Maria Isabel Rebelo Couto Cruz Roseta. Há alguém que a trate por Maria Isabel? Ou, se chamarem pelo seu nome de batismo, o mais provável é demorar uns milésimos de segundo até perceber que estão a falar consigo? Sim, hoje em dia ninguém me trata pelo meu nome. Na faculdade, quando tirei o curso, tratavam-me por Isabel, acho que é um nome muito bonito, mas que não reconheço. Tinham que me chamar muitas vezes para eu entender que era eu. Normalmente vinha sempre a seguir: «A Isabel é surda?», e eu percebia, então, que estavam a falar comigo porque nem os meus pais me chamavam Isabel, nunca.
É a mais nova de cinco irmãos. Como foi a infância lá por casa? A infância foi muito animada. Nós somos uma família grande, a minha mãe sempre gostou de ter a casa cheia, sempre recebemos muitos amigos. A minha mãe também gosta de animais e tínhamos imensos: cães, gatos, coelhos, ratos, papagaios e, portanto, era uma animação total. Mesmo nós os cinco [irmãos] temos uma diferença muito pequena de idades, era mesmo muito giro.
Cresceu em São João do Estoril. Sempre andou na “linha” ou deu muitas dores de cabeça aos seus pais? Eu sempre fui muito certinha, sempre tive boas notas, nunca dei assim muitos problemas… Nunca apanhei assim grandes bebedeiras, nunca gostei de drogas. Sempre fui muito certinha, fazia muitos retiros espirituais, ia às peregrinações, mas dores de cabeça na adolescência dá-se sempre, não é? Por causa de algumas respostas e tal. Numa casa cheia de mulheres, é preciso ter uma mãe mesmo matriarca para gerir tanta mulher, todas no auge da sua adolescência. Era uma mãe bastante exigente e, por isso, nós também andávamos todos na linha. Com esta mãe era impossível não andarmos na linha [risos].
Pais médicos… mas, ao mesmo tempo, uma família de cantores. Ouvi dizer que todos apresentam esse talento para a música. Imagino que as festas de família contassem com grandes produções e musicais. Cobravam quanto dinheiro aos familiares à entrada? Nós sempre fizemos grandes festas de família. A minha avó tinha uma escola e nós trazíamos muito para casa os teatros, os musicais. O meu avô tocava piano e todos cantávamos muito bem e, por isso, fazíamos teatros em que nos mascarávamos e cantávamos. A família inteira. Fazíamos o presépio: eu fui o menino Jesus [risos], era bebezinha, e as minhas irmãs os anjinhos, a Nossa Senhora, São José, toda a família. Era espetacular porque a minha avó decorava tudo, tinha muito jeito e fazíamos como a família von Trapp. Cantávamos todos: os cinco muito bonitinhos, todos com grandes vozes. A minha mãe tinha uma grande voz e a minha avó também. Só o meu pai é que não canta e, como ele costuma dizer, aprecia.
Começou a cantar no coro dos Salesianos do Estoril e foi a única entre os seus irmãos que não chegou a solista. Como é que se justifica esta curiosidade?! Timidez só? Foi no coro da escola Avé Maria, não foi no coro dos Salesianos. Também cantei no coro dos Salesianos, mas foi mais velha, e, aí, fui solista muitas vezes. No coro da escola Avé Maria, que era um coro conhecidíssimo na altura, fazíamos a Missa do Galo, ali na igreja de São Roque, e acho que era fantástico. Tínhamos uma professora que era das melhores professoras de música do país, a Simone, e a minha mãe diz que era uma coisa fantástica, só vozes afinadíssimas – e nesse coro é que eu nunca cheguei a ser solista, os meus irmãos sim, foram. E sim, foi mesmo por timidez porque já quando comecei a cantar fado cantava para dentro, porque realmente sou muito tímida, foi algo que me custou um pouco a gerir, mas foi também o meu desafio e a minha aprendizagem e, aos poucos, à medida que fui ganhando segurança, a voz foi-se projetando cada vez mais. Hoje em dia já não tenho esse problema, não deixo de ser tímida, não adoro a parte em que tenho de falar, mas também já me sinto mais segura e já consigo ser mais eu e estar mais inteira.
E em que momento é que a menina do “coro” se cruza com a atleta de artes marciais? Desde muito cedo que pratica desportos de combate e defesa, como karaté e judo. Foi cinto preto nalguma das modalidades? Eu comecei a fazer judo na escola Avé Maria, portanto muito novinha. Cheguei a cinto verde, cheguei a competir e a ganhar a medalha de prata. Depois fui para o karaté e também cheguei a cinto verde. Só entrei no taekwondo com 22 anos e sou cinto preto; há oito níveis e eu estou no segundo. As artes marciais sempre fizeram parte da minha vida. O meu tio era professor e era muito conhecido naquela altura no karaté, e, nós, todos os irmãos, sempre fizemos e ainda fazemos artes marciais. Eu, a minha irmã Ana e o meu irmão Miguel ainda praticamos, sempre esteve muito presente na nossa família.
Em que momentos já teve que se controlar para não desferir golpes mais aplicados? Eu tenho mesmo que me controlar porque sou considerada uma arma branca e não posso bater em ninguém. Não sou uma pessoa violenta – normalmente um cinto preto que tenha cabeça não é uma pessoa violenta -, nós não aprendemos artes marciais para atacar, aprendemos para nos defendermos mas, claro, se tivermos de atacar, atacamos, não é?! Mas detesto qualquer tipo de violência física. Mas sim, já tive uma situação em que estava a ser agarrada e queria fazer um golpe e tive que me controlar, porque nós não aprendemos o que são golpes que ‘magoam um bocadinho’ e os que ‘magoam muito’, há sempre o perigo de acontecer alguma desgraça, então não utilizo mesmo. Para mim até é bom [risos], porque terá que ser sempre através da conversa e de enviar uma boa energia – deixar baixar essa energia de raiva e de violência.
E a meditação? Quando é que começou a fazer parte das suas rotinas? Tal como o yoga, afirma que são dois dos seus segredos para manter a sanidade mental… Comecei a praticar yoga há nove anos com a minha irmã Inês que é, hoje em dia, professora na Ashtanga e, sim, são dois segredos para uma vida extremamente saudável. Eu, quando não faço yoga, não sou, de todo, a mesma pessoa, vejo os mesmos problemas por um prisma completamente diferente. Uma pessoa que faz yoga e meditação vê a dor e o sofrimento de uma forma positiva, vive com a consciência do momento presente e aceita aquilo que é como é: com gratidão, com serenidade e tranquilidade. Vive-se uma vida mesmo maravilhosa e daí o vício, é um vício gigante. Eu pratico yoga todos os dias porque quero estar nesse bem estar, para me sentir ‘in love’ pela vida, por tudo, por todas as decisões que tomo, por tudo aquilo que eu faço, pela minha serenidade. É, realmente, um grande segredo para um fado mais feliz, como o nome do meu livro que se chama ‘O Teu Fado é Ser Feliz’.
O fado, apesar de tudo, entra já numa fase tardia da sua vida. Ainda se lembra do que sentiu da primeira vez que entrou numa casa de fados e ouviu a Ana Sofia Varela? A Ana Sofia Varela foi mesmo a primeira pessoa que eu ouvi, deixou-me completamente com o coração na boca. Ela cantava aquela música linda, que era letra da Amália e música do Mário Pacheco: «O meu coração/ Na palma da mão/ Deixei-o ficar/ Caiu-me no chão/ Caiu-me no chão/ Deixei-o ficar/ E sem coração/Não se pode amar». Fiquei completamente apaixonada e comecei a ir ouvi-la todos os dias. Quem realmente me pôs a cantar fado foi o Carlos Zel, um fadista que eu admirava muito e que, infelizmente, já nos deixou, mas depois dele a primeira fadista que eu admirava, e que foi uma inspiração para mim, foi a Ana Sofia Varela, no Clube de Fado.
Ainda tem alguma coisa a dizer aos críticos que afirmam que não se enquadra no conceito de fadista? Ainda recentemente deu que falar o comentário feito por Nuno da Câmara Pereira a propósito de um look supostamente mais ousado que usou no seu dia-a-dia… Quando comecei a cantar preocupava-me um bocadinho, mas nunca me preocupei assim muito com a minha imagem. Tinha uma imagem um bocadinho diferente: usava cores, não usava xaile, tinha um piercing, não era de um bairro típico… As pessoas diziam que eu não era uma fadista típica e eu respondia que a moda não tem nada a ver com o fado. O fado é uma música que vem de dentro, vem do coração e a forma de cantar não tem nada a ver com a forma de vestir – até porque o preto e o xaile era a Amália que usava, antes disso não era só o preto que se utilizava, nem o xaile. A Amália utilizava o xaile porque não gostava de ter as mãos soltas, gostava de ter algo para segurar. A Amália gostava muito de preto e eu não gosto muito de utilizar preto, não é das minhas cores favoritas e não gosto de ter as mãos presas. Acho que cada fadista deve ser verdadeira consigo mesma. Quanto aos críticos, hoje em dia, com a minha carreira consolidada… claro que alguns não gostarão de me ouvir a cantar; outros gostam muito de me ouvir, como será a vida inteira. Os grandes artistas sempre tiveram pessoas que gostavam deles e outras que não gostavam, portanto não me preocupo muito com aqueles para os quais eu não faço a minha música. Eu faço a minha música para aqueles que gostam de ouvir a minha música.
O “fardo” da “farda” associado ao fado ainda faz sentido? Ou é conversa de parte da velha guarda? Não seria normal eu usar preto, se eu não me sinto bem com o preto, só porque no fado se utiliza. Eu praticamente não uso preto e a palavra que está associada ao fado é a verdade, ser verdadeiro em tudo, não só na forma de cantar como na forma de escolher música e poemas, como também na forma de vestir. A pessoa deve-se sentir bem e na sua pele. O fado é muito mais do que isso, é uma canção profunda, que não é superficial, de quem conta a verdade da sua vida declamando em canção a sua experiência de vida, os seus sentimentos, as suas emoções. E isso é o mais importante no fado. Não é se veste preto, ou branco, ou xaile, ou isto ou aquilo. Acho que nos dias de hoje, com as novas gerações, isso já acabou, já ninguém utiliza o preto e o xaile. O fado mantém-se exatamente como sempre foi, mas chega a nova geração e é normal que não se identifique, com o preto, com o xaile ou com algo mais escuro. Os mais jovens também podem utilizar preto mas, hoje em dia, também é bom que a imagem se mantenha coerente com aquilo que a nova geração representa.
Pelo contrário, a cor branco, e particularmente os vestidos de noiva, são peças indispensáveis no seu closet. Já casou 3 vezes com o seu atual marido [João Lapa]. Três é a conta que Deus fez? Pois, exatamente! É o contrário, o branco é uma cor que eu adoro, adoro cantar de branco, gosto muito de cantar de branco, o branco para mim também é a cor da espiritualidade, da pureza e eu sinto-me muito bem de branco. Adorei casar, adoro vestidos de noiva e adoro celebrar: celebrar a vida, celebrar o amor, os amigos, sempre que puder celebrar, celebrarei ao longo de toda a minha vida. Não sou uma pessoa de regras [risos], eu sei que as pessoas só casam uma vez, mas se eu quiser fazer uma festa de casamento a minha vida inteira, acho que nós temos é que ser felizes.
Já revelou que todos os anos celebram mais um ano de casados com uma festa com família e amigos – em que se veste a rigor, de noiva – e reúnem também com o Padre que celebrou o vosso matrimónio de modo a fazer um balanço dos últimos tempos. É uma pessoa de fé? Católica praticante? Eu tenho muitos amigos padres, sempre tive. Sim, sou católica, adoro ir à missa e sempre que posso ir à missa vou, inclusive durante a semana. Não consigo ir à missa todos os domingos, há muito tempo, porque na minha vida não se sabe o que vai acontecer amanhã e eu estou sempre a viajar. Por isso, não posso dizer que sou praticante assídua, mas sempre que posso vou. Sou católica e sou muito espiritual e respeito muito todas as religiões e todos os tipos de espiritualidade, daí o yoga, a meditação, também gosto muito de ler sobre o budismo e sobre o hinduísmo, canto mantras… Embora tenha sido educada na religião católica e seja essa a minha religião, também pratico yoga, canto mantras, que são cânticos aos deuses indianos – ao Ganesha e a Lakshmi -, e está tudo bem [risos]. O que importa é que nós saibamos parar, refletir, olhar para dentro e conectar com o divino, seja ele qual for.
Cantou para o Papa Bento XVI e teve também um encontro com o Papa Francisco. Foram dois momentos marcantes?Foram dois momentos raríssimos da minha vida que me sinto privilegiadíssima por ter tido. Quando era pequenina lembro-me de ir com os meus pais a Roma ver o Papa, ao longe, claro, no meio de milhares de pessoas; em Lisboa também vi o Papa João Paulo II, era muito novinha. Nunca me passou pela cabeça que pudesse conversar com o Papa Francisco, que é uma pessoa que eu admiro mesmo muito. São muito poucos aqueles que privam com o Papa Francisco, portanto eu fui uma sortuda e inclusive até lhe dei um beijinho – é uma simpatia, é um ser humano fantástico, muito natural e, embora não faça parte do protocolo, o Papa Francisco deu-me um beijinho. Foi muito querido para mim e conversou comigo. Foi um momento fantástico. E com o Papa Bento XVI também, ouviu-me a cantar aqui em Lisboa, foi lindo.
Também já cantou igualmente para membros da realeza europeia. Algum protocolo associado? São experiências diferentes? Todas as experiências foram fantásticas. Gostei muito de conhecer os reis de Espanha, são muitíssimo simpáticos, principalmente o rei de Espanha que já ouvia fado desde muito novo, mas a experiência que mais me marcou nesse aspeto foi com os reis da Suécia. Convidaram-me para me sentar à mesa com eles, num jantar para 100 pessoas, num palácio em que vi um desfile das joias e dos vestidos mais lindos, parecia que estava a entrar no palácio da Disney. Só eu é que fui convidada, fui sozinha e sentei-me ao lado de pessoas interessantíssimas, um senhor que tinha feito o maior estudo de sons de pássaros. Acho que também foi outra experiência na minha vida muito privilegiada, não penso que poderei ter outra experiência tão fantástica e tão bonita.
É este o verdadeiro significado do Fado? O facto de conseguir ser universal independentemente de ser cantado na língua portuguesa? Sim. Eu acho que ninguém valoriza o fado tanto como aquilo que ele vale. Acho que só mesmo os fadistas é que têm a noção que… quer dizer, é impossível não sermos apaixonados pela nossa música, pela nossa tradição e pelo nosso país. Como é que um país tão pequenino consegue conquistar o mundo através da música? Numa língua que é complexa, como a nossa, e que consegue tocar o coração de estrangeiros no mundo inteiro… O nosso fado é muitíssimo apreciado pelos japoneses, holandeses, alemães, noruegueses, polacos, italianos, franceses, espanhóis, russos… Nunca mais saía daqui… Antes de a guerra rebentar fui cantar a Moscovo – nós cantamos maioritariamente para estrangeiros, cantamos em festivais do mundo, músicas do mundo – e é extraordinário vermos uma música que, para nós, só funciona por causa da poesia ou da história que estamos a contar, mas para quem escuta funciona pela interpretação dessa mesma história, pela energia que se coloca em cada palavra… Essa é a grande ciência do fado.
Qual a parceria mais especial que já fez desde que se lançou a 100% na indústria da música? Para mim, o Djavan. Eu sou uma fã do Djavan desde sempre e cantar com ele… ainda hoje eu oiço a música [O Amor Não É Somente O Amor] e, cada vez que oiço, não acredito que estou a cantar ao mesmo tempo do que ele. É alguém que admiro mesmo muito e como pessoa então… foi maravilhoso conhecê-lo.
Já recusou gravar com várias editoras por não querer ser considerada apenas “um produto”. É cada vez mais difícil estar no meio com a necessidade de ter que estar sempre a lançar canções novas? Eu penso que, por ser muito espiritual, sempre me foi fácil gerir estas grandes ambições. Tive várias propostas das editoras e soube esperar porque eu, na altura, era psicóloga, cantava na casa de fados e gostava muito, já me fazia feliz, mas era um hobby. Foi o facto de eu não querer logo assinar com as editoras que me apareceram que me trouxe o Gustavo Santaolalla, que foi uma parceria que eu acho que fez sentido porque era a primeira vez que um grande produtor convidava uma artista portuguesa para gravar e foi uma pessoa com quem aprendi muito e com quem tenho muita honra de ter trabalhado. Quanto ao facto da necessidade de ter que estar sempre a lançar canções novas não é algo que me traga ansiedade, eu faço as coisas com amor, com muita dedicação, tenho o meu público desde sempre, tenho milhares de concertos, não paro de trabalhar. Tenho concertos sempre cheios de pessoas que gostam muito da minha música e é para elas que eu faço as minhas músicas. Por isso já não me deixa ansiosa se vai haver um lançamento x ou um lançamento y. Acho que a nossa missão na terra é levar o amor aos outros através do nosso dom, fazer os outros felizes com os nossos dons, e esse sonho eu cumpro todos os dias. Por exemplo, nestes últimos três meses tive 20 concertos por mês e, portanto, estou sempre a cumprir esse sonho.
As casas de Fado são sempre um refúgio? Como é regressar, por exemplo, às memórias da Academia das Bifanas [primeira casa de fados onde atuou, na Artilharia 1, em Lisboa] ou ao Clube de Fado? As casas de fado são, sem dúvida, o nosso porto seguro. Nós viajamos pelo mundo, somos embaixadores de Portugal lá fora, levamos a nossa bandeira através da nossa música, da nossa mensagem que nós passamos através da nossa tradição, da nossa cultura saudosista, sebastianista, intensa, afetiva. Mas vir às casas de fado é voltar à fonte. Às vezes é mais difícil cantar numa casa de fados para 30 pessoas, sem microfone e sem rede e simplesmente levantar e cantar, do que cantar para 15 mil pessoas, num concerto em que não temos tanta proximidade e não é tão intimista. Isso é mágico. Ir à casa de fados é sempre um momento mágico e cada noite é uma noite, é irrepetível.
O fado está na moda? Há cada vez mais novos talentos a aparecer… O fado chegou, com esta nova geração, aos jovens, temos muitos miúdos novos a interessarem-se pelo fado e novas guitarras portuguesas, o que é muito bom, mas daí a estar na moda… Não acho que esteja na moda, não acho mesmo. Gostava que estivesse muito mais na moda [risos]. Acho que, por exemplo, os espanhóis valorizam muito mais o flamenco do que os portugueses, da nova geração, valorizam o fado. Existem muitas pessoas que valorizam o fado, mas ainda oiço muitas pessoas em todos os concertos a dizer: «Não queria vir ao seu concerto, foi o meu marido que me trouxe, porque não gosto de fado, e vim e adorei, não era nada do que eu pensava». Acho que há um preconceito muito grande ligado ao fado que faz com que muitas pessoas nem sequer oiçam. As pessoas associam muito o fado à tristeza, ao queixume. Era um grito do povo quando surgiu, das mulheres que ficavam sem os seus maridos, que sofriam e que saíam à rua para cantarem as suas mágoas, mas o fado, naturalmente, foi-se adaptando aos novos tempos e, hoje em dia, já toda a gente se identifica mais com as letras. Os fadistas todos da nova geração que, ainda por cima, é uma geração muito rica porque somos todos muito diferentes, fazem com que muitos jovens se identifiquem. Mas o fado ainda não está na moda, acho que o fado podia estar mais na moda e deveria estar porque o fado é mesmo uma pérola do nosso país e nós, lá fora, vemos as pessoas a vibrar, a chorar… é gratificante, mesmo, ver a forma como as pessoas reagem ao fado nos outros países sem entenderem a nossa língua. É mesmo maravilhoso, é incrível.
Depois de quatro álbuns lançados [Cuca Roseta (2011), Raiz (2013), Riû (2015) e Luz (2017)] e de ter subidos aos palcos em mais de 40 países, quais são os principais objetivos profissionais no futuro? Os meus objetivos são continuar a cantar, continuar a levar a minha música por aí, pelos palcos. Gosto muito de cantar lá fora, gosto muito de levar não só a música, mas também a energia que se passa através da música – a energia de missão, de música medicina, amor, luz, paz de espírito. Gosto muito de ser embaixadora de Portugal, sou patriota. Adoro o nosso país, com todos os seus defeitos e qualidades, acho que somos muito especiais. Gostava só de continuar a cantar, mas se a minha missão deixar de ser essa e passar a ser outra… está tudo bem [risos]. Eu sou muito feliz com esta missão que me foi dada. É extremamente cansativo, mas acho que a minha personalidade foi feita também para isso.
Estudou Direito, mas acabou por licenciar-se em Psicologia. Aplica mais esses conhecimentos na vida profissional ou no dia-a-dia, sobretudo enquanto mãe? Acho que tudo o que nós aprendemos tem um sentido para a nossa vida, nada se deita fora. O saber não ocupa lugar, como costuma dizer o meu pai. O facto de ser licenciada em Psicologia, tenho também uma pós-graduação em Marketing, é mais informação, mais conhecimento e ajuda-me em muita coisa. Ajuda-me como mãe, sem dúvida alguma, porque a psicologia do desenvolvimento foi algo que sempre me interessou muito, ver os meus filhos crescer e ser uma curiosa com o seu crescimento e as várias fases, mas acho que a psicologia também se aplica muito ao fado e àqueles que nos ouvem, às pessoas que vêm ao nosso encontro para agradecer a nossa música e o que a música trouxe para as suas vidas. É muito bonito, é uma psicologia através do canto e, depois, obviamente, também através das palavras e através de receber aqueles que vêm partilhar as suas emoções.
Tem dois filhos. Continua a sentir que o seu maior medo é que um dia eles possam pensar que não foi uma mãe presente? Não tenho medo nenhum de que os meus filhos não me achem uma mãe presente porque eu acho que sou uma mãe muito mais presente do que uma mãe que trabalha das 8h às 18h. Embora eu tenha alguns períodos em que não estou – por quatro, cinco dias –, quando estou, sou eu que os vou levar à escola, sou eu que os trago e vou brincar. Estou ali só para eles e aquele tempo é só para eles, tenho muito mais tempo de qualidade. Sempre fui uma mãe galinha, serei sempre e sempre quis ser eu a ter o papel principal e consigo ter esse papel com os dois [filhos]. Sou mesmo uma mãe muito presente e também talvez por ter a ajuda de ser psicóloga, por compreender e apanhar os momentos mais frágeis de um ou do outro… Acho que os meus filhos são uns privilegiados por terem uma mãe que está no meio da música, de viverem no meio de instrumentos musicais, no meio de ensaios, no meio de músicos que frequentam a casa, ensaios com orquestras, inclusive de irem aos concertos todos e conhecerem o mundo desde muito pequeninos. São duas crianças com um mundo enorme que estão muito habituados a conviverem com todo o tipo de pessoas, de todas as idades, com respeito tanto pelos mais velhos como pelos mais novos, com respeito pelas diferenças culturais… É magnífico e acho que eles também são crianças muito felizes, mesmo muito felizes.
Também por isso, por saber que a sua condição profissional exigia passar tanto tempo fora, “desistiu” da ideia da família numerosa com que sempre sonhou, de “ultrapassar os seus pais”, e de ter 7 filhos? Isso sim, ou era mãe de sete filhos ou era cantora. Não dava para ter uma profissão e ser mãe de sete filhos porque, como disse, eu sou uma mãe galinha e gosto de estar presente para todos e só não tive mais porque acho que não teria tempo suficiente para estar presente em tudo o que queria estar. Há mães que são super práticas e que têm imensos filhos e aquilo roda tudo e tudo resulta, eu não sou essa mãe super prática. A minha irmã, por exemplo, tem cinco filhos e consegue dar banho aos cinco ao mesmo tempo. Eu não poderia ter sete filhos se trabalhasse, era impossível, se não enlouquecia, não dava. Fica para a próxima vida.
Quais são as ‘tradições’ que tinha com os seus pais e com os seus irmãos que tenta hoje replicar com os seus filhos? É difícil de escolher, temos muitas tradições familiares ligadas ao Natal, comemos o bacalhau, depois comemos o peru, que é uma receita de família, que é incrível e que eu já aprendi a fazer. Abrimos os presentes sempre no dia 25 de manhã, mantém-se assim. Outra das tradições é que faço sempre por estarmos todos à mesa juntos, acho que é muito importante. É o momento em que estamos todos juntos e partilhamos os momentos do dia. Temos muitas tradições familiares que mantemos, eu e as minhas irmãs.
No final do dia, “O Teu Fado é Ser Feliz” [livro lançado por Cuca Roseta no último mês de junho]?! O Teu Fado é Ser Feliz é um livro sobre yoga, meditação, técnicas de respiração, mantras e yantras, óleos essenciais, música, poesia. Tem uma app onde podemos ouvir tudo isto e ver vídeos a explicar as técnicas de respiração, tem as meditações guiadas e é um livro para quem se quer iniciar nestas lides espirituais. No fundo O Teu Fado é Ser Feliz porque todas estas ferramentas fazem com que eu seja uma pessoa muito mais feliz.