Os maus tratos e a negligência de crianças não são um assunto do Estado, são um assunto de todos. Manuel Coutinho, secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança, é psicólogo e tem muitas horas de escuta e de palavra do outro lado da linha SOS Criança, que o IAC lançou em 1988 para denúncias e pedidos de ajuda – na altura um serviço pioneiro a nível internacional. Desde então, somam 150 mil contactos. “Ajudámos o equivalente a três estádios de futebol cheios de crianças que podiam ter tido um fim trágico e não tiveram”, diz. Ajudaram, como qualquer um pode tentar ajudar – e esse é um dos alertas que deixa nesta conversa, que começa nos casos trágicos das últimas semanas: uma menina de três anos morta em Setúbal e um recém-nascido deixado num caixote de lixo em Belas. Não há sistemas perfeitos, diz, sublinhando que há coisas que podem melhorar, como melhoraram nas últimas quatro décadas. “Quando começámos a trabalhar, havia crianças a dormir na grelha do metropolitano para se aquecerem”, recorda. Defende que é preciso ir ao fundo do flagelo, à saúde mental, à passividade que se instala, ao que se perpetua culturalmente. Contrariar uma sociedade de competição, desde a escola, e dar formação aos pais. Assume que não o repugna, em casos de morte perversa, uma pena de prisão perpétua, como agora vai avançar no Reino Unido para agressores de crianças. E chama atenção para um problema emergente: a violência e chantagem sobre os filhos no contexto de divórcios e separações.
O IAC vai fazer 40 anos em 2023. Como é para alguém há quase quatro décadas a trabalhar nesta área ver repetirem-se tragédias como a de Jéssica e um recém-nascido abandonado no lixo?
O Instituto de Apoio à Criança nasceu do sonho do Dr. João dos Santos e da Dra. Manuela Eanes, a partir de um livro do pedagogo chamado A Caminho de uma Utopia… um Instituto da Criança. Logo nessa altura a grande prioridade foi responder às crianças em risco, em perigo, crianças maltratadas e negligenciadas. As situações de morte são sempre muito dramáticas e inqualificáveis. Ao longo destes anos acredito que a lei de proteção de crianças e menores em Portugal e o IAC ajudaram a salvar muitas crianças e a promover o seu bem-estar e dignidade, afastando-as de fatores de risco. Temos uma lei bem feita e bem desenhada, podendo melhorar em alguns aspetos, mas no essencial bem feita. O que me preocupa é a saúde mental de muitos portugueses.
Está na base da “miséria humana” de que falou Marcelo Rebelo de Sousa?
Muitas vezes sim. Não há sistemas que consigam conter a perversidade por exemplo de uma pessoa que tem características de homicida. Esse tipo de situações não se conseguem nem prever nem prevenir em absoluto. É como, passe a comparação, o que se passa nas estradas. O Código da Estrada pode estar muito bem feito, haver limites de velocidade, radares, policiamento. Se alguém entender que deve fazer inversão de marcha numa autoestrada e matar uma série de pessoas, não podemos dizer que não há prevenção. Temos de perceber em primeiro lugar que alguém resolveu perverter o sistema e provocar estragos.
Mas ainda há assim, até na base do vosso trabalho, fatores de risco que podem ser detetados.
E a maior parte das situações são contidas e travadas, mas não podemos pensar que todas são previsíveis. As comissões de proteção de crianças e jovens em perigo, para atuarem, precisam de consentimento dos pais e têm à sua disponibilidade todas as medidas que podem ser decretadas pelo tribunal, com a diferença de que têm de ser negociadas. Apoiam muitas crianças e muitas famílias. É o que fazem no dia-a-dia por todo o país.
Esta menina de três anos foi sinalizada em bebé e foi um dos casos em que o apoio na altura não foi avante por não haver acordo com os pais, com o processo remetido ao Ministério Público. Há milhares de casos que param nas CPCJ tanto na fase de diagnóstico como na fase de acordo de medidas. A lei está bem assim?
Penso que a lei é equilibrada. Se os pais derem consentimento, as medidas são aplicadas – e estamos quase sempre a falar de medidas que acabam por ser de apoio aos pais, seja ajuda a encontrar emprego, desabituação alcoólica… Quando os pais recusam, a comissão não trabalha a situação mas fá-la seguir de imediato para o MP, que faz uma análise sumária da situação, faz diligências e ou arquiva ou faz seguir o processo ao juiz, que determina medidas. Há situações que são sempre difíceis de ver apesar de, depois de os problemas acontecerem, toda a gente ter uma opinião. A comissão ou o tribunal ouve médicos, psicólogos, familiares e fazem uma avaliação que mede os fatores de risco e os fatores de proteção para aferir a vulnerabilidade daquela criança ou jovem. Quando os fatores de proteção se sobrepõem aos fatores de risco, e isso permite retirar a matéria de perigo da vida daquela criança, o Estado deve intervir o menos possível. Pensemos no seguinte: desde 2017, e até antes, dar palmadas a uma criança é um crime de natureza pública. É proibido bater às crianças. É miserável dar palmadas a crianças. Se o Estado começar a retirar as crianças a todas as pessoas que dão palmadas aos filhos, veja o impacto que isso teria. Temos de ter uma abordagem equilibrada, com intervenção adequada e, ao mesmo tempo, trabalho de sensibilização para que as pessoas comecem a perceber que bater nas crianças, além dos danos físicos, psicológicos e emocionais e até ao nível do desenvolvimento – está provado que as palmadas provocam danos gravíssimos até ao nível biológico no desenvolvimento dos telómeros ou da personalidade da criança – perpetua o ciclo da violência.
Da violência como solução para o conflito.
As crianças acabam por interiorizar que as situações de contrariedade se resolvem à palmada. Quando se tornam adultas, algumas delas podem reproduzir esse comportamento. As crianças fazem mais aquilo que veem fazer do que aquilo que lhes dizem para fazer.
O fim dos castigos corporais na infância foi o mote de uma campanha lançada pelo IAC no último Dia da Criança – Nem mais uma palmada. Antes de irmos a essa frente, ouvimos depois da morte de Jéssica o PR a defender que é preciso tirar lições e, esta semana, o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses escreveu que “todos matámos a Jéssica”, defendendo um estudo retrospetivo ao pormenor. Concorda que há lições a tirar?
Sem dúvida. Começava por essa ideia da responsabilidade de todos. Há um provérbio africano que diz que “é preciso uma aldeia para educar uma criança”. É preciso uma aldeia para deixar morrer uma criança.
Nestes dois casos, como noutros no passado, há uma reação de surpresa e revolta da comunidade à volta destas pessoas.
O que nos diz a nossa experiência é que quando se vai ao terreno ouvir as pessoas antes de as situações acontecerem, a maior parte dos vizinhos e da comunidade abona por aquele pai, por aquela mãe, por aquela avó. Quando a situação trágica acontece, essas mesmas pessoas aparecem a dizer que já sabiam e relatam imensas coisas. Essas pessoas, de alguma maneira, são cúmplices na morte de algumas crianças. Não o fazem certamente com intenção, mas fazem-no com negligência.
É uma cumplicidade com raízes culturais, como durante anos existiu em relação à violência doméstica?
É uma passividade que se instala. Costuma dizer-se que o mal só avança porque o bem não faz nada. E as pessoas não podem dizer que não há sítios para denunciar, que não há uma rede. No IAC criámos a 22 de novembro de 1988 um serviço anónimo e pioneiro para denunciar todas as situações de crianças em risco, em perigo, mal tratadas, negligenciadas e vítimas de abusos sexuais. Hoje além da linha SOS Criança (116 111), temos uma linha a funcionar 24/24 horas para crianças desaparecidas e/ou abusadas sexualmente. Qualquer pessoa pode fazer uma denúncia anónima e posso dizer que ao longo destes anos já ajudámos o equivalente a três estádios de futebol cheios de crianças que podiam ter um fim trágico e não tiveram.
Receberam, desde 1988, 150 mil chamadas.
Sim, são muitas pessoas, muitas vidas. Podiam ser mais? Quando me pergunta o que corre mal, penso que muitas vezes começa aí, numa certa falta de iniciativa das comunidades. As pessoas não colaboram. Veem o mal a acontecer e nada fazem.
Nisso não sente mudanças em 40 anos?
Certamente mudámos pouco e acho que até está a haver um certo retrocesso.
As pessoas têm receio de se meter, estão mais centradas em si?
Penso que sim. Ainda ontem passei por um grupo de jovens de 20 anos. Vinham com umas trotinetes, deixaram-nas caídas em cima do passeio e foram-se embora. Fui eu que os chamei e disse: “Acham bem o que estão a fazer? Pensem, se vier um invisual, o que vai acontecer?”. Olhou um, voltou atrás e pôs as trotinetes junto à parede, mas eu sei que arrisquei. Temos receio às vezes de arriscar. E na proteção às crianças por vezes temos de arriscar e temos de dizer “não, o superior interesse daquela criança obriga-me a tomar uma atitude mesmo que eu saia beliscado”. Quando vemos pais e mães a darem palmadas nos filhos nos supermercados, e vê-se diariamente, sempre que dizemos alguma coisa, ouvimos “o filho é meu”, “eu faço o que quiser”. Mas devemos intervir.
Há quem conteste que uma palmada de vez em quando nunca fez mal.
Uma palmada é sempre humilhante. Se não fizesse mal, porque é que os patrões não podem dar um palmadinha no rabo aos empregados? Os maridos às mulheres? Porque é que é crime uma mulher bater num homem ou um homem numa mulher e não seria crime bater numa criança? Batemos nas crianças porque não temos capacidade para falar com elas, às vezes por estarmos saturados. Esse modelo cultural de que uma palmadinha é corretiva e pedagógica tem de acabar. Pedagogia é diálogo, é informação, não é bater. Há bebés de um mês a levarem palmadas pedagógicas.
São casos sinalizados pelos hospitais por exemplo?
Sim. Quanto às pessoas que entendem que a palmada é um modelo educativo, eu pergunto: quantas vezes? Uma vez por mês, todos os dias, dia sim e dia não? Com que intensidade? Dada pela mão de uma pessoa com muita força ou com pouca força? Quem avalia a força? Quantas crianças fazem otorragias porque levaram uma palmada e lhes rebentou um ouvido? Quantas caíram?
São realidades de que não temos muita noção.
Não temos, mas são reais. Numa palmada a criança desequilibrou-se e morreu com uma lesão cervical ou ficou numa cadeira de rodas.
Temos casos destes em Portugal?
Em todo o mundo temos casos destes. O resultado da palmada depende de muitos fatores. Não é uma forma de comunicar e por isso deve ser banida.
Além da necessidade de comunidades menos passivas, falou da doença mental. No caso de Jéssica, do que é público, a mãe tinha uma dívida por ter ido a uma bruxa para salvar uma relação. É o Portugal menos glamoroso do que por vezes é pintado.
Pois e realmente o problema da saúde mental tem de ser enfrentado. Não podemos ter um médico, um psicólogo e um psiquiatra em cada esquina de uma sociedade que está doente, mas a sociedade não está toda doente e por isso temos de pedir a quem não está doente que intervenha. Os casos que têm vindo a público vão tendo contornos diferentes mas todos devem ser estudados e avaliados. No caso da Valentina, por exemplo, daquilo que sei, a criança corria perigo quando estava junto da família paterna. Foi entregue à mãe, sendo retirada desse perigo. É a mãe que por sua iniciativa a vai pôr em casa do pai e da madrasta, não lhe telefona durante uma série de dias e a criança falece por maus tratos. Neste caso da Jéssica, ao que sei a criança estava ao cuidado da avó, da mãe e do padrasto, que até parece funcional, e é a mãe que a vai pôr a casa de indivíduos perigosos que maltrataram a criança. A autópsia num caso destes permite perceber se a criança com os maus tratos morreria ou se a criança, se tivesse sido socorrida a tempo, poderia sobreviver, o que faz com que a família maltratante passe a ser indiciada por tentativa de homicídio. Mas a montante vemos que temos um problema. E por isso temos de trabalhar muito a educação das pessoas. E não é preciso falar de rapazes e raparigas e ir por géneros, mas insistir que todas as pessoas têm de se respeitar.
A luta dos direitos humanos está demasiado polarizada nos géneros?
Não é isso que interessa. As pessoas todas têm de se respeitar e temos de respeitar os outros mesmo que não concordemos com eles, desde que evidentemente não estejam a cometer crimes ou estragos. Mas mais uma vez insisto que não há nada mais imprevisível do que o comportamento humano e por isso não há nenhum sistema de proteção que possa ser eficaz 100%.
Neste caso, uma questão que voltou a ser discutida foi a etnia cigana da família agressora.
São pessoas. Há casos destes em todas as etnias, todas as classes. Não faz sentido separar guetos. Foram pessoas que o fizeram.
Que lições lhe parece que se podem tirar destes casos?
Aquela questão que levantava há pouco é importante e até já o propusemos no IAC: fazer um estudo retrospetivo dos dados que existem para perceber o que é que não corre bem, sendo desde logo evidente a questão da saúde mental.
Não têm faltado diagnósticos e planos, mas parece haver sempre a conclusão de que a resposta permanece insuficiente.
Mas há boas experiências, só temos de as reforçar. No IAC temos a funcionar já há quatro anos um consultório social, na Rua António Patrício, em Lisboa, que diariamente recebe crianças e famílias para terem apoio psicológico gratuito. Foi a câmara que se chegou à frente no Executivo anterior para lançar este projeto, que o Executivo atual quis continuar o que é muito positivo, e que permite chegar a crianças de todo o município.
Porque ter acompanhamento psicológico regular continua a ser
para ricos?
É verdade. E aqui o Instituto de Apoio à Criança foi mais uma vez pioneiro. Temos também a funcionar nas escolas um projeto magnífico que é a Escola Alfaiate, a escola à medida de cada aluno, que não deixa ninguém para trás. É o paradigma da escola atenta a cada criança.
Em termos de psicólogos, a escola pública deu um salto enorme nos últimos anos, mais do que os centros
de saúde.
Sim, evoluiu-se bastante e este trabalho que estamos a fazer na escola vai ao fundo da questão. Uma criança com mais dificuldades, que tem uma família disruptiva, que está com problemas, não pode fazer a prova no mesmo dia do colega saudável. É isto que perpetua o ciclo vicioso. Além deste projeto temos outro que é a Escola de 2ª Oportunidade, que também começou em Lisboa, que é para reabilitar os jovens. Fala-se muito de reinserir, mas não podemos reinserir quem nunca esteve inserido. Temos é de ajudar estes jovens a inserirem-se. Há muita gente que passou ao lado da socialização, por muitos motivos, por famílias disruptivas, muito álcool e muita droga no ambiente familiar, muita falta de respeito, falta de valores, falta de limites, falta de modelos educativos.
Sempre ligado à pobreza ou nesses aspetos de falta de valores e limites têm vindo a esbater-se as diferenças, por exemplo na indisciplina?
Há sempre casos em todos os estratos, mas os mais pobres têm muito mais dificuldades e só diz que o dinheiro não dá felicidade quem nunca foi pobre. O Estado social tem tentado diminuir as assimetrias de rendimentos entre as pessoas, e nesta área entende-se, e bem, que ser pobre não pode influenciar as decisões de proteção de crianças. É preciso ajudar as pessoas a sair da pobreza e não pensar que, porque é pobre, retira-se os filhos. A pobreza maior é a de espírito, não é a pobreza económica. Não é digno que as pessoas possam viver com menos do que o salário mínimo nacional e também há aí um esforço a fazer de educação na comunidade, porque o que sobra na nossa mesa muitas vezes está a faltar na mesa dos outros.
E isso também pode ser dito às crianças desde pequenas.
Sim, ensinar aos nossos filhos a partilha. E ensinar as crianças a porem-se na pele do outro. Muitas vezes olhamos a sociedade pelos nossos olhos. E nestes casos mais extremos, temos de fazer o mesmo exercício de reconstruir o que se passou até em termos psicológicos.
Nos casos de suicídio fala-se das autópsias psicológicas. Existe algum mecanismo para casos destes?
Devia haver. Admito que quem coabita com estas pessoas poderá perceber comportamentos antissociais e desajustados mas muitas vezes quem está próximo, até por estar próximo, não tem distanciamento para acreditar que uma situação limite possa acontecer. Por vezes é difícil distinguir uma coisa e outra e não podemos avaliar toda a gente.
No Reino Unido, uma das queixas é o excesso de intervenção. Há essa rampa deslizante?
É um equilíbrio muito difícil. Retirar um filho a uma mãe ou um pai é muito duro. Mesmo uma criança batida agarra-se àquela mãe como uma lapa a uma rocha e pede que não lhe façam isso.
Mas sente que as decisões em Portugal têm sido regra geral acertadas?
Nesse aspeto sim, a lei funciona bem e há artigos suficientes para cobrirem tudo, desde que haja sensibilidade. Como dizia, continuo a acreditar que é muito difícil algumas situações que aparecem como um trovão no céu aberto serem travadas.
Mas, se pudesse, o que mudava?
Penso que se devia reforçar as organizações da sociedade civil como o IAC e as equipas de apoio dos tribunais com mais técnicos e termos mais assistentes sociais a nível das autarquias e instituições. Seria positivo podermos não ter cada técnico com tantas situações a seu cargo e apostar-se na qualidade da intervenção. Permitira por exemplo, em alguns casos, manter-se um acompanhamento mais continuado daquela criança, fazendo uma triagem das situações em que isso é necessário. Uma criança pode estar sinalizada à CPCJ por não ter feito uma vacina e esse processo é encerrado, não fica ad aeternum sinalizada. Nem sempre as crianças são sinalizadas por haver matéria de perigo ou criminal. Temos é de conseguir, nas situações mais graves e delicadas, manter um acompanhamento mais regular, mais de surpresa. Nesses casos, penso que, mesmo que o processo seja encerrado de forma mais administrativa, aquelas famílias saberem que a qualquer momento podem ser chamadas para ser reavaliadas podia ter um efeito protetor.
Para isso era preciso mudar a lei, nomeadamente nestes casos que pura e simplesmente cessam nas CPCJ e são remetidos ao MP quando não há acordo com os pais ou se declara que acabou a situação de perigo. Faria sentido haver uma auditoria aleatória?
Sim, por exemplo. Era importante haver mecanismos de reavaliação. Naturalmente isto implica maior número de técnicos. Pode sempre acontecer uma tragédia, mas se tivermos mecanismos redundantes fechamos o círculo. Por outro lado, penso que devemos estar muito mais atentos às questões da saúde mental e considerar toxicodependência, alcoolismo e problemas psiquiátricos graves matéria de perigo. Sempre que um pai, uma mãe ou o cuidador de uma criança tem esta tipologia de problemas, sinalizar estas crianças.
O que está a dizer é a família não ser sinalizada pelo que a criança mostra mas pelo comportamento dos adultos?
Sim, perceber se uma pessoa que tem um quadro de toxicodependência grave ou um quadro de alcoolismo e dá entrada num hospital ou numa consulta tem filhos e qual é a sua situação.
No caso de problemas psiquiátricos graves, fala de que tipo de situações? Depressões?
Não diria casos de depressão porque os deprimidos não fazem mal a ninguém, fazem mal a eles próprios. O essencial seria uma maior intervenção nos comportamentos aditivos e antissociais. Sempre que alguém tem estes problemas, ir a montante e no fundo e perguntar se aquela pessoa inconsciente tem alguém a seu cargo e se tem condições para ter.
Mas isso não é feito?
Diria que não de forma sistemática. Creio que se apanharem um indivíduo na estrada com um nível de álcool acima do limite, paga a multa ou vai preso, não lhe perguntam se tem filhos. Se é um alcoólico que anda a conduzir, podemos pensar se um dia não poderá estar a conduzir assim com os filhos. Fazer o caminho do adulto para a criança.
No Reino Unido avançou esta semana uma alteração legislativa que vai permitir condenar a prisão perpétua quem inflija maus tratos mortais a uma criança. Temos uma lei demasiado branda?
Em certas situações, a decisão de prisão perpétua não me repugna, embora considere que só no limite dos limites. Há maldades que se fazem que causam danos irreparáveis.
Mas no caso de morte?
Morte perversa. Não me repugna que os ingleses pensem assim.
Mas cá considera que a moldura penal poderia ser mais pesada?
Creio que podia ser repensada. Por regra as pessoas têm o direito a serem reinseridas, mas por defeito há pessoas que não devem ter qualquer hipótese de voltarem a estar em liberdade porque são um perigo público.
No ano passado foram sinalizados 43 mil crianças e jovens, a maioria por exposição a violência doméstica e negligência, 900 por suspeita de abusos sexuais, quase 500 por abandono. Acredita que existe a noção na população em geral da escala destes abusos?
Pois, por vezes não, o que implica insistirmos com as campanhas de sensibilização. Há uma coisa importante de dizer: o facto de os casos serem sinalizados seja às comissões, seja ao SOS Criança, é magnífico. É importante manter este canal aberto e quanto mais for divulgado, mais casos chegarão. Depois destas notícias trágicas vão ser sinalizadas muito mais crianças. E felizmente nem todos os casos sinalizados se confirmam como verdadeiros. Não há fumo sem fogo, alguma coisa houve, mas muitas vezes não se confirma o que foi reportado, mas é importante, mesmo na dúvida, reportar.
Entre os casos que não se confirmam e os que nunca chegam a ser sinalizados, são números esmagadores.
Sim, é sempre uma cifra negra.
Recuando aos anos 80, quando começou a trabalhar com o IAC, encontravam um cenário pior?
Era pior e acima de tudo era diferente. Havia crianças a dormir na grelha do metropolitano para se aquecerem. As crianças vagueavam pela rua. Não eram consideradas um sujeito de direitos.
Qual é a imagem mais forte que guarda?
Quando comecei a trabalhar no SOS Criança chegava a ligar para os serviços sociais e dizia que, em tal parte, havia uma criança maltratada. Respondiam-me: “Não, não há registo”. Insistia: “Mas estou-lhe a dizer que há”. A resposta era: “Os pais que venham cá dizer”. Respondíamos: “Os pais é que são os maltratantes”. Demorava. Mesmo quando uma criança era abusada sexualmente, dependia da queixa e a queixa tinham de ser os responsáveis legais a fazer, quando normalmente o abuso sexual é intrafamiliar. Isto mudou. O abuso sexual já nem vai às CPCJ: se os pais têm de concordar com as medidas, algum pai ou mãe que estivesse envolvido iria concordar? São casos que seguem logo para o Ministério Público. Portanto quando digo que era pior é porque hoje temos uma lei muito mais atenta, agora há é ainda muitas pessoas que são, como costumo dizer, “poucochinho”. Fruto de educação, de frieza afetiva, de falta de carinho, de falta de amor e de respeito, nunca foram respeitadas, não respeitam. Esse é o ciclo da violência.
Na SOS Criança recebem 10 chamadas por dia, agora também mensagens por Whatsapp. Quem liga?
Crianças, jovens e muitos adultos também, a apresentar situações que os preocupam.
Ainda se surpreende com os relatos?
São todos diferentes. Nos últimos anos há uma coisa que é triste dizer mas que vemos muito: quando as pessoas se separam, esquecem-se que estão a separar-se dos cônjuges e não dos filhos, que o casal parental é para sempre e que o pai e a mãe são para ser sempre respeitados.
Há muita violência nesse contexto?
Há muita violência, humilhação e chantagem. Dizer-se mal da mãe ou do pai a um filho é uma grande maldade.
Parece que as pessoas se transformam.
Transformam-se completamente. Há uma coisa que se diz que é verdade: as pessoas não se conhecem quando se casam, conhecem-se quando se divorciam. Os casais quando se se separam tratam muito mal os filhos, humilham muito os filhos e essa é uma tendência crescente.
Há outras situações que o venham a preocupar mais nos últimos tempos?
Esta questão dos divórcios e separações penso que é a que ultimamente se tem destacado mais e atinge muitas crianças. Revolta-as muito. Penso que é um dos temas que mais importa trabalhar neste momento e pôr a lupa em cima para ajudar estas crianças e os pais, porque não é fácil ser pai, mesmo fora deste contexto. Não há uma escola de pais mas era importante transmitir-lhes algumas regras e valores. Explicar aos pais que se deve ensinar limites às crianças, que se deve ensinar que tudo é permitido exceto o que é proibido e que há áreas interditas que não se podem pisar, como a falta de respeito. Penso que será com uma pedagogia do relacionamento entre as pessoas que conseguiremos ter mais frutos enquanto sociedade. Não podemos continuar a pensar que isto é um assunto do Estado, que o Estado falha. O Estado é constituído por pessoas e quem falha são as pessoas desse Estado. Se nós não conseguirmos melhorar a qualidade de vida das pessoas, os aspetos psicológicos e os relacionamentos, não vamos conseguir ter ambientes mais seguros. E as pessoas não estão bem, estão desequilibradas emocionalmente.
Por causa da pandemia?
Não consigo dizer. É possível que tenha dado um contributo, admito que sim, muita gente diz que sim, mas acho que há um problema de base que é nós termos de estar preparados, e ensinarmos os nossos filhos, para lidar com os “nãos” da vida.
As contrariedades e imprevistos.
Sim e devemos olhar mais, não para aquilo que não temos, mas para o que temos. E o que temos por vezes já serve para organizar a nossa vida e sociedade com qualidade, o que nem sempre acontece.
Costuma dizer-se que vivemos numa sociedade obesogénica, que promove a obesidade. Promove também cada vez mais essa ansiedade do que não se tem?
Sim, vivemos numa sociedade que, do ponto de vista da imagem, é como se estivéssemos a subir uma montanha. E nós olhamos sempre para aqueles que vão à nossa frente e não nos viramos para ver quem vem atrás a subir a montanha em condições mais difíceis do que a nossa. Precisamos que a sociedade continue a ser capaz de olhar para trás e a ser sempre e cada vez mais solidária. Somos felizes na medida em que nos damos aos outros, que ajudamos os outros, que crescemos com os outros. Devemos concorrer com e não contra. É esse trabalho que tentamos fazer diariamente no IAC, construir pontes, derrubar muros, criar equidade, tentar que as crianças tenham uma infância plena.
Têm sido grandes defensores do direito ao brincar, por exemplo.
Uma criança que não brinca não está feliz. E uma criança que não aprende ou está triste ou está com medo. Temos de dar às crianças um corredor para a vida em que elas se sintam seguras, amadas, felizes. E o que tentamos fazer é tirar estes direitos da criança dos livros e pô-los no dia-a-dia, seja no direito a brincar, na humanização dos serviços de atendimento às crianças, na escola, na justiça, na segurança social, nas crianças encontradas na rua, nas crianças maltratadas nas famílias. Nesse sentido o IAC tem sido um grande maestro para que muitas crianças se sintam felizes e realizadas.
Quarenta anos, continua a ser um desafio?
Uma utopia que se tem realizado, mas sabemos que ainda estamos no início de uma longa caminhada. Mas até uma maratona começa num pequeno passo. Não desistimos.
Há pouco falou de frieza emocional em alguns adultos. O que sente nos miúdos de hoje? Vê maior desinteresse?
Em muitas crianças o que têm vê-se no olhar. Em vez de terem um olhar com brilho, têm um olhar baço. Por vezes não conseguem ver o futuro, não se conseguem projetar no futuro.
Mas mais do que antes?
É diferente. Não gosto de hierarquizar porque o mundo está em constante mutação. Mas sente-se um certo desalento no ar, uma desesperança que atinge as famílias, que as famílias não conseguem muitas vezes filtrar e carregam em cima dos filhos. E por cima disto, lá está, o tal mundo competitivo. A escola, os liceus, tornaram-se lugares competitivos em que parece que as pessoas só são boas por terem boas notas. Devemos educar as crianças não é para estarem no quadro de honra, mas no quadro de valores.
Essa ideia esbarra sempre nas notas para entrar na faculdade.
Com certeza que temos de mudar o sistema como um todo. Esse sistema já se gastou, já teve o seu tempo. Já lá vai o tempo em que as profissões eram para a vida, que os cursos eram para vida.
Continua a acreditar em utopias?
Sim, acho que melhor é sempre possível.
Como se meteu nesta área?
Trabalhava num estabelecimento prisional com pessoas muito vulneráveis, que fizeram mal mas que nem sempre eram más pessoas. Uma vez recebi um telefonema a dizer que era preciso um psicólogo para uma linha de apoio à criança pensada por uma jurista, que era a dra. Aurora Fonseca, e achavam que tinha perfil. Confesso que com receio e algum medo, porque pensei se seria capaz, acabei por decidir talvez num ato de coragem que sim. Passito a passito, fui percorrendo o caminho. Tinha três colegas que já estavam quando cheguei, tinham sido destacadas dos Ministérios e foram elas a lançar a linha, mas ao fim de alguns meses tiveram de sair e fiquei sozinho. Depois fomos fazendo equipas e cá estamos.
Ainda atende o telefone?
Hoje não. Sou coordenador da linha e discutimos os casos, como acho que os casos mais graves como este de Setúbal deviam ser estudados pelos serviços e pelas universidades de sociologia, direito e serviço social para perceber como por vezes as coisas nos fogem das mãos.
Tem muitas histórias marcantes?
Tenho uma história muito interessante, de uma jovem que acompanhei durante vários anos por telefone. Um jovem brilhante intelectualmente, mas que precisava de uma ajuda. Essa ajuda foi dada. Nós tínhamos nome de código, tanto o técnico como a jovem que telefonava. Um dia foi preciso fazer-se um trabalho sobre uma convenção e pedi ajuda a uma professora de Direito da universidade. Essa professora, já com agregação, ajudou-nos imenso. No fim disse-me: “Olhe, lembra-se há muitos anos de ter falado com esta pessoa assim? Sou eu. E estou-vos grata.”
Ficou arrepiado?
Muito orgulhoso. Cada criança e cada jovem que ajudámos é uma recompensa magnífica. E quando ajudamos uma criança e ela cresce, estamos a ajudar o filho dessa criança, o neto. É uma coisa em progressão geométrica. Se tratarmos bem uma pessoa, ela vai tratar melhor os outros. Temos é de todos acreditar que o mundo pode ser melhor.
Estes casos graves, para lá da consternação que provocam, deviam levar-nos para aí?
Sim, deviam fazer-nos repensar. Quantas vezes digo às pessoas isso. Uma avó que telefona a dizer: “Veja bem, a minha nora não faz isto, não leva a criança à escola”. “E o que é que a senhora pode fazer para melhorar?”. Muitas vezes as pessoas acabam por dizer que nunca tinha pensado nisso. O que é que nós podemos fazer, não é só o que o outro pode fazer. Todos podemos fazer alguma coisa.