Por Vítor Rainho e João Campos Rodrigues
Quem fala com Adelino da Costa, sente de imediato que ele observa o futuro, ao longe, mas tem os pés bem assentes nos chãos sagrados da Guiné-Bissau, por onde caminham espíritos e antepassados.
Nascido entre os manjacos, um povo guerreiro, cresceu no bairro das Marianas, em Carcavelos, em tempos um dos mais duros da capital portuguesa, onde se afirmou como lutador de kickboxing e muay thai, antes de seguir para Nova Iorque, onde se sagrou campeão, abrindo o seu próprio negócio de ginásios, que largou para voltar à sua Guiné-Bissau, apostando no turismo no arquipélago dos Bijagós.
Vê o setor como podendo ser o futuro deste país, que tem tanta dificuldade em conseguir exportar os seus principais produtos, como o caju e o peixe, ficando estes nas mãos de negociantes vindos doutros países, sobretudo da China ou do Senegal. Portugal pode tornar-se essencial neste esforço, talvez a grandes fonte de turismo para a Guiné-Bissau, muito graças a uma herança cultural partilhada, aponta Da Costa.
Há “monumentos históricos portugueses dentro de Canhabaque, na ilha mais sagrada do chão dos Bijagós”, frisa o empresário guineense. Já em Bolol, onde paravam negreiros, ainda “vês correntes dos escravos com quinhentos anos, presas dentro do corpo da árvore, que cresceu à volta”, exemplifica. ”É preciso realçar essa história entre Portugal e África”.
Depois de Nova Iorque decidiste voltar à Guiné-Bissau e apostar a sério no teu país. Olhando para trás, mesmo com uma pandemia pelo meio, sentes que isso teve impacto? Vês transformações com os teus projetos lá?
Bastante, porque não fui para a Guiné só porque sou guineense, fui com intenção de fazer algo diferente, estar no sítio onde sinto que sou mais útil. A Guiné de 2008 e a Guiné de 2022 é completamente diferente. O aeroporto é diferente hoje, as estradas são diferentes, mesmo em termos de luz, de necessidades básicas, vê-se uma evolução positiva. Independentemente de ser preciso fazer muito mais. Eu, indo para a Guiné e ‘montar’ um hotel, fi-lo com a intenção de ver outros fazer o que estou a fazer hoje. E isso está a acontecer também.
Há outros a seguir o teu exemplo?
Há, e tem mais guineenses na diáspora com interesse em participar ou até de correr esse risco. Porque no início tudo o que a gente faz tem risco, não há certezas absolutas. No entanto há outros hotéis a abrir. E isso ajuda a mudar essa ideia de que parece que na Guiné ainda estamos no anos 50 ou 60.
Da Costa, nós estamos a falar de um universo de dezenas de ilhas, muitas delas completamente selvagens, não têm nenhumas infraestruturas, algumas nem são habitadas. É que há uma grande diferença entre Bissau e as ilhas.
Por isso é que eu falo muito na Guiné-Bijagós. Porque de Bissau para o arquipélago ainda há alguma distância. E desde a altura colonial até hoje, nunca houve problemas no arquipélago dos Bijagós. Tudo o que acontece é na parte continental. Agora, uma viagem de Bissau para as ilhas leva-te duas horas, três horas. E se fores com um transporte local são quatro horas, à vontade. E nós temos 88 ilhas, em que só 13 estão habitadas e um total de 40 mil habitantes. Por isso é que digo, há enorme potencial, porque é aquilo para que o turismo hoje está mais virado.
A desvantagem da Guiné tornou-se vantagem. Porque temos os Bijagós na sua pura essência, é natural, estão intactos neste momento. Da comida, ao bom tempo, à paz… Têm tudo aquilo que as grandes cidades estão a precisar, o que falta no meio dessa confusão, nos Bijagós, a umas horas de distância. Comer o peixe do dia mal sai da água, isso é que é o luxo. Estar a andar, tiras uma fruta e comes. É um tipo de turismo e bem-estar que é procurado. E os Bijagós não precisam de um turismo de massas, precisa de um turismo próprio, com o seu próprio tempo.
Para desenvolver o turismo nos Bijagós, quantos turistas achas que são precisos para rentabilizar os aldeamentos que neste momento já existem?
Há o chamado turismo de mochileiros. Quantos turistas desses é que preciso para rentabilizar as Bijagós? Estou a falar de um turismo exclusivo e pelo qual se paga mais. As pessoas vão para os locais mais remotos, a pagar mil euros por noite, onde não há luz, porque é isso que querem. Esse turismo existe. Termos esse turismo tão próximo, a umas horas de distância… Claro que não é um turismo para ter aviões a levar centenas de pessoas por semana. O que é que eu faço com essa gente toda?
Para já vais ter dois ou três voos por semana de Portugal.
Mas por isso é que digo, que os Bijagós têm turismo do nível mais alto que se procura hoje. Por exemplo, tendo-se um certificado internacional de destino sustentável e com carimbo de sustentabilidade – hoje em dia ninguém quer ir para algum sítio onde não sabe para onde é que o lixo vai, de onde é que vem a comida, se a população participa no benefício do turismo – paga-se muito mais por esses destinos do que por aqueles onde as pessoas vão visitar um espaço onde ficam ali fechadas. Às vezes nem chegam a sair, porque têm tudo lá incluído. Mas por isso é que estamos neste trabalho de mostrar que o turismo para os Bijagós pode ter esse carimbo. Porque aquilo que o mundo quer ser é o que temos nos Bijagós.
Há 13 ilhas habitadas, mas a tua [Bubaque] é um pouco diferente, pelo menos das que estão exploradas turisticamente. Não é tão comercial como as outras, pelo que vi. Mas quem vai para a tua ilha também tem que saber que a partir das seis horas da tarde não há gerador a funcionar.
Enquanto turista, quando dizes que vais para África, em que sentido é que estás a ir para África? Vais para África só para conhecer? Para dizer que foste? Ou vais para sentir África? Quando vens para o Da Costa [pausa] sabes que estás em África, sentes a cultura, a história, o misticismo, a gastronomia, a natureza. Sentes aquilo que eu sou, como Da Costa. Independentemente disso, quando vais como turista para a Guiné, a maneira que lidas com os mesmos erros que podem acontecer – porque o gerador parou uns minutos, porque a comida demorou um bocado a chegar – depende da maneira como saíste daqui e foste indo para essa África.
Mas essas coisas podem acontecer até na Europa, acontece comigo, que às vezes chego a um hotel e as coisas não foram limpas. Como aceitas isso depende de como vais. No Da Costa estamos com um gerador, mas quer dizer, estamos a trabalhar num local remoto. Isso depende do espírito com que vais.
E no meio disso, quão importante é a ligação com o misticismo da ilha, com os habitantes locais?
Ir para o Da Costa, a experiência que quero preservar é o encontro com comida local, sazonal, porque tudo tem o seu tempo. Nós não preservamos a comida dois ou três meses, não vamos buscar comida da Europa, enlatados de França ou o que seja. A comida é o que a natureza nos dá no momento, se há mangas vais comer manga, se há papaia é papaia. O
Da Costa é a continuidade de cada aldeia e população à volta, tudo tem de estar integrado. E nisso, para preservar e proteger o que existe à volta do Da Costa, é preciso que quem chega lhe seja apresentado. Então os clientes que vêm levo-os ao encontro das cerimónias que são feitas, dos rituais, de como se viveu ali durante estes anos todos, até este momento.
Ao falar contigo nota-se logo que tens uma relação muito forte com o povo bijagó, até pelo próprio facto de teres escolhido estabelecer-te entre eles, não nas regiões manjacas onde cresceste. Consegues explicar o que diferencia esta cultura, o que te puxou para sentires as suas cerimónias animistas de uma forma tão profunda?
Essa ligação com os Bijagós, até diretamente com a terra, tem a ver com a própria experiência de nascer em África, vir para a Europa, ir para a América e voltar. E perceber que essas cerimónias têm um grande valor mental. Porque a maior parte da população dos Bijagós não sofre de crises psicológicas, depressões, coisas dessas. E isso tem a ver com uma crença forte na libertação de te entregares a este misticismo. Então estas cerimónias são feitas quando recebemos os nossos hóspedes, porque és responsável por eles.
Uma cerimónia é o malgósal. Essa palavra vem de coisas como a casca de limão, das coisas que não se comem, que o bicho não toca, não consegue porque tem esse sabor lá dentro. Espiritualmente, levam-te para um chão sagrado, que é sempre debaixo de uma árvore chamada polon, não há chão sagrado dos Bijagós sem um polon grande. Imagina que estás a andar no mato e estás perdido. Se levantares a cabeça e vires o polon grande, vais encontrar sempre uma aldeia.
Quando chegas lá, tem sempre essa energia, de onde fazem o malgósal. Isso serve para proteger a tua honra, a tua força, tudo o que se passa à tua volta. Para que má energia, até maus pensamentos ou maus olhos dos outros, não te afetem. A partir dessa cerimónia, com essa presença, usas material próprio. No vosso caso [olha para o Vítor] foi aquela banda em que são feitas rezas. Até não fizeram uma parte dessas cerimónias, porque é feita sempre com uma ligação com outro mundo e tem de haver sangue. E essa parte pode ser demasiado forte para os hóspedes.
E o que matam nessa cerimónia?
Nos rituais, até hoje, a ponte que nos liga deste mundo para o outro é essa parte de sangue, de ‘traça-alma’. Até é o que nos liga ao passado. Há muito isso nos Bijagós, porque fazem uma cerimónia em que pegam tudo, põem todas as ideias, todas as suas intenções dentro deste animal, normalmente galinha. E antes dele ser morto pedem a esse animal que se direcione num certo sentido, depois de ser cortado. E aí veem qual é a caminhada que ele toma, para responder às perguntas. Quando vemos essa resposta, é por aí que seguimos a caminhada, para perceber se é bem-vindo ou não.
Vocês não chegaram a ver esta parte, mas havia sangue quando chegaram. Essa cerimónia do margosal era sobretudo para vos proteger, para vos dar toda a segurança no chão sagrado dos Bijagós. Mas há várias outras cerimónias em que as pessoas vão lá porque estão doentes. Até hoje em dia há muitos na diáspora, não só os estrangeiros, que vão para os Bijagós à procura de outras respostas quando não as encontram num mundo como este, nas grandes cidades como esta. Seja problemas de saúde, financeiros ou psicológico. Isso acontece constantemente.
Mas é por todas essas razões que estás a enumerar que tão pouca gente de Bissau vai aos Bijagós. Ouvi muitas pessoas que tinham medo do misticismo de algumas ilhas. Diziam coisas como: ‘Aquilo tem um misticismo muito forte, a minha mãe diz para não ir, o meu pai não quer’. Por que isso acontece?
Não há ninguém na Guiné, muito menos nos Bijagós, sem um mundo místico. Não há. Não há nenhum indivíduo ou cidade que não esteja ligado diretamente a isso. Não falamos de há cem ou duzentos anos, eu estou aqui agora. No meu caso, pessoalmente, não há Da Costa que veio a Portugal, que abriu grandes negócios no centro de Nova Iorque, na Quinta Avenida, sem uma ligação ao mundo místico. Porque o meu pai ainda está ligado às cerimónias, não há nenhum manjaco e quase nenhum guineense qu
e participe nisso, porque isso continua no nosso DNA. Esse mundo não explicável às vezes vem com coisas positivas, outras vezes com coisas negativas.
Mas o que te pergunto é porque há tanto receio.
Porque há respostas que não são desejadas. Tanto há os que têm medo, como há os que procuram isso, bastante. Na Guiné vês, em quase todos os recantos, até nas praças e no porto de canoas, que há nomes do chão sagrado, que são os deuses desses arredores. Vês que as cerimónias estão a ser feitas a toda a hora. Esse medo vem das tuas intenções e da tua parte psicológica. Porque se tiveres má fé, como a gente diz, tens que te preocupar com esse mundo.
Por exemplo, este telemóvel aqui [agarra no telemóvel] se tu o deixares cair em porto Canchungo, em zonas dos manjacos, podem passar dez pessoas ou cem pessoas, vão só puxar para o lado este telemóvel. Isso acontece lá, neste momento, neste milénio estranho que vivemos. Nada desaparece, porque nada que não é teu tu podes tomar. Não interessa se alguém te está a ver ou não. Porquê? Porque estamos ligados sempre a este mundo e estes poderes espirituais, que não te permite fazer mal ou pensar sequer nisso.
E então o receio desse mundo existe em muita gente, de acordo com a maneira como eles lidam consigo mesmos. Há sítios onde vês logo que não podes entrar, porque dizem-te de imediato, que se não és limpo contigo mesmo não entras aqui. Não podes entrar naquele mato, chamamos-lhe mato grande. Tu conheces as regras do que se faz ou não se faz, não é preciso provar isso intelectualmente, deixamos isso nas mãos de outros poderes do mato sagrado. Esse medo dos rituais existe bastante nas pessoas. Mas não há nenhum guineense sem essa dimensão, não interessa a gravata de duzentos dólares que usas. Enquanto manjaco, até os meus filhos – é um pouco como os judeus, com a festa do Bar Mitzva – têm que ir para o chão sagrado, não interessa se nasceram nos Estados Unidos, em Portugal, onde for.
A nível psicológico sentimos um alívio grande nessa entrega. Mas há pessoas que se vão desviando desse caminho, devido ao mundo se ter tornado tão científico, matemático. Já começamos a fugir disso, mas aí fica algo lá no fundo, a perturbar-te, porque estamos ligados a isso por sangue. E há muita gente que fica com receio disso. Desde por volta do séc. XVII, quando as igrejas entraram dentro de África. Com que intenção? Às vezes não gosto de tocar nesse ponto.
Mas toca à vontade.
[Riso] Essa parte da igreja é um bocado complicada, é preciso alguma sensibilidade. Porque hoje há muita promoção das igrejas que querem tirar essas práticas dos locais, que no fundo são valores, são caráter e dignidade dessas pessoas.
Essas igrejas estão a tirar essa essência? E imagino que não falemos apenas da Igreja Católica, falamos de outras igrejas também.
Sim, de muitas igrejas, porque agora cada ilha e região tem coisas que dantes não havia lá, agora há muito mais. É por isso que tenho que tomar cuidado e não quero aprofundar o assunto. Sou sempre assim, nem da esquerda, nem da direita e nem no meio. É por isso que consigo trabalhar na Guiné.
Já percebemos que há muita gente na Guiné que não vai nem gosta de ir às ilhas, até falei com políticos que sentiam isso. Por isso, o turismo das Bijagós será sempre essencialmente de estrangeiros, não tanto de guineenses.
A vantagem que temos hoje tem a ver com certas desvantagens que não nos deram facilidade de visitar as ilhas. Permite um turismo natural, puro, no timming dos Bijagós. Isso é possível até por as pessoas não as conhecerem, até pessoas em Bissau. Porque ainda falta fazer muita coisa. Para ir para Canchungo, devíamos demorar 15 minutos, não uma hora. Para Bafatá não devia levar um dia, deviam ser umas duas horas. Para chegar à fronteira com o Senegal deviam ser umas três, quatro horas, não demorar tanto que já está a fronteira fechada. Por isso muitas são desconhecidas, até por nós mesmos.
Por isso é que intencionalmente tento fazer a diferença e dar visibilidade à Guiné-Bissau. É preciso criar condições, mas também dar a conhecer. Porque ir para a Guiné não é fácil nem barato. Isso dificulta, mas também é oportunidade. Porque se falta um barco, ou faltam cartões de crédito, ou máquinas de multibanco, se eu levar agora, tiver um acordo com o banco, e todos os hotéis ou restaurantes forem lá para pagar, é um negócio que estou a criar.
Se perguntares a alguém em Portugal, em Nova Iorque, o que é que sabem da Guiné, dizem-te que é dos sítios mais pobres e mais perigosos, que é uma realidade diferente do que conhece quem vai lá. Também conheço bem Angola, Moçambique, Cabo Verde. E na Guiné-Bissau até foi onde me senti mais seguro, mesmo em Bissau. Há dois mundos na Guiné-Bissau. Há o mundo dos políticos, que estão sempre governos a cair e tentativas de golpes de Estado, e o outro que é a vida dos Bijagós, que não tem nada a ver com a confusão da cidade. Como vão quebrar as ideias pré-concebidas das pessoas, de maneira a que vão para os Bijagós sentindo-se seguras?
Acho que desde 2006, 2007, já temos outra imagem. As Guiné agora é outra. Estive na Guiné há dois meses, quando voltei de lá o Governo já tinha caído.
A política é a mesma coisa que a igreja, há muita coisa a dizer. A Guiné do povo é diferente disso. Nem sequer estou a falar da Guiné da população, porque isso incluí a gente toda do Senegal. A Guiné não tem fronteiras fechadas, não tem moeda própria. O país vizinho está num desenvolvimento ascendente. Até nos Bijagós já se fala francês, vê-se um branco é francês que vão falar. Mas acho que apesar disso já se tem criado uma imagem diferente, até com ajuda dos meios de comunicação. Ajudam-nos a ser mais transparente.
Acho que não há nenhum Governo que não queira o bem da Guiné, mas estamos a sair de uma situação que não é de ontem ou do mês passado, de há um ano ou até de vinte. Estamos a trabalhar num sentido em que todos os guineenses têm de chorar juntos, de nos aliviarmos e reconciliarmos. Para que o passado fique no passado. É preciso uma visão comum, e essa visão falta ser transmitida no Governo. Mas as coisas fragmentadas estão-se a juntar. Os filhos de África que saíram há trinta, quarenta anos, estão a regressar, como eu. Estão a participar nessa visão na Guiné. Estarmos aqui sentados hoje é a sorte de África, porque temos conhecimento deste mundo e do outro. Que não está desligado de nós, são os nossos rituais, as cerimónias, o misticismo. Conseguirmos perceber que, se virmos uma folha fechada ao pé da nossa casa, quando abre comunica com o povo local, sabemos que a água está cheia. As pessoas das grandes cidades nunca vão saber isso.
As pessoas da Guiné sabem que há raízes que quando pões na água fazem espuma, como um sabão que te tira o óleo de palma na mão, não ficam nódoas. Os filhos de África que voltam têm esses conhecimentos, para que a Guiné os consiga transmitir. Por isso é que quando vais ao Da Costa tudo é intencional. Sentes a comida africana, estás com o povo africano, com rituais africanos, com toda essa cultura.
Se ficarem à espera dos Governos nunca vão desenvolver os Bijagós, terão de ser os privados a criar carreiras, barcos, etc.
Mas isso é comum em muitos pontos do mundo. A nós, privados e empresários, o Governo só tem que nos dar a base. O necessário para nós participarmos no desenvolvimento do país. Só temos de ter as estradas bem, as comunicações, a parte elétrica, a saúde.
Pois, aí tens um grave problema, na saúde. Ou seja, uma pessoa vai para uma ilha, tem um problema de saúde está tramada. Ou tem dinheiro para ir para o Senegal ou para a África do Sul rapidamente ou é complicado.
Posso dizer-te, tendo tido a sorte de ter nascido em África, crescido em Portugal e feito negócio na Quinta Avenida, que as pessoas mais ricas do mundo pagam para ir para os sítios mais remotos, onde não há nenhum hospital. Claro que faz falta aquilo de que falas. Mas também temos de saber ver isso como um problema que não nos deixa avançar. Neste momento onde se gasta mais dinheiro não é em sítios onde tens um hospital lá ao lado. Mas percebo perfeitamente o que dizes. Isso, mais uma vez, tem a ver com a responsabilidade que um Estado tem, tem de criar condições básicas. Está tudo por fazer, e tem de haver vontade. Mas preocupa-me muito que só nos foquemos nas coisas negativas. Temos de começar a ver as partes boas da Guiné. Na Guiné não há luz, confirmo-te isso, mas também te garanto que está seguro.
Em Harlem, se não houver luz, acordas de manhã e vais achar que houve lá uma guerra. Na Guiné não há câmaras em cada canto como nos Estados Unidos, mas não há gente a matar trinta, quarenta crianças a cada mês. Graças a Deus que os meus filhos estão aqui no Estoril, a olhar para o mar, senão cada vez que saísse de casa tinha de me preocupar, constantemente. Na Guiné tu não vês pessoas a dormir na rua.
Não vês alguém comer sozinho sem dizeres: ‘Vem comer comigo’. Não há essa pobreza mental. Tu olhas para as crianças da Guiné, logo de manhã, bem cedo, cinco horas da manhã, já estão a varrer a frente da casa. Não há quem não te convide a entrar na sua casa. Não tem nada a ver com a pobreza das grandes cidades. Estamos ligados espiritualmente, temos os régulos das tabancas, os chãos sagrados. Essa mensagem tem de passar, para as pessoas perceberem que é preciso falar da Guiné de outra forma.
Já percebemos que tens um olhar mais positivo do que a realidade é. Repara que todas as semanas vêm guineenses para ser tratados em Portugal. E diz-me uma coisa, tens ideia qual é a diferença de esperança de vida entre os continentais e os ilhéus na Guiné?
Quem vive mais tempo ou quem vive com mais sofrimento? Podes viver mais tempo na cidade, mas com mais sofrimento. Com dores, com comprimidos. O povo da Guiné não consome compridos. Porque temos o nosso antibiótico, vais ao mato, a cobra te morde, tens um antídoto que vem de uma planta. O peixe-raia pica, como aconteceu com o meu filho, tens antídoto da planta, puseram e passou. Esse mundo existe e tem de haver uma ponte com as universidades. Porque não há escola de medicina natural como o chão sagrado dos Bijagós.
Em relação a qualidade de vida, se eu não vou usar um knorr ou óleo na comida, quem vive melhor e mais tempo? Claro que é a pessoa que está no chão sagrado dos Bijagós. É muito mais saudável. O problema é que, se sobes à palmeira para tirar o champanhe das Bijagós, cais… Ali é um risco, porque tudo o que exija operações, a parte científica, já não há. Mas às vezes nos Bijagós as pessoas vão ao hospital só para saber qual é a doença, depois já sabem que planta usar e curam-se assim.
Neste momento, devido à situação política na Guiné-Bissau, há um país que está a ganhar grande preponderância, que é o Senegal. Muitas crianças falam francês, embora tenham aulas de português. E aquilo de que dizes, que se perderes algo ninguém toca, não é totalmente verdade. Nós estivemos em sítios em que desapareciam coisas do hotel. Como vês a aproximação do Senegal? E a ligação a Portugal está a diminuir?
As fronteiras estão abertas e a população cresce, vem do Senegal, Guiné-Conacri. Como disseste, estiveste num sítio de senegaleses, que faz parte da população. Mas o povo guineense, falei especificamente do porto para Jeta, podes ter a certeza que isso não acontece, o que perdes fica lá. Falo-te de experiência, aí continuamos ligados espiritualmente, não vivemos só neste mundo físico. Isso é que faz com que a Guiné continue a ser um país de hospitalidade. Quando rimos, olhamos para o céu. Viste isso nas crianças, agarram-te na mão, não metem a mão no teu bolso. Isso é verdade e temos de falar disso. Mas por isso é que a minha intenção é trabalhar com o povo da Guiné, com a língua portuguesa, não o francês. Não vou estar a trazer mão-de-obra de fora.
Da mesma forma que se fores um turista que sai de Portugal ou sai da Europa e está à procura de um hotel europeu em África, não é isso que vais encontrar. Quero algo verdadeiro, intacto, próprio. Até tens americanos que estão a vir à procura dos seus ancestrais, do passado, porque saíram de África nos navios negreiros. Depois testam o seu DNA e vêm: ‘Sou balanta, ou fula, mandinga’. E esse mercado está a crescer. Porque é que vou trazer alguém de Harlem ou Brooklin e chega e vai para um hotel francês ou libanês, que não tem nada a ver com a Guiné? Porque é que não o ponho num hotel onde se fala português? Mal chega, a pessoa tem de se ligar imediatamente com o motivo pelo qual saiu dali. Nós fizemos parte dessa rota.
Quando chegam, têm de ir para o hotel Coimbra, ou para o hotel Azalai, que era um antigo quartel português. Se me pedissem opinião, tudo o que lá estava, de fotografias à comida, tinha de estar ligado aqui. Há uma certa cultura portuguesa na Guiné. As pessoas responsáveis pelo país ou não percebem isso ou têm interesses. O que é que o Instituto Camões faz lá? Não estou a perguntar pelo Senegal ou França. O que estão a fazer, qual é o programa e a intenção de avançar em conjunto? Essa falha não vem só dos guineenses.
Como olhas para o facto de uma ilha como Bolama estar abandonada, uma coisa fantasmagórica?
Tu sabes o que é, hoje em dia, saber que grandes cadeias de hotéis como os Pestana conseguirem estar em Óbidos, aproveitar o castelo… Aqui houve uma valorização histórica. Já Bolama, a primeira capital da Guiné, com todas aquelas estruturas magníficas, onde ainda está lá um povo com cultura portuguesa também, porque na Guiné fazemos parte disso, foi deixada em ruínas. Da nossa parte faltou ter as pessoas certas nas posições certas. Faltou em ambas as partes.
Nos anos 90 fui com um grupo de jornalistas ao nordeste brasileiro, a convite dos governadores do Ceará, Baía e Pernambuco. Em poucos anos, Portugal, que tem apenas dez milhões de habitantes, transformou-se no quarto maior país a nível de turistas no Brasil, que é algo impressionante. Achas que Portugal pode ser a grande origem dos turistas na Guiné-Bissau?
É um país onde há vestígios históricos. Com monumentos históricos portugueses dentro de Canhabaque, na ilha mais sagrada do chão de bijagós. Com a mesma língua e uma ligação cultural muito própria. Aqui em Portugal tem de ser feito um trabalho entre agências, operadores, até às embaixadas, ao Estado para começar a falar deste país. Aliás, às vezes cruzo-me aqui com pessoas com 80, 70 anos, e dizem-me: “Vim de Moçambique, vim da Guiné, vim daqui e dali”. Essa população faz parte disso ainda, dessa história viva, os netos ainda vivem essa história. Mas tem de se contar também a história do que a Guiné é hoje, da maneira como te recebem, de que é um país seguro com pessoas amáveis.
Independentemente da outra parte, política, que existe em todo o lado. Não se pode procurar só o negativo, como a questão da droga.
Organizações internacionais garantem que é por lá que passa boa parte da droga. E isso põe e tira governos, aliás, na altura do golpe de Estado de fevereiro até se dizia que isso teve a ver com o tráfico de droga.
Passa, passa, não fica! O povo sofre com isso, a próxima geração sofre com isso. A droga passa, mas nunca é referido de onde sai e para onde vai. Mas isso é importante, não podemos continuar a falar só disso, para que a Guiné possa ser um país turístico e receba mais gente vinda de Portugal. Quantos portugueses viajam pelo mundo fora? E encontram alguma coisa que a Guiné não pode oferecer?
Por falar na história, porque é que algumas populações nas ilhas vivem tão no interior, tão longe do mar? Como aquela povoação onde fomos entregar material escolar, andámos quase duas horas. Era para se defenderem do colonialismo?
Por exemplo, em Jeta, historicamente, era exatamente isso. Os barcos acendiam luzes no mar e a gente corria. Dantes vivia-se mais próximo do mar. A gente não come muita carne porque não tiras a vida de um animal sem a parte espiritual, numa cerimónia, e agora se queres matar uma vaca, um porco, vais ao talho. Por isso a população vivia sobretudo de marisco, peixe, ninguém ia para o mato. Até porque lá há muito risco, animais ferozes, cobras, muita coisa. Mas, por causa do colonialismo, ao risco de serem capturados e levados para outro mundo, iam todos para o interior e depois não saíram. Em Bubaque era o porto principal da colónia portuguesa. É ali que estão aquelas estruturas coloniais, como em Bolama. A Guiné até já tem um site para americanos afrodescendentes identificarem as suas tribos, quando fazem testes de DNA.
Os barcos que levavam os escravos paravam em Bolol. Se fores lá hoje, ainda vez peças que não estão no museu, o povo local não deixa. Como os canhões dos barcos, que estão na baloba, que é um espaço espiritual, para rituais. Nessa ilha vês correntes dos escravos com quinhentos anos, presas dentro do corpo da árvore, que cresceu à volta. É muito importante para quem volta sentir essa energia, tocar nessas correntes. É preciso realçar essa história entre Portugal e África.