Não é possível compreender o que Angola é hoje sem pensar na dinastia Dos Santos. Sobretudo no seu patriarca, José Eduardo dos Santos (JES), que faleceu na sexta-feira, deixando como herança um país desenhado à sua imagem e semelhança. Ou «sequestrado», diriam outros, como descreveu ainda este ano o jornalista Rafael Marques, um dos mais ferozes críticos do ex-Presidente angolano. Até na morte José Eduardo dos Santos dividiu opiniões, tendo uma das suas filhas, Welwitschea ‘Tchizé’ dos Santos, chegado a pedir que fossem feitas análises ao seu pai, para averiguar um eventual envenenamento – partilhando ainda no Instagram vídeos de uma manifestação contra o atual Presidente de Angola. Onde se ouviam gritos furiosos de: «João Lourenço, assassino, mataste o Zédu».
Alguns lembram Zédu como um histórico da Guerra de Libertação Nacional, contra o império português, depois como pacificador, capaz de pôr fim a 27 anos de guerra civil com a UNITA. E de impedir que a política de Angola fosse marcada pelo mesmo sectarismo étnico que vemos em tantos países vizinhos.
Muitos outros apontam Zédu como tirano, o arquiteto de um sistema corrupto que ainda marca Angola, um dos países mais desiguais do planeta. Acusando o antigo Presidente de, durante os seus quase 40 anos no poder, criar um regime nepotista para se enriquecer e à sua família, que após a saída do poder do patriarca seria apanhada nos Luanda Leaks. Um dos seus dez filhos, José Filomeno ‘Zenu’ dos Santos, chegou a ser preso em Angola, onde cumpre uma pena de cinco anos por fraude e lavagem de dinheiro.
Já o próprio José Eduardo dos Santos, apesar de toda a polémica que sempre o rodeou, apenas desejava ser lembrado de uma forma simples. «Como um bom patriota».
Mau sangue dentro do MPLA
Até ao último momento, mesmo tendo saído do poder em 2017, ficando a sua família na mira da Justiça angolana, JES manteve uma poderosa influência em Luanda. Da última vez que pusera os pés na capital, o ano passado, os corredores do poder estavam repletos de rumores, deixando muitos dirigentes do MPLA receosos que Zédu articulasse a oposição ao seu antigo delfim, João Lourenço, e outros a murmurarem, bem baixinho, estar prontos a cerrar fileiras em redor do seu antigo chefe.
Com as eleições legislativas marcadas para agosto, numa altura em que o descontentamento com o Governo cresce devido à crise económica que enfrenta Angola, não espanta que João Lourenço agora se desdobre em tributos ao seu falecido antecessor.
José Eduardo dos Santos fora «um Estadista de grande dimensão histórica», garantiu em comunicado o Executivo de João Lourenço. Inclinando-se «com o maior respeito e consideração» perante o ex-Presidente, «que regeu durante muitos anos com clarividência e humanismo os destinos da Nação Angolana, em momentos muito difíceis».
No entanto, a suspeita é que, por trás destes rasgados elogios também haja uma dose de alívio da parte do regime angolano. Que se apressou a preparar um funeral de Estado para o ex-Presidente, ainda este lutava pela vida ligado às máquinas do Centro Médico Teknon, em Barcelona. Para ultrage das filhas de Zédu, que, caso o Estado angolano vá com a sua avante, nem têm certeza de poder comparecer no funeral, temendo ser detidas pelo regime angolano, apesar de João Lourenço já ter prometido que tal não sucederá.
O ano passado chegou a especular-se que JES poderia agarrar na ala «eduardista» do MPLA e procurar uma aliança com os seus antigos inimigos. Quem sabe até mesmo com a UNITA, maior partido da oposição, tornando-o uma ameaça a João Lourenço.
«Era algo possível. Na política tudo é possível, não há aliados nem adversários eternos», explica-nos N’kilumbu, esta sexta-feira, após se saber da morte do ex-Presidente. Desde a última vez que falara ao Nascer do SOL, este politólogo integrou a lista da UNITA para as eleições legislativas de agosto. «Sabe que quando os interesses económicos estão em causa, os empresários procuram espaços de conforto, de garantia de continuidade com novos atores políticos», continuou N’kilumbu. «Notei uma flexibilidade interessante do líder da UNITA quanto a essa questão», admitiu, referindo-se a Adalberto da Costa Júnior, cujo partido se aproximou do MPLA mostrou uma sondagem do Afrobarómetro, de maio, ficando a meros 6% do partido governante ameaçando tirar-lhe a maioria absoluta.
Já a UNITA mostrou-se cuidadosa no que toca a reagir à morte de José Eduardo dos Santos. «Assim ainda a quente, aquilo que lhe posso dizer é que desejo paz à sua alma e ofereço os meus sentimentos de pesar à família», salientou Marcial Dachala, porta-voz da UNITA. Em tempos fora adversário do antigo Presidente angolano, mas nota-se bem o respeito por este. Não tivesse Dachala participado nas negociações de paz com o MPLA, que finalmente puseram fim à intermitente mas sangrenta guerra civil angolana, entre 1975 e 2002.
Desrespeito aos mais velhos?
Se havia anticorpos contra Zédu em Angola, também havia grandes apoios. «Foi estranha a maneira como João Lourenço lidou com a saída de José Eduardo dos Santos. De repente transformou-o simbolicamente no principal responsável pela situação que herdou», nota David Boio, diretor do Camunda News, um canal noticioso nas redes sociais que tem sido alvo de pressão pelo regime angolano, ao Nascer do SOL. João Lourenço, antigo ministro da Defesa de Zédu «tentou associá-lo a tudo que era mau, para construir a imagem de alguém que vem fazer diferente», explica.
«E ainda houve tudo aquilo que aconteceu à família dos Santos, a prisão do filho, o facto das filhas estarem praticamente foragidas fora do país. Isso criou problemas internos no MPLA», continua Boio «Mas, como se sabe, é um partido tendencialmente autoritário, portanto as opções do líder não são abertamente questionadas».
«Há um absoluto silêncio», assegura o diretor do Camunda News. Até o antecessor de João Lourenço se calou. «José Eduardo dos Santos tinha uma capacidade muito particular para gerir silêncios», diz Boio. «Mesmo quando o próprio filho foi preso não se pronunciou».
Já as manobras do atual Presidente para neutralizar Zédu e garantir a unidade do partido, durante o seu VIII Congresso, em dezembro, no qual foi reeleito – sem surpresas -com 98,04% dos votos, não cairam nada bem a muitos.
«Somos um país africano, temos uma tradição muito própria quanto ao tratamento dos mais velhos», afirma N’kilumbu. Lembrando como João Lourenço fez questão de reunir com o seu antecessor logo após o congresso, deslocando-se à residência deste no luxuoso bairro de Miramar, em Luanda. «Era a fotografia que ele precisava, para mostrar que havia união da família MPLA», explica o politólogo.
Outros não têm ficado particularmente incomodados com a humilhação da dinastia dos Santos. Vendo como muito bem-vindo o combate à corrupção de que João Lourenço tanto fala.
«A imagem de José Eduardo dos Santos veio-se desgastando no poder, sobretudo nos últimos dez anos, quando aumentou a corrupção e nepotismo», avalia Boio, referindo-se à nomeação de uma filha de Zédu, Isabel dos Santos, como presidente do conselho de administração da Sonangol, a petrolífera estatal que é o grande ganha-pão do Estado angolano. «As pessoas sabem que havia corrupção», explica. «Mas houve uma certa seletividade no combate à corrupção. Isso deu ideia de injustiça, de uma perseguição».
«José Eduardo não deixa de ser um líder popular. Foram muitos anos. E há memórias de períodos de prosperidade, viveu-se melhor entre 2010 e 2013», sente o diretor do Camunda News. Algo que explica a fúria dos manifestantes que, nas suas demonstrações de luto por Zédu, apontam o dedo ao atual Presidente, cujo Executivo se viu obrigado a apelar à «serenidade».
‘Artifíce da paz’
Entretanto, as condolências vão chegando. «José Eduardo dos Santos foi o meu principal interlocutor nas relações políticas com Angola», escreveu Aníbal Cavaco Silva, numa carta que enviou ao Nascer do SOL, em homenagem de uma «notável figura nacional».
«Com ele mantive uma duradoura relação de confiança, que permitiu ultrapassar as dificuldades que marcavam as relações entre os nossos dois países nos anos 80», explica o antigo Presidente. Não espanta que não tenha sido um processo fácil, perante as feridas deixadas pelo colonialismo português, contra o qual o MPLA combateu.
Foi nessa luta que se afirmou José Eduardo dos Santos, filho de um calceteiro e de uma doméstica, nascido nas sanzalas do bairro da Sambizanga. Partiu para o exílio no início da guerra, em 1961, na República do Congo, onde coordenou a juventude do partido, antes de estudar engenharia de Petróleos em Baku, na antiga União Soviética, exercendo funções militares em Cabinda, depois tornando-se diplomata na Jugoslávia, a República Democrática do Congo e a República Popular da China, antes de subir ao Comité Central e Politburo, chegando ao poder em 1979, com a morte do primeiro Presidente angolano, Agostinho Neto, herdando uma guerra civil contra a UNITA de Jonas Savimbi.
«A assinatura dos Acordos de Bicesse, em 1991, em que participei com José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi e que culminou com um improvável aperto de mão entre ambos, e do Protocolo de Lusaka, em 1994, são momentos marcantes da minha vida política», assume Cavaco Silva, mostrando orgulho, dado que «Portugal deu um contributo para o fim da guerra civil que dilacerava a nação angolana».
José Eduardo dos Santos foi «artífice decisivo na construção da paz e da reconciliação nacional da nação angolana», garantiu o seu antigo homólogo português. «Testemunhei o seu firme empenho pessoal e as decisões particularmente difíceis e complexas que tomou», continuou, gabando-o como sendo «de inteligência fina, convincente na argumentação, sereno e sábio no uso da palavra». Permitindo «reforçar a cooperação entre Portugal e Angola».