A história de coragem de Mo Farah, que revelou, na semana passada, que tinha sido levado ilegalmente para o Reino Unido e forçado a trabalhar como um escravo doméstico, levou a polícia do Reino Unido a abrir uma investigação sobre as declarações do campeão olímpico.
“Estamos ao corrente das informações divulgadas pela comunicação social sobre Mo Farah”, disse a polícia de Londres, acrescentando que a investigação provavelmente se concentrará no casal que Farah acusou de o ter forçado a cozinhar, limpar e a tomar conta dos seus filhos, esclareceu o Daily Telegraph. “Agentes especializados abriram um inquérito e estão neste momento a analisar toda a informação disponível”.
As revelações sobre a infância de Farah foram feitas num documentário sobre a sua vida. “A maior parte das pessoas conhece-me como Mo Farah, mas esse não é o meu nome nem é a verdade”, revelou o atleta que, ao correr pelo Reino Unido, se tornou um dos mais bem-sucedidos desportistas de sempre no documentário, The Real Mo Farah, que estreou na BBC. “A minha verdadeira história é que nasci na Somalilândia, no norte da Somália, como Hussein Abdi Kahin. Apesar do que eu disse no passado, os meus pais nunca moraram no Reino Unido”, confessou Farah.
O atleta que venceu quatro medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Londres e do Rio de Janeiro, nas distâncias de cinco e dez mil metros, além de terem vencido seis mundiais, elevado a Sir em 2017, devido aos seus serviços no atletismo (é o mais bem-sucedido atleta britânico nesta modalidade), revelou que foi traficado de forma ilegal para o Reino Unido, quando tinha apenas nove anos, com o nome de outra criança e foi forçado a viver como um escravo doméstico.
Farah foi traficado para o Reino Unido através de uma mulher desconhecida que o forçou a assumir esta identidade falsa e a trabalhar na casa de um casal que o tratava mal.
A vida do medalhista olímpico apenas sofreria um revés quando este ingressaria na escola pela primeira vez, quando tinha 12 anos, depois de ser resgatado pelo seu professor de Educação Física, Alan Watkinson, que o ‘salvou’ e ajudou a pedir a cidadania britânica (ainda que com o seu nome falso).
Até ao momento, Farah tinha defendido que tinha chegado ao Reino Unido como refugiado da Somália com os seus pais.
“Quando eu tinha quatro anos, o meu pai foi morto na guerra civil, como família fomos dilacerados”, explica no documentário. “Fui separado da minha mãe e trazido ilegalmente para o Reino Unido sob o nome de outra criança chamada Mohamed Farah”.
Devido ao estado da sua família, a mãe do atleta enviou-o e o seu irmão gémeo para ir viver com um tio em Djibuti, mas foi aqui que Farah começou a ser recebido pela mulher que acabaria por levar para a Europa, sob a justificação que este iria morar com familiares, contudo, assim que chegaram ao Reino Unido, a mulher que o acompanhava pegou no papel onde estava o contacto dos seus familiares, rasgou-o e deitou-o no lixo.
“Nesse momento, percebi que estava em sarilhos”, recordou.
Esta mulher foi contactada pela BBC para esclarecer estes comentários, mas recusou comentar.
A história de superação de Farah, que chega agora a público, foi a forma que o especialista em corridas de 5 mil e 10 mil metros de se sentir “normal” e de tentar inspirar jovens que tenham enfrentado situações semelhantes.
“Eu guardo este segredo há tanto tempo, tem sido difícil porque não sei como encarar esta situação nem como responder às perguntas dos meus filhos. É preciso ter sempre uma resposta para tudo, mas não tenho uma resposta para isto,” admitiu. “Essa é a principal razão para contar a minha história, quero sentir-me normal e que não tenho algo a sufocar-me”.
Uma das grandes preocupações do atleta era o seu estatuto de imigrante, contudo, o Governo do Reino Unido garantiu que não iria processar o fundista. “Nenhum processo será instaurado contra Sir Mo Farah”, afirmou um porta-voz do ministério do Interior britânico, citado pela agência noticiosa AFP.
“Existem milhares de pessoas neste país como Sir Mo – pessoas que fizeram novas vidas no Reino Unido e que fizeram contribuições incríveis”, escreveu o Conselho de Refugiados Britânico no Twitter. “A coragem e bravura de contar a sua história dá esperança a todos aqueles que fazem campanha por um sistema de asilo justo e humano”, concluiu o grupo, citado pelo Al Jazeera.
“Eu não fazia ideia de que havia tantas pessoas que estão a passar exatamente pela mesma coisa que eu. Isso só mostra o quão sortudo eu fui”, expressa o atleta. “O que realmente me salvou, o que me fez diferente, foi que eu podia correr”.
Esta história chega numa altura em que o próprio Reino Unido enfrenta também uma crise de refugiados de diversas nacionalidades a serem enviados deste país para o Ruanda, uma política descrita como sendo desumana pelos críticos.
Mas entre as preocupações pessoais e sociais de Farah, estava também a preocupação de saber o que é que aconteceu com o verdadeiro “Mohamed Farah” tanto tempo depois.
“Muitas vezes penso no outro Mohamed Farah, o rapaz cujo lugar eu fiquei naquele avião”, acrescentando, “realmente espero que ele esteja bem”.
No final do documentário, Farah vê as suas dúvidas serem dissipadas, com este a falar com o homem a quem roubou a identidade antes de entrar no Reino Unido, revelando que iria continuar a utilizar o nome que o acompanhou numa das maiores histórias de sucesso do desporto mundial: Mohamed Farah.