Com quarenta e picos anos e bem constituído, era um homem calmo. Tinha por alcunha o ‘Morto’, e era tão inteligente quanto cobarde. Os seus alvos eram os desprotegidos, os fracos, sem força para lhe fazerem frente. Entre Aveiro e Coimbra lançou o terror entre gente já de idade. Esta semana, porém, a sua saga acabou desfeita por uma megaoperação policial.
Inteligente e metódico, a organização criminosa que liderava foi-se sofisticando, mas não estava para grandes riscos. Quando os seus homens recebiam a mensagem – «Hoje à noite vamos às gajas, tragam enxadas e as jubiracas» – subia-lhes a adrenalina.
Para os elementos da PSP de Aveiro que havia cinco meses os traziam na mira, não era difícil traduzir o jargão: ia haver um assalto, iriam armados e em carros alugados.
A grande maioria das vítimas vivia no campo, isolada.
Eram escolhidas a dedo pelo chefe da organização, e acordadas de madrugada com uma faca colada à garganta ou uma arma encostada à cabeça. Casa onde houvesse uma mulher sozinha era a mais cobiçada. Uma senhora, dobrados os 90 anos, despertou com uma dor lancinante: um dos operacionais do ‘Morto’ arrancara-lhe os brincos das orelhas, como quem retira um escalpe.
Outras eram amarradas a cadeiras, de pés e mãos, e torturadas até dizerem onde guardavam o ouro e o dinheiro de uma vida.
Céticos em relação aos bancos, escondiam as economias debaixo dos colchões – e de repente tudo se evaporava.
O esquema para escolher as vítimas
Os relatos das vítimas que iam sendo ouvidas pela Polícia, feitos em murmúrios como se a vida lhes escapasse a cada recordação, aceleraram a investigação. Para os homens da PSP, estabelecer um padrão não foi difícil. Na generalidade eram pessoas com algumas posses, em ouro e dinheiro.
Antes de abandonarem as casas saqueadas, os salteadores ficavam com os telemóveis e partiam os telefones fixos, impedindo as vítimas de darem o alerta de imediato.
A Polícia pensou que teria de haver um esquema montado para a escolha seletiva dos alvos.
E a pouco e pouco foi-se apercebendo da teia construída pelo ‘Morto’.
Três mulheres, familiares dos operacionais, acolhiam idosos nas suas casas – num programa social pago pelo Estado. E uma vez conquistada a sua confiança, a mulher de um deles – o ‘Venezuelano’ – tinha artes para penetrar na sua intimidade. Com mais ou menos facilidade, a mulher arrancava-lhes pormenores sobre o património de vizinhos e familiares. E assim eram selecionadas algumas das vítimas.
Não era esta, porém, a única forma de o ‘Morto’ recolher informações. Os cafés onde os reformados se juntavam para queimar o tempo e discorrer sobre o passado traziam mais manancial. Informadores aliciados pela organização, por vezes também mulheres, faziam o ‘inventário’.
Operacionais vestiam-se sempre de preto
O líder nunca dava um passo em falso. Antes de um assalto, os operacionais reuniam-se em sua casa. Acertavam pormenores e mudavam de roupa: vestiam-se de preto, invariavelmente. Com eles seguiam os passa-montanhas, luvas, lanternas e armas.
O ‘Venezuelano’, com cadastro de gabarito, tinha a GNR sempre à perna. E o ‘Morto’, com as suas fragilidades, costumava comentar com ‘Murtosas’, outro dos elementos do grupo, que tinha uma fixação em carros e telemóveis topo de gama e andava montado num BMW ou num Nissan Qashqai: «Este gajo ainda nos leva à cadeia!».
Já a mulher do líder, devota de Nossa Senhora de Fátima, capaz de ir ao santuário a pé, rezava pelo marido e encomendava-o ao filho da santa.
Não conhecia a vida dupla do marido, mas desconfiava. Era caso para isso. Mais do que uma vez, o ‘Morto’ abandonara um assalto a meio para escapar aos carros-patrulha da PSP, e precisara da ajuda dela.
Para não chamar a atenção, a rede não deixava as viaturas perto dos alvos. E para lhes dar cobertura, homens de confiança deslizavam na noite observando os movimentos da Polícia – e, através de walkie-talkies, para escaparem às escutas, faziam chegar a informação aos assaltantes. Que, quando os agentes se aproximavam, partiam em debandada, cada um por si.
Era nestes momentos que o ‘Morto’, com a alma dobrada pelo medo, telefonava à mulher para o ir salvar.
Um tesouro escondido na parede
Por isso, quando no passado fim de semana a PSP desencadeou a megaoperação Teia Dourada e lhe entrou em casa para fazer buscas, a mulher não ficou totalmente surpreendida. O marido guardava de tudo um pouco num contentor colocado num terreno que ladeava a habitação: alfaias agrícolas, eletrodomésticos, material de construção, mas ouro e dinheiro nem vê-lo.
O ‘Morto’, apesar de o terem acordado cedo (o que para o seu relógio biológico era uma violência), mantinha a tranquilidade. Não abria o bico. Já dentro de casa, a equipa de investigação não largava o osso. Tinha de haver ali alguma pista. Surge uma ideia mais barulhenta. De marretas em punho, começam a escavacar paredes. E subitamente surge uma mina: o ouro roubado tomba ao chão acompanhado de relógios e maços de notas. Quase 100 mil euros em notas.
Em simultâneo, cinco dos mais importantes operacionais e um ourives, o recetador do ouro, eram buscados pelos agentes. Quatrocentos homens, de vários comandos daquela Polícia, numa parceria com a GNR, esquadrinhavam tudo. Mesmo a família dos operacionais não escapou. O ‘Murtosas’, que andava sempre embonecado com roupa de marca onde investia boa parte do lucro criminoso, não teve tempo para se compor. Também a sua mulher, tal como a mãe, com habitação própria, tinham conseguido obter licença para acolher idosos – a tal via aberta para a organização obter informações. E foi na casa da mãe do ‘Murtosas’ que se deu outro achado: recorrendo a manhas antigas, a senhora enterrara no quintal uma lata com 50 mil euros.
Já o ‘Venezuelano’, o elemento mais atento do grupo, que topava a Polícia e as vítimas a léguas, tinha o seu pecúlio escondido no motor do frigorífico.
Para o ‘Morto’, aquele foi um dia extraordinário. Acabou, tal como quatro dos seus homens, em prisão preventiva. Quando ouviu o juiz decretar-lhe a medida de coação, a serenidade gravada no seu rosto desapareceu pela primeira vez – como se tivesse mirado uma assombração.