Na aldeia que abraçou a floresta, pede-se “vontade política”

Cinco anos depois da tragédia de Pedrógão Grande, a floresta irrompe como antes. O futuro pensa-se, discute-se, arquiteta-se em Lisboa, às vezes sem sair do papel. E há quem peça mais aos legisladores: é o caso de Ferraria de São João, um oásis. Em Castanheira de Pera, ainda há centenas de troncos de madeira ardida…

Todas as fotografias captadas para esta reportagem são da autoria de Miguel Silva

Na região fustigada pelo grande incêndio de Pedrógão Grande, que alastrou aos concelhos vizinhos, a mata cresce como o receio de que o fogo volte. As cicatrizes ficaram profundas, mas a floresta pouco mudou de rosto. Além dos eucaliptos que rebentam espontaneamente, mais as acácias que não perdem oportunidade, há quem aponte novas plantações de eucalipto em diferentes concelhos, a espécie que era suposto controlar e alimentou a tragédia de há cinco anos.

«Nós estamos em Portugal, entenda-se. O que se escreve em Lisboa é uma coisa, aqui os deputados não vêm. Onde noto mais o escândalo é a caminho de Góis, com plantações novas de eucalipto uns em cima dos outros. A lei foi muito boa», diz Nelson Elias, habitante de Moleiro, Vila Facaia, um dos lugares onde o fogo chegou naquele sábado negro. 
Para ver o que podia acontecer de diferente nessa floresta que teima em não mudar,  muitos já conhecem o caminho. Mas insistimos em fazê-lo de novo no quinto aniversário da tragédia. 

A estrada de curvas e contracurvas até Ferraria de São João, aldeia já no concelho de Penela, onde o fogo daquele 17 de junho de 2017 também conseguiu chegar, mostra o mesmo que outras: eucaliptos como que palitos enfaixados uns nos outros. Ou fósforos, uns ainda os que foram queimados há cinco anos. Uma zona de eucaliptal, no entanto, está mais limpa, com as bermas desbastadas, pelo que os bons exemplos cruzam-se com os maus. 

É a chegar ao alto, quando se abre a vista para a aldeia, que quem vê pela primeira vez poderá pensar que chegou a um oásis da floresta desordenada do chamado Pinhal Interior da região Centro.

E, se noutras aldeias não avistámos quase ninguém, ali pode ser coincidência ou consequência, mas vemos logo um grupo de mulheres a tagarelar numa paragem de autocarro que, com o seu banco, serve de local de convívio. 

É véspera do dia em que se lembra tragédia, feriado de Corpo de Deus, e acabaram de celebrar uma missa campal, seguida de piquenique, no sobreiral centenário que inspirou a aldeia a abraçar a floresta, para se proteger do fogo.

«Chegaram tarde», sorriem, convidativas. Não sabíamos, anuímos. «O panfleto estava aqui na paragem».

Entre as mulheres mais velhas está Maria Rodrigues, de 41 anos, com a filha Luísa, de dois, num vestido com a saia brilhante de dia de festa. Festa no meio das árvores. 

É a professora do 1.º ciclo, este ano a dar aulas em Miranda do Corvo, que está agora à frente da Associação de Moradores da Ferraria de São João, criada em 2009 para dinamizar o primeiro centro de BTT do país, na altura pela mão de Pedro Pedrosa. 

Maria era também uma recém-chegada à aldeia: o marido é dali perto, viviam em Tomar, iam ser pais pela primeira vez, ele trabalhava em telecomunicações e queria recuperar casas antigas e pensaram: por que não? «Quisemos celebrar a missa para agradecer a coragem de todos e o nosso projeto», diz Maria, hoje mãe de três filhos, todos a viver na aldeia, onde há agora cinco crianças e um adolescente, o que é obra numa povoação com 35 habitantes permanentes. 

O projeto, esse, tem-se tornado um caso de estudo: do sobreiral antigo, que as mulheres mais velhas dizem que já seria dos seus bisavós ou tetravós, com 200 ou 300 anos, quiseram criar um cinturão a proteger Ferraria, integrada na rede das Aldeias do Xisto.

Começaram por um projeto de adoção de sobreiros, que permitiria manter as árvores e os terrenos limpos. Por 40, 60 ou 80 euros, os adotantes ganhavam direito a nove anos do sobreiro-afilhado, com direito a metade da cortiça mas também à sombra da árvore. Depois, em 2017, perceberam que estavam no caminho certo, quando o fogo que galgou a serra chegou ali e praticamente se auto extinguiu ao alcançar a faixa de sobreiros depois de devorar vidas e eucaliptal.  

Não esperaram por mais. Decidiram arrancar eucaliptos e plantar mais árvores folhosas, cerca de mil nestes últimos cinco anos, diz Maria. Recorrendo a apoios e donativos, com a mobilização de toda a comunidade por estarem em causa mais de 70 parcelas de terreno, conseguiram dar forma a algo que só existia no papel: uma  Zona de Proteção Ambiental, que serve de corta fogo. É o futuro?

«Tem de ser, se houver vontade política», sublinha Maria, defendendo que o projeto exige esforço e empenho de toda a comunidade, mas continua a faltar uma regulamentação e mecanismos de apoio que o permitam consolidar e replicar noutros sítios. «Nós implementámos aquilo que está previsto na lei, de haver zonas de proteção em torno das aldeias, mas é preciso haver forma de o fazer, porque implica juntar muitas vontades, muitas parcelas de terreno e tem de haver um enquadramento. No nosso caso, conseguimos esse apoio, com muito esforço de todos, mas nada disso está ainda definido».

No ano passado, a Quercus defendeu que o Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais, na altura em discussão pública, alargasse e replicasse do conceito de Zona de Proteção da Aldeia (ZPA), em implementação na aldeia da Ferraria de S. João a todas as áreas urbanas do país, o que acabou por não ser consubstanciado. 

‘O fogo chegou ali e abrandou’

Por ali também se espera, embora o trabalho vá adiantado. Era o início da madrugada de domingo, 18 de junho de 2017, quando as chamas chegaram à aldeia. As mulheres ali nascidas e criadas recordam o fumo e o fogo a vir, tendo parado no sobreiral. «Ainda arderam alguns sobreiros, mas o fogo chegou ali e abrandou», diz Sandra, de 47 anos. 

Perceberam que valia a pena não desistir e continuam a mobilizar-se, mesmo as mais velhas. Aproxima-se Idalina, de 81 anos, a perguntar sobre que foi afinal a última reunião da associação. Um encontro para distribuir trabalho, dizem as mais novas. «Já não é para nós», sorria a segunda mais velha do grupo, Joselina, de 75.

A conversa continua para o passado, de quando ali faltava tudo, mas já havia qualquer coisa de diferente: o sobreiral deixado pelos antepassados, os currais que ficavam fora da aldeia para que as pessoas não vivessem em cima dos animais. Faltava ainda assim muito mais: «Éramos cinco irmãos, dormíamos todos na mesma cama. Para o almoço, a minha mãe dava-nos um ovo com pedacinhos de broa de 15 dias», conta Idalina. 

O almoço era beber aquele ovo cru a repartir com os irmãos e ainda hoje gosta de o tomar como jantar à noite, com um furinho na casca. «A minha mãe teve-me a mim e ao meu irmão gémeo, ele com 5 quilos e eu com 2,5 quilos, sozinha a meio da noite. Era uma mulher que era um homem!». 

Enquanto galhofam, uma neblina invade a aldeia, tão rápido como se fosse fumo. «É fogo ou névoa?», hesitam ainda algumas das mulheres, formando-se um pequeno alarido entre quem já ganhou para o susto, que a pequena Luísa acompanha, a perguntar à mãe o que é. «É névoa, vem desmoer a trovoada», explica por fim uma das anciãs, num dia em que o tempo se fartou de mudar e o que termina fresco, com um capacete em cima da serra.

É assim, mas no verão o calor aperta bem e o estado da mata à volta também ali é visto com preocupação. Todos os que questionamos dizem o mesmo: está igual ou pior do que estava em 2017. 

«Em questão de segurança, está pior do que o que estava. Das matas que foram limpas, o que deu dinheiro foi cortado e vendido e o que não prestava ficou lá para fazer de pasto para as chamas quando ele vier. O resto são eucaliptos a rebentar, com aquele óleo que parece gasolina. O fogo assim volta com tanta força ou mais do que aquela com que veio», diz Eugénio Santos, de 65 anos, um dos sobreviventes do fogo na aldeia de Nodeirinho, onde morreram 11 pessoas naquele 17 de junho de 2017. 

Como se resolve? Concordam mesmo os que vivem em aldeias onde nada parece ter mudado: «Gostava de ter solução para o fogo, se calhar não  há. Ou há e falta vontade», resume Nelson Elias, sentado na mesa do café de Adega, onde naquele sábado de 2017, por volta das 19h, viu chegar os primeiros bombeiros feridos pelo fogo.

São quase todos mais velhos os que encontramos, com o abandono do interior visível nas casas e armazéns onde hoje moram placas a dizer ‘vende-se’. Mas há também quem tente andar para a frente e muitos estrangeiros a vir. «Compram terras mais afastadas, as que ninguém quer, e instalam-se aqui. No mercado de Pedrógão Grande, há horas em que são mais estrangeiros que portugueses», diz Nelson, feirante e observador.

No centro da vila de Castanheira de Pera, Sónia Moreira e o marido estão à frente da Taberna dos Moreiras, restaurante aberto em plena pandemia, em 2020, com a casa cheia no feriado e os pratos do dia a sair. Tem corrido bem e esperam que continue, com mais turistas a vir à região, que tem ali entre as atrações, além da beleza natural e piscinas fluviais, a Praia das Rocas. «Sofremos todos naquele dia, todos conhecemos alguém que perdeu alguma coisa ou ficou ferido», diz Sónia, partilhando o receio de que o fogo volte e de que aumente a prevenção.

Na vila, ouvimos no entanto algum desgosto por, à entrada, centenas de troncos de madeira queimada ainda dos incêndios de Pedrógão Grande continuarem a ser a primeira imagem de quem chega. «Não é um bom cartão de visita», concorda Sónia.

A madeira está ali há cinco anos e, entre os moradores, já não se sabe quando irá sair nem que acordo foi aquele.

António Henriques, presidente da Câmara Municipal de Castanheira de Pera, garante ao Nascer do SOL que está para breve: começará a ser retirada em julho.

O autarca socialista eleito no ano passado atribui a situação à «falta de diálogo» entre os anteriores executivos camarários e a empresa dona da madeira, «muito afetada nos incêndios» e que emprega 70 pessoas no concelho, o que procurou nos últimos meses ultrapassar quando  iniciou funções.

«Tenho um acordo com a empresa para que durante este ano a madeira saia, para podermos lançar ali um projeto de construção do parque verde da nossa vila», diz, projetando um investimento superior a 2 milhões de euros com financiamento comunitário. «Temos a perfeita consciência de que a madeira não está ali bem em termos visuais. É também uma marca dos incêndios e por isso cria algum incómodo nas pessoas. Mas temos também a consciência de que aquela madeira foi necessária para que a empresa continuasse a laborar, uma empresa que emprega aqui 70 pessoas, portanto estamos a fazer esforços para que consigamos resolver esta questão o mais depressa possível».

Cinco anos, com uma pandemia pelo meio, que parecem muitas vezes ter voado, mas deixam o relógio a contar para as mudanças que ainda não necessárias na floresta e dinamização do interior.   

Ontem, em Castanheira de Pera, numa visita que de véspera não estava marcada, o  Presidente da República considerou existir «maior capacidade de prevenção» e de resposta aos incêndios face a 2017, mas reconheceu que a gestão da floresta tem «sido mais difícil de ultrapassar», assim como o arranque das economias locais. 

Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou, por outro lado, o grande esforço pelas comunidades de Castanheira de Pera, Pedrógão Grande e Figueiró dos Vinhos, mais fustigadas pelo fogo de junho de 2017, «para voltar a viver e até se organizarem, para prevenir o que pudesse acontecer no futuro, naquilo que dependia da iniciativa das próprias populações».

«Esse esforço merece uma palavra de agradecimento», considerou o Presidente, que participou na missa de homenagem às 66 vítimas do fogo.

Em Ferraria de São João, na quinta-feira, também aguardavam que um dia lá vá o Presidente, mas já lá estiveram o então presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, o ministro Siza Vieira e a ministra Ana Mendes Godinho. E já começam a vir turistas espreitar os sobreiros e pessoas de outras aldeias ver o projeto. No Cercal, ali ao lado, estão a começar, pelo que a semente espalha-se.

A história já tem corrido mesmo o mundo. Na noite de 17 de junho, estava na aldeia Katrin Reichwald, alemã, que decidiu produzir um documentário sobre o fogo e sobre a resiliência que encontrou numa aldeia perdida na floresta em Portugal, The Village and the Wildfire. Lançado em 2019, tem sido apresentado em festivais de cinema. Gostavam, e pedem, que passasse na televisão em Portugal. 

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