Douro Azul. Mário Ferreira investigado em dois processos

O acionista da TVI é suspeito de  branqueamento de capitais e fraude fiscal, desencadeando buscas no Porto, Madeira e Malta, relacionadas com a venda e revenda do Atlântida. 

por Felícia Cabrita e João Campos Rodrigues

O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) está a investigar Mário Ferreira em dois inquéritos. O primeiro inquérito ao dono da Douro Azul e acionista da TVI está relacionado com a compra do navio Atlântida, em 2014, e por cerca de 9 milhões de euros, aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC). O segundo com a sua venda, quase de imediato, através de uma sua empresa offshore em Malta, a uma entidade norueguesa, a operadora Hurtigruten, por 17 milhões de euros, havendo suspeitas de fraude fiscal e branqueamento de capitais. As buscas realizadas pelo DCIAP esta quarta-feira  numa vasta operação a nível internacional, abrangendo o Porto, Madeira e Malta, relacionam-se com o segundo caso, apurou o i. 

Mário Ferreira reagiu na hora, pedindo ao DCIAP, em carta enviada pelo seu advogado Tiago Costa, para ser constituído arguido na Operação Ferry. “Ao fim de oito anos e desde o surgimento das primeiras insinuações públicas, nunca me foi dada a oportunidade para ser ouvido no âmbito deste processo”, queixa-se o dono da Douro Azul. Fazendo questão de lembrar que um outro processo contra si, relativo à subconcessão dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, fora arquivado. Contudo, ao contrário do que o advogado do empresário diz, esse processo não está relacionado com o inquérito autónomo que desencadeou as buscas desta quarta-feira.

Mário Ferreira até já tinha levado a tribunal a antiga eurodeputada Ana Gomes, por esta ter reagido a um tweet de António Costa, lamentando que o Governo trate com pompa um “notório escroque/criminoso fiscal”, acusando a venda do Atlântida de ser “uma vigarice”.

Durante o julgamento por alegada difamação de Ana Gomes, quem veio em auxílio da antiga eurodeputada foi João Pedro Martins, o próprio líder da comissão liquidatária dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Na venda do Atlântida “houve alta corrupção”, testemunhou Martins, no mês passado, citado pela agência Lusa. “Envolveu políticos em funções, o Conselho de Administração dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, o júri do concurso, o BES e o comprador”, assegurou. 

Navio amaldiçoado? O estranho negócio realizado pela empresa de Mário Ferreira foi mais uma reviravolta para o Atlântida, um navio que ganhou fama de mal-afortunado, navegando entre sucessivos escândalos.

Fora encomendado em 2006 aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo pelo Governo Regional dos Açores, então presidido por Carlos César, junto com outro navio, o Anticiclone, com o propósito de servir como ferryboat. Mas nenhum dos dois chegaria ao arquipélago, tendo a Atlânticoline, a empresa pública através da qual fora feita a encomenda, recusado recebê-los em 2009, alegando que os resultados dos testes de mar do Atlântida não cumpriam com o requerido no contrato, abandonando também o Anticiclone. 

O escândalo seria a “certidão de óbito” dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, queixar-se-ia Vicente Ferreira, presidente do Conselho de Administração da Empordef, então acionista desta empresa. Estes históricos estaleiros tinham marcado Viana do Castelo ao longo de sete décadas, começando a sua atividade ao construir navios para a pesca do bacalhau, mas não resistiriam à maldição do Atlântico, acabando extintos em 2017. 

Entretanto, o Atlântida continuava a sua saga. Enquanto uma comissão de inquérito parlamentar regional dos Açores averiguava o abandono deste navio, surgiam novos compradores interessados. Desta vez, o Governo venezuelano, então encabeçado por Hugo Chávez. 

Corria o ano de 2010, no auge da amistosa relação entre Chávez e o então primeiro-ministro José Sócrates. Eram tempos em que tanto se falava da venda dos computadores Magalhães, mais conhecidos na Venezuela como “Canaima”, da compra de petróleo e gás natural venezuelano pela Galp, mas também do interesse de Caracas em adquirir navios portugueses. Em particular o Atlântida.

A proposta do Governo de Chávez era comprar o navio por 42,5 milhões euros, para operar entre de La Guaira e as ilhas de Orchila, Los Roques – uma das principais atrações turísticas da Venezuela, muito devido às suas magníficas praias e recifes de coral – e Margarita. Contudo, sendo este um destino tão luxuoso, o Atlântida teria de ser adaptado, sendo o ferryboat transformado num cruzeiro. 

Os moribundos Estaleiros Navais de Viana do Castelo lá eliminaram o parque de viaturas do navio para a criar de camarotes para 300 pessoa. Mas o custo foi demasiado para o Governo venezuelano, que só assumiu ter desistido do negócio em novembro 2011, já após a saída de José Sócrates do Governo.

Ainda houve mais compradores internacionais interessados, mas todos recuaram, em boa parte devido ao calado do navio, que tem um design específico para as condições de mar e de cais dos Açores.

Negócios da China Uma comissão de inquérito parlamentar ao escândalo Atlântida, terminada em 2014, concluiu que o caso deste navio fora “um exemplo paradigmático da incapacidade de gestão” dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, levando à perda de 70 milhões de euros, num processo em que houve “clara intervenção política”.

No entanto, a polémica ainda só estava para começar, tendo a Douro Azul de Mário Ferreira conseguido um “negócio da China”: comprar o Atlântida por apenas 8,75 milhões de euros, seis meses após a conclusão do inquérito parlamentar. Isto quando em tempos o navio fora avaliado em 50 milhões de euros, quase seis vezes o valor pelo qual foi transacionado. 

Na altura, a empresa de Mário Ferreira prometia converter o Atlântida num cruzeiro de luxo, para viagens pelo rio Amazonas, passando pelo Brasil, Colômbia e Peru. Contudo, uns meros oito meses depois, conseguia vender o navio à Hurtigruten por mais 8,25 milhões de euros do que o comprara, através de duas offshores criadas para o efeito em Malta, num negócio que despertou suspeitas.

Agora, o Atlântida, que ninguém queria, afinal é bom o suficiente para esta operadora marítima norueguesa, que o reconstruiu e rebatizou como MS Spitsbergen, em honra da maior ilha do arquipélago de Svalbard. O navio construído em Viana do Castelo ganhou um  “fresco design escandinavo que reflete uma paleta de cores derivada do mar”, gaba-se o website da Hurtigruten, salientando que o seu navio tem um lounge panorâmico, bar, restaurante, ginásio, sauna, entre outros luxos.

O MS Spitsbergen tem servido para cruzeiros nas águas geladas da Antártica e do Ártico, anunciou a Hurtigruten. Mas também na costa ocidental de África, numa rota que passa por Cabo Verde, Gambia, Senegal e Guiné-Bissau, onde para no arquipélago das Bijagós. 

Recorde-se que nas buscas de ontem participaram oito magistrados judiciais, quatro magistrados do Ministério Público, 19 inspetores, peritos da DCIFAE e 12 elementos da unidade de ação fiscal da GNR.