“Só quem assistiu, no Parque e nas ruas, a esse espetáculo impressionante de beleza popular – e foram dezenas de milhar de pessoas – pode bem avaliar do interesse público, da graça, da alegria, da originalidade, do pitoresco simpático e da bizarria que distinguiram a realização que o nosso jornal patrocinou, com o Notícias Ilustrado. Muito bem dizia o nosso colega o Diário de Notícias hoje: lançaram-se os fundamentos para uma grande festa anual, tipicamente portuguesa e popular, a organizar com extensão e superior critério e que a Câmara Municipal devia tomar a si”. Assim resumia o Diário de Lisboa, a 13 de junho de 1932, a primeira grande noite de marchas populares em Lisboa. Com os diferentes jornais da capital a repartir o mérito da festa que enchera de véspera o Parque Mayer, afinal tinham contribuído para os prémios, os aplausos maiores iam para o bairro vencedor – Campo de Ourique – e para o mestre de cerimónias, o jornalista e cineasta José Leitão de Barros, diretor da revista Notícias Ilustrado. Dias antes, no mesmo jornal, Leitão de Barros era elogiado pela fé e tenacidade com que se batia pelo cinema em português: em 1930, com pouco apoio, tinha estreado A Severa, o primeiro filme sonoro produzido em Portugal – e estava na calha, naquele junho de 1932, a criação de uma sociedade portuguesa de filmes sonoros, além da construção dos estúdios da Tobis Portuguesa, que inauguraria em 1933.
Joana Leitão de Barros é uma de sete netos de um personagem também ele cinematográfico de uma Lisboa diferente, mas que se engalanava como agora para os Santos – e onde as marchas acabaram mesmo por sobreviver. Jornalista como o avô, com uma incursão pelo mundo da comunicação empresarial, nos últimos anos tem-se dedicado à escrita. Em 2019 publicou, com a prima Ana Mantero, José Leitão de Barros – A Biografia Roubada (Bizâncio), o resultado de uma investigação sobre a vida de Leitão de Barros. Acaba de publicar Veva (Oficina do Livro), a estreia no romance histórico, a partir da vida não menos singular da aristocrata Genoveva de Lima Mayer Ulrich, que nos anos 20 do século passado se passeava por Lisboa com um leopardo. No 90.º aniversário da primeira edição das marchas populares de Lisboa, pedimos-lhe que recordasse o génio criativo do avô e a história das primeiras marchas, que este domingo voltam a descer a Avenida da Liberdade, como acabou por acontecer espontaneamente há 90 anos. Conviveram pouco – Leitão de Barros morre a 29 de junho de 1967, era Joana pequena. Mas o avô continua a fasciná-la.
Consegue imaginar o ambiente no Parque Mayer naquele 12 de junho de 1932? Que registos encontrou dos preparativos das primeiras marchas?
Quando escrevemos Leitão de Barros, a Biografia Roubada, editado em 2019 pela Bizâncio, integrámos as Marchas num capítulo abrangente que intitulámos “a arte de embasbacar multidões”, que também incluía os cortejos históricos. Teríamos de falar das Marchas, começaram como uma encenação com grande proximidade ao teatro e foram muito mais longe: tornaram-se uma tradição que festeja o sentimento de pertença com alegria, o que não é pouco. Era famosa a energia de Leitão de Barros, entregava-se a todos os pormenores, estava em todo o lado, dirigia entre berros e impropérios carregados de humor e ironia mas tentava sempre tirar o melhor de todos. O ambiente da produção do espetáculo das Marchas não terá andado longe disso. Leitão de Barros fez muitos amigos que conserva até ao fim – a sua tribo é a do teatro, é no ambiente subversivo e livre do teatro que se sente bem. As suas grandes incompatibilidades e incompreensão estão no poder político, que o usa mas que o despreza discretamente. Leitão de Barros era um esteta, interessava-lhe o “efeito” que causa no público, para ele era impossível ter um guarda-roupa de segunda ou uma atuação constrangedora, nada menos do que deslumbrar era aceitável. Enquanto esteve ligado à organização das Marchas bateu-se por esse espetáculo de grande efeito.
Conseguiu perceber de onde veio a ideia?
Tudo terá começado numa conversa ocasional entre Leitão de Barros e o advogado Campos de Figueiredo, administrador do Parque Mayer. Naquela época, o recinto era o centro de espetáculos da Lisboa boémia. A pergunta à queima roupa – “Você não tem uma ideia para animar o Parque Mayer?” – teria consequências. O empresário procurava uma ideia original que atraísse mais público e promovesse a temporada de verão. Inspirando-se nas Festas dos Santos Populares, Leitão de Barros pensou organizar um concurso de ranchos em que participariam os bairros alfacinhas. A centelha cénica esteve na integração do movimento do bailaricos populares. Leitão de Barros viria a reconhecer, em crónica no Diário de Notícias, que se deixara impressionar pela visão de certos maltrapilhos de bairro, na sua maioria descalços, que saiam à noite das vielas dos respetivos bairros e improvisavam bailaricos numa espontânea alegria, que não atraía a curiosidade de ninguém. Logo na primeira edição começou por comunicar o evento no Notícias Ilustrado, que dirigia e fundara, divulgando os preparativos para o grande dia: “o desfile das Marchas Populares noturnas, com o seu caráter típico, e as suas danças, marcações, iluminações e ranchos movimentados”. Nada que não se faça ainda hoje. O Notícias Ilustrado daria depois conta que tinham participado três bairros – Campo de Ourique, Bairro Alto e Alto do Pina – que trouxeram às ruas da cidade, a fantasia e a cor, a música e a “alegria espontânea” dos lisboetas. Em suma, um espetáculo nunca visto, desfilando na Avenida da Liberdade, e uma curiosa maneira de marchar dançando, vagamente inspirada numa tradição popular, como ele tinha confessado, tradição que até então não atraíra a curiosidade de ninguém. O aguarelista Alfredo Roque Gameiro, seu sogro, estudioso do traje popular e grande amante da cidade, desenha o cartaz das primeiras Marchas, vindo também a integrar o júri do concurso, para além de Matos Sequeira, Frederico de Freitas, Martins Barata e Norberto Lopes.
Ganhou Campo de Ourique. Foi uma vitória “limpa” ou já se pressentiam guerras bairristas na altura?
No espólio Leitão de Barros, doado pela família à Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, não encontrei qualquer documento com informação sobre esse tema.
O seu avô seria contratado anos mais tarde pela câmara para as continuar a organizar, não foi?
Depois deste sucesso foram rapidamente apropriadas pelo regime, que as regulamentou e institucionalizou nas Festas da Cidade, através da Câmara Municipal. Leitão de Barros convidaria muitos artistas a juntar-se à equipa, tais como Almada Negreiros, Stuart Carvalhais, Bernardo Marques, Amália Rodrigues, Laura Alves ou Beatriz Costa, entre outros. Não sei bem em que ano preciso deixa Leitão de Barros de colaborar na sua organização. Existe tanta coisa por estudar na ligação de Leitão de Barros à cidade e às encenações nacionalistas em espaço público… Não nos podemos esquecer que em breve ele estará a organizar o cortejo Embaixada do Século XVIII e a Corte de D. João V, realizado em 1934. E, quatro anos depois, o Cortejo Medieval e o Torneio Medieval dos Jerónimos.
O que sabemos é que regressa às Marchas em 1955, e claro quer inovar, já as Marchas lhe deviam parecer uma xaropada do regime. Tenta incluir a ideia de modernidade e cria a “Marcha do Futuro”. Acaba por desfilar com o nome de “Marcha Mecânica de Alvalade”, os figurantes apresentavam-se em lambretas conduzidas pelos rapazes, transportando raparigas com gigantescas asas de vespa. Um desfile que agradou aos mais jovens, que, naquela noite, entre bailaricos, arquinhos e balões, dançaram também ao som do rock and roll. Gostava imenso de ver recuperadas as imagens desse momento. E acho interessante perceber que Leitão de Barros, vai denunciar e contrariar a propaganda que estava a associar as Marchas à tradição. Escreve ele, em 1965: “Àqueles grandes escritores ulissiponenses maiores de 18 e menores de 30 anos que escrevem com alegre erudição sobre as ‘tradicionais marchas de Lisboa’, lamentamos de ter de lhes dizer que as ditas marchas não têm nenhuma tradição verdadeiramente citadina e não são nada na história da cidade.” (Leitão de Barros in Diário de Notícias, 30 de Maio de 1965).
Que homem era José Leitão de Barros? O que a surpreendeu mais quando se aventurou por uma investigação de vários anos à procura das pisadas e marcas deste homem?
As perguntas levam a mais perguntas e Leitão de Barros continua a inquietar-me, mais como biógrafa do que como neta. Como neta tenho o assunto arrumado, como acontece nos afetos. Pela correspondência percebi como, até ao fim, admirou e amou a mulher, a pintora Helena Roque Gameiro, e isso para mim foi pacificador, a artista sensível e de enorme dignidade é um eco sem fim em mim. Foi um criador incansável, ousado, que sofreu com o esvaziamento cultural que o salazarismo impôs e que teve a ingenuidade de pensar que lhe conseguiria escapar. Vivia à margem, pisava limites e transgredia, existe uma reivindicação de Liberdade feita nos anos 20 que persiste, não se apaga com as normas do Estado Novo e a censura.
Percebeu que era próximo do regime, mas por isso pode criticá-lo. Em que era mais crítico?
Teve esperança no Estado Novo, dizia-se apolítico mas queria o progresso que Salazar parecia prometer. Mas qual é o artista que tolera a censura? Pelo que escreve nos Corvos, a sua coluna no Diário de Notícias, publicada nos anos 50 e 60, já no seu período de descontentamento com o regime, ele é sensível à pobreza, assim como ao abandono das crianças à miséria e a secundarização das mulheres. Nos Corvos muito se diz nas entrelinhas, mas ele vai inclusive queixar-se da censura. É forçado a abordar questões quotidianas menores, como o trânsito, para aqui e ali dar umas bicadas em temas maiores. A defesa das capacidades das mulheres que faz nos Corvos vale-lhe muitas cartas de apreço de leitoras, defende a ideia que o trabalho e responsabilidade política das mulheres seria benéfica para o país. A sua mulher Helena dava aulas, viajava e tinha uma conta bancária que administrava, os arriscados investimentos de Leitão de Barros no cinema eram sujeitos à aprovação da mulher, a mulher de Leitão de Barros tinha voz nos assuntos familiares.
Chegou a conhecê-lo? Sentem na família essa nostalgia nestas semanas de Santos?
Sim, sou a filha mais velha do filho de Leitão de Barros. Conheci-o mas tenho poucas recordações dele, morreu quando eu era muito pequena. Descobri-o quando estava preparada para isso. Comecei a trazer para casa os caixotes com os seus papéis, durante muitos meses havia sempre documentos para ler, levava-os para a cama comigo, a minha casa começou a cheirar a mofo. Li dezenas de guiões que não conseguiu filmar, as cartas de muitos artistas cúmplices, acompanhei as suas tentativas desastrosas nos corredores do poder, sofri com o desaire da Nau de São Vicente, projeto que o mortificou e atou ao regime. Foram sete anos, os últimos dois partilhados com a minha prima Ana Mantero, coautora da biografia. Leitão de Barros morreu a 29 de junho de 1967, dia de São Pedro, de forma que para a família esta coincidência é uma ironia, dança-se e morre-se por esses dias. Torço sempre pelo Bairro Alto, onde tenho a minha casa, na rua Diário de Notícias.
De todas as invenções de José Leitão de Barros – o Notícias Ilustrado, a Feira Popular, a Tobis… – as marchas acabam por ser as que sobrevivem ainda hoje em Lisboa. Acha que isso o deixaria espantado?
Por certo que apreciaria o espetáculo de qualidade das Marchas. Mas o encanto com a Câmara de Lisboa não duraria muito, apanharia um susto se entrasse no Hotel Pousada de Lisboa do Grupo Pestana, ali mesmo aos lado dos Paços do Concelho, e visse peças do Cortejo Histórico de 1947 a decorar o hotel, sem qualquer identificação ou memória. E logo perguntaria à Câmara Municipal de Lisboa onde guarda os materiais destas intervenções nacionalistas em espaço público, as que ainda não foram restaurados por privados e se encontram ao abandono, em parte incerta. O Notícias Ilustrado continua a ser estudado pela seu grafismo inovador e modernista, e pelo seu lugar na narrativa política. É um marco incontornável na imprensa da altura. E a Feira Popular nasceu também para resolver um problema, era preciso encontrar verbas para financiar a colónia de O Século.
Imagino que aquilo que que o deixaria feliz seria saber que alguns dos seus filmes, como Maria do Mar ou Lisboa, Crónica anedótica são referências internacionais e continuam a ser mostrados em Festivais por todo o mundo, graças ao trabalho da Cinemateca. Para ele o cinema era a arte suprema, conjugava todas as outras, e ele tentou obsessivamente continuar a filmar, mesmo depois de o regime se ter desinteressado do cinema dele. Em relação à Tóbis nem sei o que lhe diga, Leitão de Barros acreditou no cinema português e bateu-se por ele.
Tendo escrito tanto sobre a cidade já na década de 50, como é que acha que o seu avô veria hoje Lisboa? O que é o que deixaria satisfeito e com o que é que seria demolidor?
Leitão de Barros tem essa característica, é absolutamente imprevisível e desalinhado. Tinha um humor muito seu, onde cabia a ironia mas também a ingenuidade. Não me sinto confortável em pensar, ou em supor por ele, é isso.
Tem um novo livro que é uma viagem a essa Lisboa dos anos 20/30, a história de Genoveva de Lima Mayer Ulrich ou Veva de Lima. Abrindo o apetite, quem era esta mulher? Era amiga do seu avô?
Veva de Lima é uma escritora esquecida, muito culta e carismática, uma mulher que gera controvérsia no seu meio, o da aristocracia e alta burguesia. A sua ambição literária não é levada a sério mas como mulher do monárquico Ruy Ulrich, prestigiado jurista e administrador da Companhia de Moçambique e do Banco de Portugal – que vai ser duas vezes Embaixador em Londres – choca meia Lisboa. Viaja sozinha, atreve-se a ter posição política e opinião, o que é de muito mau tom. É uma mulher de causas, pensa por si mesma, algumas vezes a favor da carreira do marido e outras nem tanto. O facto de passear um leopardo à trela e dar festas ousadas, tanto como as suas récitas teatrais, fazem dela um personagem dos anos 20, convive com artistas e personalidades que marcam a cena internacional da altura. Ela e Leitão de Barros não são amigos mas conhecem-se e respeitam-se. Na morte de Afonso Lopes Vieira, que é coautor do argumento do filme Camões, Veva de Lima escreve a Leitão de Barros, um cartão que faz parte do Espólio, elogiando o filme que esteve oito semanas em cartaz e foi visto por 80 mil pessoas. Leitão de Barros descreve nos Corvos uma tertúlia a que assiste em sua casa, que teve Azeredo Perdigão como orador. E mais tarde, a defesa de Monserrate, que Veva de Lima leva a sério, recebe o apoio do jornalista e cineasta.
O que a atrai nessa Lisboa de há 100 anos para lá da ligação familiar? O que resgatava de lá?
A moda e a estética são únicas, imensamente sedutoras. Os livros, o teatro e o cinema resgatam as questões da altura e os grandes personagens, isso basta-me. Nunca deixei de ser uma jornalista, a História só me interessa quando consigo empurrá-la para o que hoje me estremece.