Por Miguel Faria Ferreira
É indiferente que tenham arrancado os placares que faziam a apologia do Hezbollah na estrada que liga o Aeroporto Rafic Hariri à cidade de Beirute. Para quem vem de longe e chega de noite, que é o que acontece aos voos que chegam da Europa, eles não se veriam. Nada se vê na escuridão imensa que denuncia que estamos numa terra espoliada, sucessivamente traída pelos seus governantes – em boas palavras, os desistentes da governação, os desgovernadores do Líbano, que instalaram uma anarquia de candeeiros a óleo.
Muito se escreve sobre a traição e sobre povos traídos, mas pouco se fala sobre os libaneses, esquecidos numa pequena costa oriental e entalados entre sionistas e extremistas islâmicos (ou “la résistance”). Enganados pela canção da “Paris do Oriente”, eles sofreram às mãos de quem mandou no Mandato (não deixaram nada aos mandados, excepto as saudades de serem uma falsa Saint-Tropez), dos israelitas (é óbvio, mas constantemente recordado pelos buracos de balas nas paredes e pelos aviões de guerra que todas as noites atemorizam o Líbano), dos sauditas (perguntem a Hariri, o filho, se já não se lembrarem), e das próprias elites libanesas (todos os que mandam neste pedaço de costa são do tempo do Mandato).
A traição está aqui, espreita da sombra de cada prédio (cravados de tiros), de cada praça (cheias de símbolos pré-revolucionários, porque a revolução de 2019 ficou por fazer), de cada resto. Beirute é um resto da entrada da Grande Síria: assim a quiseram, assim se acreditou, e assim foi posta a soro, que a Grande Síria acabou, e a pequena está a trinta subornos de distância. A destruição e o abandono dos palacetes, das casas modernas, das lojas e dos restaurantes, por entre buzinadelas na Corniche, animação descontrolada e uma ou outra luz de um crente que não se apagou, são de um simbolismo afectante: Beirute ou é um fantasma do que foi ou daquilo que não chegou a ser (os traidores sabem disso, e para eles Beirute é um negócio).
As pessoas sabem, também, ou sabem-no algumas, e mantêm uma dignidade desmotivada, já que têm de governar a cidade desgovernada (se não sabiam ou não se lembravam, já terão percebido que não existe Governo e que esta gente tem de se governar) criando sistemas de moeda, de trabalho e de socialização próprios, que lhes permita que saiam de um novo estado-natureza (o dos desgovernados: não há muita gente no mundo que partilhe esta condição). Substituam o Parlamento, substituam o Conselho dos Anciãos, que juntos vos sangram uma cidade sangrada, nascida das cinzas que Fairuz cantou (e perguntem aos outros o que fariam eles se alguém fizesse de Paris um campo de batalha). Arrancaram os cartazes, dizia, mas os libaneses não deixaram de servir de arma de arremesso entre quem os quer roubar (quão rico seria o Líbano intocado) e quem quer dizimar a porta de entrada do Leste (não é esse Leste). O Leste pode radicalizar os árabes, e crescem-lhes maiores zebibahs, mais pelos de barba patriarcal – um dia destes ainda estudam, aumentam o arsenal, viram os olhos para o mar e tomam Jerusalém.
Fora do Museu da Resistência em Baalbek (um museu que homenageia o Hezbollah e seus aliados, entre os quais os ayatollahs do Irão mas, também, Qasem Soleimani, líder da Força Quds assassinado em Bagdade, e o Grande Ayatollah Ali Sistani, o homem mais influente do Iraque) diria que não querem nada disso, os homens e as mulheres do Líbano (infelizmente, também não parecem muito tocados com a desgovernação). Querem (antes) voltar lá de onde trabalham, apanhar um avião para passarem as férias em casa, soltar lágrimas pelo Aeroporto de Beirute (só falta que passem a esfregona no chão molhado), apresentando cedo aos filhos bebés, “bebé (habibi), este é o som do terror, e caça, este é o meu filho”, o ruído de que não se fala (o horror). Os que já cá estão querem (antes) receber estes.
A cidade que foi sempre uma bomba Ninguém repara (já ninguém repara, nunca ninguém reparou?) que a Avenida que recebe os recém-chegados ao Líbano se chama “Imam Khomeini” (quem?). Esse nome não lhes inspira temor ou medo, e quem sabe já nem se recordem de como era o rosto do Ayatollah (há quem diga que tinha ar de bonzinho), que comandou uma revolução a partir dos arredores de Paris. Associam apenas essas duas palavras, “Imam”, “Khomeini”, à sensação de que faltam quinze… dez… cinco minutos para reverem as suas famílias, com quem cresceram em lugares talhados para servirem de montanha verdejante à França (mais ou menos felizes a saltitar nos escombros de uma guerra civil).
“Os soldados empenham-se na guerra enquanto os povos estão em paz”. Assenta-lhe bem, a Beirute, ou não?, nascida das cinzas de conflitos horrendos, paralisada e manietada por jogos de interesses que esvaziam a importância do sangue dos mártires. Este ditado foi escrito em honra de Beirute, embora corresse por boca, mais ou menos nestes termos, no tempo de Saladino. É mau que lhe assente, porque passaram muitos anos, e o homem civilizou-se, e a sociedade fechou um contrato (mas e se já ninguém acreditar num contrato, ele não deixa de o ser e não se esfuma, criando novas cinzas para que quem quiser, se quiser, volte a erguer uma cidade?).
A paz é uma mentira, ontem como hoje, e não são diferentes os mentirosos, os que empunham a espada e se vergam ao céu, à cruz ou ao crescente. Mortos, os mentirosos são todos iguais, por mais querubins com que adornem as campas, ou por mais que insistam em fazê-las austeras, que é um símbolo de poder. Pouco se sabe desses mortos, mas dos vivos sim, sabe-se, deixam de acreditar e de querer, perdem a vontade e rasgam contratos, entregam o poder nas mãos de quem pagar mais – de quem lhes der uma cama no hospital ou duas horas de luz, que valem mais do que estampar um cartaz, e é por isso que os cartazes podem ser arrancados e foram, e não recebem os emigrantes e os turistas. Pois bem, e se a cidade sempre foi uma bomba, porque não pode continuar a ser uma bomba, armadilhada, acumulando tensão, prometendo (tic-tac, tic-tac) forçar um outro recomeço? Quando me dizem que Sodoma era mais para lá, eu respondo que com certeza era mais para cá, e já vejo as estátuas.