No dia da morte de Paula Rego, uma jornalista perguntava a um crítico convidado para comentar o acontecimento: «Paula Rego foi também importante porque lutou pelos direitos das mulheres, não é verdade?». E no dia seguinte, uma conhecida escritora destacava, como um dos grandes atributos da pintora, ter feito «campanha a favor do aborto».
É extraordinário que hoje ainda se digam coisas como estas.
Paula Rego foi importante por ter sido feminista? Ou por ter lutado a favor do aborto? Não! Paula Rego é importante porque era uma grande, enorme pintora. Feminista qualquer mulher pode ser. Há milhares, milhões de feministas. Propagandista do aborto qualquer mulher pode ser. Há milhares, milhões de propagandistas do aborto. Mas pintora como Paula Rego só ela podia ser.
Escrevi que é extraordinário que ainda hoje se digam coisas destas, que se valorizem os artistas não pela sua arte mas pela ideologia, porque julgava essa questão encerrada com a polémica sobre o realismo socialista e o neorrealismo.
Havia pintores – e escultores e escritores – medíocres que eram altamente valorizados por terem ‘ideias avançadas’, leia-se, por serem comunistas. Simultaneamente, havia grandes pintores, escultores e escritores que eram desvalorizados, criticados, ignorados por não partilharem da ideologia ‘certa’.
O meu pai pertenceu ao setor intelectual do PCP e viveu esta questão dos dois lados da barricada, em tempos diferentes.
Enquanto estava no partido, elogiou (às vezes contrariado) artistas apenas por serem comunistas. Mais tarde, depois de concluir que os artistas deviam ser avaliados pela sua qualidade artística e não pelas suas opiniões políticas, fez uma crítica demolidora do ‘realismo socialista’ – a arte posta ao serviço da propaganda na ex-União Soviética – e criticou o neorrealismo entre nós.
Mostrou a mediocridade de muitos pintores ou escritores que só eram elogiados por pertencerem ao partido ou serem seus compagnons de route, e a genialidade de outros que eram desvalorizados por não fazerem parte do ‘clube’. Neste caso, citava o exemplo de Agustina Bessa-Luís.
A propósito, contava um episódio que o impressionara muito. Numa visita ao Hermitage, em S. Petersburgo, nos anos 60, não viu nenhum quadro de Chagall exposto, o que o intrigou. O grande pintor, além de já ser então reconhecido mundialmente, era de ascendência russa – sendo previsível que o seu país o valorizasse. Perguntou a um guia do museu se não tinham quadros de Chagall, e este respondeu-lhe:
– Temos alguns no armazém, na cave, mas não os temos expostos porque é um pintor menor, um representante da arte burguesa.
Nos países comunistas (como nos fascistas), a arte era considerada um produto burguês, reacionário, não tendo valor em si própria. Só servia como instrumento de propaganda política. Fora isso não interessava.
Ora, muitas décadas depois, ainda há gente que no fundo pensa desta forma. Que acha que Paula Rego é importante porque era feminista ou a favor do aborto!
Eu, que não sou feminista nem a favor do aborto, considero Paula Rego uma enorme pintora. Uma artista genial. Através de quadros poderosos, pintou mulheres como nunca as tínhamos visto: musculosas, de membros fortes e pernas abertas, prontas a defender-se ou a atacar. Mostrou outra dimensão da mulher: perversa, animalesca, às vezes demoníaca.
Como toda a grande pintura, a arte de Paula Rego não está na ‘mensagem política’ – está na força da imagem e no impacto sensorial que ela provoca.
Os seus quadros, além de serem diferentes de tudo o que se conhecia – e por isso configuram um estilo –, são simultaneamente puros e malévolos, de uma espontaneidade desconcertante, correspondente à alma da artista. Como se pintasse sempre autorretratos.
Ao contrário de autores que se esforçam por intelectualizar a linguagem, que dizem coisas sobre a sua arte que ninguém percebe, Paula Rego falava de uma forma simples, terra a terra, sem literatices nem tiradas filosóficas, quase corriqueira.
Da sua boca ouvíamos muitas vezes o óbvio, dito de uma forma banal. E isso, por ser tão raro, transmitia uma sensação crua de autenticidade, de verdade.
Essa mesma crueza existe na sua pintura, fazendo com que as mulheres que povoam os seus quadros nos interpelem de forma tão perturbadora. Mulheres feias, agressivas, bestiais, que nos provocam simultaneamente atração e repulsa mas não nos deixam indiferentes.
Deixem Paula Rego em paz com o feminismo e o aborto. Há muitas mulheres que o podem fazer. Isso é ideologia, e cada um é livre de adotar a sua, não sendo para isso necessário ter talento.
Paula Rego é importante porque tinha um talento, esse sim, único.