É meio da manhã e decorre a primeira reunião plenária da Conferência dos Oceanos das Nações Unidas em Lisboa. Já falou António Guterres, Marcelo Rebelo de Sousa e Uhuru Kenyatta, os Presidentes de Portugal e Quénia, países anfitriões, declarados ontem também presidentes do encontro. O pavilhão Altice Arena enche com milhares de participantes de 140 países num ambiente multicultural, onde aos fatos executivos se cruzam com trajes tradicionais.
O ambiente é confuso, com cada um a tentar chegar a tempo ao seu destino. Aos jornalistas é dito que devem andar sempre “escoltados” pelo recinto, o que se torna impraticável perante mais de meio milhar de repórteres acreditados. Têm crachás com o P de press verde. Já os participantes nas reuniões, seja de comitivas governamentais ou de organizações e associações ligadas ao ambiente e conservação, têm um D vermelho, de delegados.
Procuramo-los no entra e sai para tirar o pulso às expectativas naquele que é o arranque da segunda cimeira das Nações Unidas ligada à proteção dos oceanos. Todos os que abordamos aceitam falar: as experiências são diversas, tal como o mundo de onde vêm. Mas todos, com mais ou menos otimismo, esperam mais do compromisso internacional do que até aqui.
Em oração pela economia azul No corredor que dá acesso ao auditório principal há uma pequena sala de orações com paredes de contraplacado. Lá dentro, apenas assentos, nenhum símbolo religioso.
Está apenas uma mulher, de traje azul claro. Fahima Araphat Abdallah, de 30 anos, é ministra para a Economia Azul do Governo da província de Lamu, no Quénia, conta-nos. Muçulmana, faz uma das cinco orações públicas do dia.
Para que a conferência corra bem? Fahima sorri. O azul da túnica também é apropriado, assente. “Estamos muito felizes por ser coanfitriões desta conferência, não só por estarmos aqui a falar de algo que nos toca porque temos cerca de cinco províncias banhadas pelo oceano Índico mas porque há tanta história entre os nossos países”, diz, encantada com as parecenças de alguns edifícios que encontrou em Lisboa e os vestígios das viagens dos portugueses como o forte de Mombaça. “Temos uma cidade chamada Malindi que tem um pilar de Vasco da Gama, que ali esteve há 500 anos”, continua, prometendo regressar um dia.
Desta vez, a semana é de trabalho. “Durante muito tempo estivemos focados na energia e economia verde e agora toda a gente quer ir para o azul. Há tantos recursos nos oceanos, mas percebemos que todo o aproveitamento tem de permitir salvaguardá-los para as próximas gerações. A nossa aposta tem sido formação e capacitação, em áreas muito concretas. Quando se constroem portos e fazem dragagens, quando se lançam projetos de exploração de gás e petróleo… Durante muito tempo não houve essa preocupação e hoje temos meios, temos informação, temos tecnologia para fazer tudo de forma mais sustentável”, diz.
A espada em cima da cabeça são as alterações climáticas. “Claro que o sentimos. Quando era pequena tínhamos estações de grandes chuvas e agora temos períodos cada vez mais secos”. Expectativas para a cimeira em Lisboa?
“Percebermos que enquanto nações devemos assumir um compromisso coletivo, sabendo que há coisas concretas que nós podemos fazer no Quénia que são diferentes das que os portugueses podem fazer, mas que teremos de nos complementar uns aos outros”, diz Fahima, otimista. “Há pouco tempo, tivemos um encontro na nossa província em que o nosso governador dizia que há 20 anos, quando houve dinheiro de países ricos para educação, nem ele percebia para que havia interesse naquele dinheiro. Hoje é claro para todos: informação e educação é poder. Hoje estamos num mesmo patamar de ser preciso solidariedade por um bem comum”.
Uma hora basta para abrir portas Continuamos. De chapéu de palha na cabeça, num dia de enorme ventania no Parque das Nações em Lisboa, Houssine Nibani apresenta-se como presidente da Association de Gestion Intégrée des Ressources (AGIR).
São uma organização não-governamental sediada em Marrocos, que trabalha com cooperativas de pescadores no combate à pesca ilegal e proteção de ecossistemas, nomeadamente no Parque Nacional de Al Hoceima, no nordeste do país, um dos tesouros do Mediterrâneo – tem 48 mil hectares, 18 600 marinhos, casa de várias espécies ameaçadas, três espécies de golfinhos, 69 espécies de aves e onde a pesca é um dos principais proventos da população local, enfrentando a poluição e diminuição dos peixes.
Expectativas?, voltamos a perguntar. “Quando vi tanta gente comecei a dizer para comigo mesmo como seria bom se todos os países conseguissem trabalhar por uma estratégia comum”, começa, sublinhando que não quer parecer pessimista. Acredita, no entanto, que a estratégia internacional até aqui no combate às alterações climáticas e, por arrasto, na proteção dos oceanos, não tem sido muito “eficiente”. Devia ser de baixo para cima, defende, identificando bem os problemas, definindo prioridades e objetivos a nível local e depois encontrando uma estratégia comum para fazer o que precisa de ser feito.
Com a maratona de reuniões de trabalho pela frente, Houssine Nibani diz que, mais do que a declaração política que se espera no final, são os encontros entre pessoas, apresentações de projetos e a oportunidade de contactar “gente com influência” que vão acontecendo nos corredores e múltiplos eventos paralelos à conferência que dão lastro aos projetos que já trazem de casa e na cabeça. “Dou um exemplo: chegámos há menos de uma hora e já conseguimos pôr a andar um projeto de dois anos que queremos lançar com colegas da Turquia e de França. Fizemos isso aqui, em Lisboa”, diz, satisfeito. Qual era o problema? “Dificuldades de comunicação”.
O projeto visa o envolvimento e capacitação de mulheres em projetos de base comunitária, por exemplo para fabricar redes de pesca biodegradáveis, explica. “Estão mais avançados no envolvimento das mulheres na Turquia e queremos levá-lo para Marrocos. Muito do que conseguimos consegue-se conversando uns com os outros”.
A embaixadora do estado-ilha mais pequeno do mundo São 7 mil participantes, segundo a organização, mas qual agulha num palheiro cruzamo-nos com Margo Deiye, embaixadora permanente nas Nações Unidas da República de Nauru, o estado-ilha mais pequeno do mundo. Tem o tempo contado a caminho de uma sessão e trocamos breves palavras, que não chegam para apresentar o país, com cerca de 10 mil habitantes, listado como o terceiro estado soberano mais pequeno do mundo só atrás do Vaticano e do Mónaco.
“Esta é a segunda conferência da ONU dedicada aos oceanos. Esperamos mais, mais parcerias, compromissos reforçados e sobretudo mais ações”, diz Margo Deiye, pela primeira vez em Lisboa. Os efeitos das alterações climáticas são visíveis na pequena ilha na Micronésia, no nordeste da Austrália, antiga colónia alemã. “Somos uma pequena ilha do Pacífico. Temos mais inundações, mais pessoas em risco de perder o seu rendimento e as suas casas.” Os países mais protegidos no mundo dito rico e industrializado percebem-no? “Creio que cada vez o percebem mais, mas isto não é só sobre os oceanos. Temos de travar as emissões e garantir que é cumprido o acordo de Paris”, sublinha.
David Obura e a lição dos corais À frente do computador numa pausa, David Obura traz também expectativas elevadas, mas com a incógnita sobre o que sairá de concreto no fim dos cinco dias de conferência em Lisboa.
Natural do Quénia, é fundador e diretor da Cordio East Africa, uma organização que se dedica à investigação e promoção da proteção de corais e sistemas marinhos. “Para já sinto muita mobilização e energia aqui e isso é bom”, diz. “Fala-se muito de economia azul, há muitas ideias mas para haver mudança tem de haver uma maior mobilização política e das empresas, para investir”.
Foi no final dos anos 90 que David Obura começou a trabalhar no estudo de corais, no Quénia. “Foi nessa altura que vi os primeiros corais a ficarem brancos. As pessoas perguntam muitas vezes quando é que as alterações climáticas se tornam perigosas. Já eram naquela altura. Costumamos dizer que os corais são uma bandeira de sinalização. O que vemos hoje nos ecossistemas marinhos e nos corais em particular é consequência do que se passava há 20, 30 anos, pelo que vamos ver pior a menos que façamos alguma coisa para o mitigar e para procurar soluções para locais que já estão perdidos, com todo o impacto que isso tem nos ecossistemas e na economia local. Aqui chegados, a pergunta tem de ser: o que podemos fazer e como?”.
São as perguntas que traz para o debate. “Hoje vemos outras consequências das alterações climáticas, maiores períodos de seca, grandes incêndios, eventos extremos mais frequentes, consequências que acabam por ser mais imediatas. Nos corais os efeitos são de longo prazo e o longo prazo é muito difícil de gerir para as pessoas e sobretudo para os políticos”, remata.
Combater a sobrepesca Abdennaji Laamrich, natural de Rabat, em Marrocos, integra a delegação da ATLAFCO, uma organização intergovernamental que junta 22 países africanos na proteção de ecossistemas pesqueiros, de Marrocos à Namíbia. O objetivo é tornar sustentável a pesca no mar Mediterrâneo, onde acreditam ainda assim que muitas vezes já vêm “do futuro”. Se o problema da sobrepesca é local, não têm dúvidas de que todos já o sentem. “As frotas dos países ricos pescam nas nossas águas”, nota Abdennaji Laamrich, defendendo a necessidade de compromissos e protocolos. Acreditam que a conferência, ao culminar numa declaração global, reforçará o trabalho a nível regional e local.
“Precisamos de um novo paradigma de exploração de recursos que tenha em conta a sustentabilidade para as gerações futuras”, diz, sublinhando as expectativas de que algo seja pelo menos reforçado em Lisboa. O tempo parece urgir: “Mesmo este tempo, em Lisboa, será normal?”, interrogam-se Abdennaji Laamrich e os colegas no meio da ventania.
o streaming de li yedan Li Yedan, chinesa, também acredita que é preciso um novo paradigma de resposta à conservação do planeta e combate às alterações climáticas. E o seu foco são crianças e jovens. Tem 36 anos e está à frente da Association des 3 Hérissons, três ouriços em português, com braços na China e em França para promoção da educação ambiental. Não é nova em cimeiras da ONU e veio com a missão de mostrar o que se passa na Conferência dos Oceanos aos jovens que os acompanham, com um streaming agendado para quinta-feira à hora de almoço onde espera ter testemunhos de participantes sobre o que está a ser feito.
“Costumamos ter mil a 2 mil crianças e jovens nas nossas transmissões”, conta, entusiasmada. Tantos? “É a China”, ri-se. “Esperamos que isto sirva para aumentar e sensibilizar as crianças e jovens para estas problemáticas e sobretudo motivá-las para fazerem a diferença no seu dia a dia e nas suas comunidades. É por aí que começa”.
Peter e as comunidades onde o desastre é real Peter William Walpole, jesuíta, vive há 40 anos nas montanhas de Mindanau, ilha no Sul do arquipélago das Filipinas. São outras vidas, de longe, que traz na cabeça. “Sou irlandês mas perdi-me um dia na ilha”, sorri.
A história não foi bem assim mas é longa. Em resumo, a formação de base é hidrologista florestal e nos anos 70 foi para a Islândia estudar o impacto do degelo glaciar. Esteve quase a afundar-se em água gelada. “Achei que era melhor um sítio mais quente”, brinca.
Trabalhou para o Governo da Malásia em projetos de conservação florestal e a certa altura começou a aperceber-se dos fluxos de migrantes climáticos das comunidades do sul das Filipinas, fustigadas por tufões e tempestades cada vez mais intensas e consequentes inundações.
“Segui alguns de volta a casa e lá fiquei. Para se perceber o impacto, se era hidrologista florestal, hoje sou basicamente hidrologista de inundações. Parte do meu trabalho é perceber que áreas correm mais risco e onde é que temos de evacuar aldeias. São comunidades completamente varridas, a água dos rios fica salobra. Precisamos urgentemente de diminuir este impacto. Temos grandes ideias tecnológicas, grandes planos, mas as pessoas estão a ser retiradas das suas casas”, diz.
Quase nos 70 anos, com longas barbas brancas, está à frente do Centro Educativo e Cultural Apu Palamguwan em Bendum, na província de Bukidnon, mesmo no norte da ilha, onde trabalha com populações indígenas em formação ambiental e práticas de resiliência. A ideia é construir um novo currículo que prepare melhor as gerações futuras.
Se esse é o dia a dia, está em Lisboa a pedir ação. O mundo rico e industrializado ainda não percebeu a ameaça das alterações climáticas? “As pessoas percebem, mas não percebem cá dentro. Temos tantos outros problemas a acontecer que a questão é como é que nos focamos? Como é que conseguimos perceber que muitos dos nossos problemas estão ligados? Precisamos de ação e de um lobby de mudança e temos de vir ao primeiro mundo pedi-lo”, atira.
“Hoje nos discursos de abertura o António Guterres e os outros falaram muito bem dos compromissos que querem atingir e do papel que pode ter esta conferência, mas quero ver no final quais são os compromissos concretos e quais são as ações”.