Numa semana ardeu tanto no país como em todo o ano passado, no que poderá vir a ser o ano com mais área ardida desde 2017. As condições eram de perigo máximo, com uma vaga de calor causada por uma depressão na costa de Portugal a bater os recordes máximos alguma vez registados em vários pontos do país. A temperatura não chegou a ser tão extrema como estava previsto, com os meteorologistas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera a prever que pela primeira vez poderiam ter sido registados no país 48ºC, mas o calor e o vento forte trouxeram de novo os fogos, das áreas rurais de uma floresta que continua desordenada ao interface rural-urbano, que tem preocupado igualmente os investigadores nesta área.
Ontem contavam-se 25 mil hectares ardidos desde sábado, o que com o balanço desta sexta-feira com vários focos ativos terá superado em sete dias toda a área ardida em 2021: 28.360. O país já ia com perto de 40 mil hectares ardidos, o que com o verão pela frente, mesmo numa situação normal, deverá fazer de 2022 o ano com mais área ardida desde 2017, o mais trágico em perdas humanas e em floresta devastada: arderam naquele ano 539 mil hectares.
O fogo entrou em Faro, atingiu a Quinta do Lago em Almancil, cercou Palmela, queimou até um MacDonalds na freguesia de Aires, em Setúbal. Obrigou à evacuação de várias aldeias da região Centro nos fogos de Ansião e Ourém. Ontem continuava a lavrar, com um cenário ainda assim já menos complexo e cerca de 2500 homens nos trabalhos de combate e rescaldo, quando chegaram a ser mais de cinco mil na quarta-feira.
E as críticas e protestos chegaram, algumas nada novas, desde o estado da floresta às carreiras dos guardas florestais, que convocaram uma greve, ao Sindicato Nacional de Bombeiros Profissionais que pede aumentos e um subsídio de risco. O Governo, ao longo da semana, pôs a tónica na melhoria da resposta e na responsabilidade que cabe a todos de evitar que os incêndios deflagrem. «Os incêndios só ocorrem se uma mão humana, voluntariamente ou por distração, os tiver provocado», insistiu António Costa, incluindo aqui negligência e incendiarismo.
Sujeito a vários fact-checks nos últimos dias que indiciam alguma imprecisão na afirmação, o que mostram os dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas não fica muito longe disso, embora seja uma afirmação um pouco vaga.
Olhemos para 2021, que tinha sido o ano com menos área ardida das últimas três décadas. Segundo os ficheiros de dados do ICNF, que o Nascer do SOL analisou, registaram-se no ano passado 8186 incêndios em Portugal. Apenas em 116 (1,4%) foi determinada causa natural; 3504 foram atribuídos a negligência (42,4% e não «mais de metade» como foi dito esta semana pela Proteção Civil)
Houve 1306 incêndios intencionais (15,9%) e ainda 205 (2,5%) resultado de reacendimentos, o que aconteceu também esta semana com vários fogos. Os dados do ICNF mostram ainda algo que impede de dizer o que causa a maioria dos fogos, já que oficialmente e tendo por amostra o ano passado há milhares de incêndios cuja a origem permanece indeterminada, ainda que menos do que no passado. Em 2021, mais de um terço dos fogos foi classificado pelo ICNF como tendo tido origem desconhecida (2809 incêndios), sendo que 246 ocorrências não foram investigadas. Só 21 fogos duraram mais de 24 horas, o que esta semana não foi de todo o cenário no país e foi mais um dos indicadores que se agravou.
Dentro de uma década, metade de julho será assim
Se as condições foram extremas esta semana, os estudos indicam que Portugal terá verões pontuados por mais fenómenos idênticos aos que se viveram nos últimos dias, agravando o risco de incêndio. Um estudo que procurou aferir esse risco foi publicado no final de junho pelo Laboratório de Fogos Florestais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Os investigadores fazem uma antecipação do que se passará no nordeste transmontano, concluindo que o número de dias com perigo meteorológico de incêndio extremo mais do que duplicará em 2031-2050 comparativamente a 1989-2005, salientou o grupo de investigação numa nota publicada esta semana: «Nesse futuro relativamente próximo as condições excecionais que hoje se verificam no interior e sul do país ocorrerão em média em cerca de metade dos dias de julho».
Algo notado por este grupo e por diferentes especialistas que se pronunciaram esta semana sobre a situação dos incêndios é que com estas condições climáticas e elevada carga de combustível, os fogos andam mais depressa do que no passado. «Incêndios com velocidade de propagação acima de 2,5 km/h e de 3,0 km/h, em pinhal e matos respetivamente, serão possíveis durante mais de metade dos dias de julho no período 2031-2050», salientaram ainda.
Concluem que se, nesta região, florestas de pinheiro e zonas de mato podem vivenciar um aumento da intensidade de incêndios para níveis que excedam a capacidade de supressão, florestas folhosas tipicamente não enfrentam esse risco. «A consistência dos resultados independentemente do cenário climático considerado reforça a necessidade de abordar os efeitos das alterações climáticas quando se planeia a futura gestão», escrevem. «Através de melhor planeamento e gestão de paisagens propícias a fogo, os decisores estarão a proteger as comunidades, mesmo quando se tem em conta as alterações climáticas», concluem.
«Com condições fora do comum, nenhum sítio do nosso país é completamente inócuo ao risco de incêndio. Sabemos que há regiões que têm um risco maior e são as mais afetadas em condições normais, mas em condições extremas como as que estamos a viver o fogo pode chegar a qualquer lado», disse ao i Domingos Xavier Viegas, especialista em incêndios florestais da Universidade de Coimbra, que coordenou os estudos pedidos pelo Governo sobre os fogos trágicos de 2017, chamando a atenção para o risco do interface rural-florestal, que saltou à vista esta semana. «Com esta extensão não é muito habitual e não é o mais lógico, porque a área florestada é muito superior à área urbanizada, mas cada vez mais vamos tendo floresta que entra por zonas urbanas, até em zonas rurais, e as cidades e vilas vão se expandindo».
‘Quando peguei no carro marcava 61 graus’
Pinhão, no concelho de Alijó, registou a temperatura mais elevada do país esta semana: 47ºC, que por pouco não bateram o recorde da Amareleja, 47,3ºC em 2003. Tiago Vieira, proprietário do restaurante Sabores do Douro, conta que o verão ali é sempre quente, e ver 47ºC não foi assim tão diferente, mas fica para a história: «Quando peguei no carro de manhã, em cima do asfalto e sem uma árvore por perto, marcava 61ºC», diz. O calor extremo não ajuda o negócio, com menos turistas. Do fogo estão protegidos pelas vinhas, mas não do fumo, que enche o vale em dias de incêndios, como foi o caso desta sexta-feira.