que é completamente fora de todo o humano propósito que através da minha pobre, fraca e débil contrariedade possa passar a grandeza que é o sacerdócio de Jesus Cristo, [isto é tão visível] que se eu não tivesse a consciência disso seria um tonto”, respondeu, indo às críticas de ser snobe e elitista.
“Dizer que só me dou com certa classe social é uma calúnia. É mentira. Não me perturba porque é mentira. Agora as coisas que são a verdade: que sou arrogante, que às vezes tenho uma forma petulante de falar com as pessoas, que reajo de forma emocional e excessivamente, que me enervo com facilidade, que levanto a voz, que tenho um mau feito… Tenho um feito horroroso. Essas coisas, o que criam em mim? Primeiro uma dor, uma dor grande. Dói-me ser assim. A dor de, através dos defeitos da minha humanidade, tornar não transparente às pessoas a presença de Cristo. Mas não é um escândalo. Não me escandalizo comigo: nosso Senhor chamou-me assim para ser padre, já sabia como eu era. Eu já era assim quando tinha 23 anos. Foi lá onde eu estava, no meu sossego, e chamou-me assim. Tem que se haver comigo. Se não me queria, não me chamava. Tento-me emendar para ver se não vou até ao fim do mundo para o purgatório. Tento porque tenho obrigação de dar bom exemplo e porque é importante para a salvação da minha alma, mas não me escandalizo”.
Depois de ser ordenado, foi capelão da Universidade Católica de 1978 a 1988, pároco de Santos-o-Velho de 1989 a 2002 e de Nossa Senhora da Encarnação, no Chiado, de 2004 a 2018. Era cónego da Sé Patriarcal de Lisboa, embora retirado por motivo de doença. Ainda no final dos anos 80, conhece o movimento católico Comunhão e Libertação (CL), fundado em 1954 pelo padre italiano Luigi Giussani, que ajudou a trazer para Portugal nas últimas três décadas e se tornou a sua referência pastoral.
Madalena Fontoura, amiga de longa data que viveu todo este caminho, sublinha ao i a sua “fé inteligente e a inteligência na fé na forma de lidar com o mundo e com as pessoas. Tinha um olhar cristão e uma fé em Jesus totalmente inteligente que tinha em conta toda a sua pessoa, toda a sua cultura. Nele a síntese entre a fé e a inteligência do humano era uma coisa só e isso era fascinante nele como padre e como homem, porque mesmo quem não se revia na fé podia reconhecê-lo. Quem bebia da sua fé era levado a sair de um quietismo para viver uma fé que abraçava toda a vida.”
Cuidadoso na liturgia e com gosto por homílias compridas, Madalena Fontoura recorda que ainda assim as missas eram rápidas e práticas, “um alimento para a vida”.
“Para ele o mais importante era a palavra de Deus e a vida das pessoas”, diz, lembrando de um modo especial as confissões. “Sempre foi um homem que abraçou as nossas misérias e nos apontou para cima. Podia haver a ideia de que era muito rigoroso e ralhava, mas a coisa mais sossegada da vida era irmo-nos confessar com ele. Era a pessoa mais misericordiosa. Ainda este domingo, na missa por alma dele, o cónego Armando Duarte, dos Mártires, estava a dizer que tinha tido imensa gente a lembrar o padre João Seabra e muitos eram taxistas. Confessar-se ao padre João era uma experiência de misericórdia, sem censura, sempre a abraçar a miséria e a apontar para o ideal. Havia sempre como que uma janela de respiração: nunca tínhamos medo de ser quem éramos, queríamos era chegar mais longe”.
“Um educador nato”
A entrada no mundo da educação com a APECEF foi marcante, para João Seabra uma experiência inspirada pelo envolvimento Comunhão e Libertação, que conhece por intermediário da vaticanista Aura Miguel. “Ele já era um educador nato”, conta Madalena Fontoura. “Ainda antes de conhecermos o movimento Comunhão e Libertação há 35 anos, ele já tinha a noção de que a educação era incompleta se não tivesse uma dimensão espiritual e religiosa, era deixar metade do significado do mundo e da vida fora. Tinha a intuição de que a educação tinha de ir ao significado último das coisas e sempre nos transmitiu muito isso.” Quando conhece o fundador do CL, encontra em Luigi Giussani um pensamento estruturado, explica Fontoura.
“Não só se reviu mas viu como traduzi-lo e pô-lo em prática. No fundo a ideia de que, quem educa, atravessa-se na primeira pessoa. Ou seja, não se consegue educar só propondo coisas, mas num encontro de liberdades entre quem educa e quem é educado. A pessoa do educador é matéria da educação. A ideia do educador inteiro em cima da mesa, de que o verdadeiro educador é o que suscita uma pergunta no educando, mais do que uma resposta, veio muito de Giussani mas foi ao encontro daquela intuição que o padre João Seabra já tinha. Abraçou-a e bebeu-a. Percebeu que era um diapasão e assim que pode, passados meses de a Aura lhe ter falado de Dom Giussani, foi a Itália ver e teve imenso contacto com o fundador, que tinha por ele uma enorme estima. Todo o movimento acabou por ter por ele uma enorme consideração. Um dos padres mais importantes do CL tinha vindo a Portugal a propósito do centenário do fundador, que estamos a celebrar, foi visitá-lo ao hospital dois dias antes de morrer e disse-nos: o padre João é um patriarca do movimento”.
Em 2003, nasce o colégio de São Tomás, onde João Seabra pediu que o seu corpo fosse velado. Em homenagem, tanto o colégio de Lisboa como o Ramalhão, em Sintra, fundado pelas irmãs dominicanas e hoje gerido pela APECEF, estiveram esta segunda-feira fechados. “Então o que é que me resta? Resta-me a minha vida dada a Deus”, disse na sua homília de despedida, o último ato público em 2018.
Que marcas ficam? “Em primeiro lugar, a fé como amizade pessoal com Cristo”, diz Madalena Fontoura. “E depois esta ideia de compaixão pelo humano, de ver nas pessoas o que são e o que podem ser, e uma noção de que tudo o que temos é mesmo para construir um mundo melhor e que para isso nada nos pode ser estranho: a pobreza, a política, a saúde, a doença. Onde houver vida e homem, tudo é de Cristo e tudo é nosso. A noção de que somos lançados a tudo, é algo que não podemos perder”.