José Quitério, o respeitadíssimo crítico gastronómico, chamou-lhe “uma das cada vez mais raras Guardiãs do Fogo”. Jorge Sampaio nomeou-a Comendadora da Ordem do Mérito em 2004. Marcelo Rebelo de Sousa lembrou a “figura muito simpática e popular da nossa televisão, através do programa de culinária que apresentava e que, em vários aspetos, era inovador para a época”. Maria de Lourdes Modesto, grande defensora da cozinha portuguesa e referência absoluta da arte de comer em Portugal, morreu ontem aos 92 anos.
“Perdi uma grande amiga e, enquanto portuguesa, perdi uma referência, não só da gastronomia, mas também da nossa cultura”, refere ao i Fátima Moura, crítica e escritora na área da gastronomia. “Não só foi grande defensora da cozinha regional e tradicional, como também acabou por ser grande influenciadora nos movimentos da nova cozinha portuguesa. Na biblioteca dos chefs contemporâneos, há sempre um exemplar da Cozinha Tradicional Portuguesa”, complementa.
Antes de se tornar uma figura tutelar da cozinha portuguesa e mentora dos mais conceituados chefes, Maria de Lourdes Modesto foi uma icónica personalidade da televisão. Ainda no tempo do preto e branco, a sua postura pedagógica mas descomplexada, os vestidos estampados e a maquilhagem a condizer foram uma lufada de ar fresco que entrou pelas casas dos portugueses.
Da sala de aula para o ecrã A sua chegada à RTP – bem como ao mundo da gastronomia – foi uma espécie de feliz acaso. Nascida em Beja no dia 1 de junho de 1930, Maria de Lourdes Modesto tinha a ambição de ir para Lisboa respirar outros ares e ver outros horizontes. Foi na capital, aos 17 anos, que entrou para o curso de Economia Doméstica, que incluía “disciplinas de trabalhos manuais, lavores e culinária”, como contou em entrevista ao i em outubro de 2017. “Havia quem soubesse muito mais. As alunas do Norte sabiam muito de cozinha e davam muita importância à cozinha das suas terras. A mim, a cozinha alentejana passou-me completamente ao lado, apesar de a ter comido toda a vida, que a minha mãe não sabia fazer outra. Para mim era normal comer migas, açorda, mas não pensava sobre isso”, recordou.
Tornou-se professora de trabalhos manuais no Liceu Francês, onde em 1958 foi descoberta pela RTP, que ali foi fazer uma reportagem a propósito de uma representação de uma peça de Molière, o grande dramaturgo francês do século XVII. Modesto tinha “um papel importante” e a sua presença no palco não passou despercebida. “Em terra de cegos quem tem um olho é rei e como era a única portuguesa no palco, a RTP marcou-me”, disse ao i.
Convidada a apresentar um programa cultural na televisão, pensou fazer algo dirigido às mulheres. Até por causa da sua formação, a culinária foi uma escolha óbvia. Segundo o jornal Público, “no primeiro programa mostrou como se comia uma alcachofra”. A estreia perante as câmaras ficou marcada, como lembraria na entrevista ao i, por uma pequena peripécia: “Tive uma branca e acabei por lidar com a situação como se estivesse numa aula. O Mário Castrim, o crítico da altura, escreveu no Diário de Lisboa: ‘Até que enfim apareceu uma pessoa que sabe falar em televisão’. Eu não sabia como falar em televisão, simplesmente falei como estava habituada a falar nas aulas”. Oito anos de experiência no ensino permitiram-lhe improvisar e sair airosamente da situação.
Milhares de receitas online Outra faceta importante do seu percurso diz respeito aos livros. Em especial Cozinha Tradicional Portuguesa (ed. Verbo), que se tornou uma espécie de ‘bíblia’ da gastronomia nacional, um repositório que reunia e fixava as receitas canónicas dos pratos essenciais da nossa cozinha. “Aconteceu por exigência dos senhores telespetadores”, explicou ao i Maria de Lourdes Modesto. “Criticavam muito, então os nortenhos eram os mais ferozes. Lembro-me de fazer um ensopado de borrego que toda a vida vi a minha mãe fazer e receber para aí umas 50 cartas a dar dicas sobre a receita. Pensei, como é que vou conciliar isto? Decidi promover, através da televisão, um concurso para a recolha de receitas”. Recebeu milhares de receitas, que se encontram desde 2018 disponíveis online no site da Associação de Cozinheiros de Portugal (https://www.acpp.pt/maria-de-lourdes-modesto). Destes milhares de receitas, selecionou para o seu livro cerca de 800, agrupadas por região. “Comparava as várias versões e depois contactava as pessoas diretamente. A primeira página tem o nome das pessoas que me ajudaram, quer por telefone, carta ou pessoalmente. É que as pessoas, por não serem profissionais, diziam coisas como ‘farinha até tender’, ‘ovos até ficar amarelo’, tive que traduzir tudo isso em quantidades”. Cozinha Tradicional Portuguesa tornou-se o livro de culinária mais vendido de sempre no país.
O prazer de fazer doces Versada nas gastronomias internacionais, em especial na francesa -fez formações no estrangeiro -, apontava à comida portuguesa três pecados capitais: “Muito sal, muito açúcar e muita gordura”. Além disso, apontava: “Ainda não metemos na nossa cabeça que não podemos comer tanto como comíamos no passado. Antigamente limpávamos a casa de joelhos e esfregão, agora há os aspiradores e alguns até andam sozinhos. A vida hoje exige menos calorias. Recordo-me de fazer na televisão um bife à café com 250 gramas, hoje fico contente com um de 125 gramas e já é uma grande refeição”.
Na sua vida teve, como veio mais tarde a revelar ao i, dois encontros decisivos. “O primeiro com o Professor Fernando Pádua, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, que me alertou para a ligação entre a alimentação e a saúde, e mais tarde o Miguel Esteves Cardoso, que me pôs a escrever”. Manteve uma coluna n’O Independente e ao longo dos anos assinou variadíssimos livros, de que se destacam a Grande Enciclopédia da Cozinha, As Receitas Escolhidas, Doze Meses de Cozinha e Queijos Portugueses (com Manuela Barbosa). O mais recente é Coisas que Eu Sei, publicado em 2021 pela Oficina do Livro.
Além da cozinha, adorava o tricô. “Fiz tanto que estraguei o pulso”, dizia ao i, aos 87 anos. “Por isso agora aquilo que me dá verdadeiro prazer é ir para a cozinha fazer doces de fruta: alperces, morangos, ameixa, mirtilo, tomate, figos”. Em casa, sozinha, jantava sempre sopa, um queijinho fresco e uma peça de fruta.
Usava pacemaker e nestes dois últimos anos encontrava-se já com a saúde muito debilitada, o que a impedia de participar em eventos públicos. Estava hospitalizada há vários dias.