A maioria dos hospitais não poderá pagar mais aos médicos por horas extraordinárias, com o regime excecional criado pelo Governo a poder aumentar o descontentamento nas equipas. É a preocupação nas administrações dos hospitais, verbalizada pelo presidente do Hospital de São João, que num artigo de opinião publicado no Jornal de Notícias classificou o diploma de “inaplicável”.
Em causa a norma-travão incluída no Decreto-Lei n.º 50-A/2022, publicado esta semana em Diário da República depois da promulgação de Belém – que já referia a existência de um “plafond”, o que só ficou claro com a publicação do diploma.
“No período de vigência do presente decreto-lei, os custos associados ao trabalho suplementar e à aquisição de serviços médicos não podem exceder, em cada serviço ou estabelecimento de saúde, os montantes pagos a título de trabalho suplementar e de prestação de serviços médicos no último semestre de 2019, corrigidos dos encargos decorrentes das atualizações salariais anuais”, refere o diploma, que veio escalonar o pagamento das horas extra médicas nas urgências em função do volume de trabalho suplementar: a partir da 50ª hora, recebem 50 euros. A partir da 101ª, 60 euros e a partir da 151ª hora (o máximo que estão obrigados a fazer por lei), 70 euros.
“Ou seja, mantendo o total da despesa com o plafond de há 3 anos, se o número de horas prestadas no segundo semestre de 2022 for, pelo menos, semelhante ao de 2019 (porventura até será superior, com a necessidade de aumentar a produção para dar resposta às listas de espera), facilmente se percebe que não será possível aumentar o valor-hora”, escreveu Fernando Araújo, antigo secretário de Estado.
“De notar que os valores pagos a médicos em prestação de serviço estão alinhados, em muitas instituições, com o valor da hora suplementar pago a médicos especialistas e que corresponde a cerca de metade do que este diploma define. Nesse sentido, para a maioria das instituições, este decreto-lei, se aplicado, iria aumentar de forma justa, mas significativa, os custos desta dimensão, o que o próprio diploma em si proíbe”, continuou, expondo a incompreensão.
“Infelizmente, o diploma da valorização das horas extras dos médicos em serviço de urgência, vou dizê-lo de forma lenta para se perceber, é i-na-pli-cá-vel.”
Há hospitais com o dobro das horas extra O i analisou o recurso a horas extra na Saúde desde o início do ano a partir dos dados publicados no Portal da Transparência do SNS e, mantendo-se a atual tendência, será difícil aos hospitais terem folga para aumentar a despesa, a menos que passem a precisar de muito menos horas extra daqui para a frente (se reduzirem por exemplo a prestação de serviço, precisarão de mais). O que num período de outono/inverno e ano de intenção de recuperação de atividade é descrito ao i como uma equação impossível.
Apesar de estarem a ser feitas menos horas extra do que em 2021, quando bateram o recorde, no primeiro semestre deste ano o recurso a trabalho extraordinário manteve-se muito acima de 2019, definido com o ano guia para a despesa.
Nos primeiros seis meses do ano, mostram os dados publicados já a incluir junho, já foram feitas quase 10 milhões de horas extra no SNS, quando no primeiro semestre de 2019 tinham sido quase 7 milhões no mesmo período, verificando-se assim um recurso a horas extra 42% superior à pandemia. O envelhecimento dos profissionais que leva a mais casos em que estão dispensados da urgência, onde se faz a maioria do trabalho extraordinário; a feminização da profissão com mais baixas por exemplo de maternidade, bem como haver quadros mais ou menos desfalcados são razões apontadas ao i por fontes hospitalares para as diferenças entre hospitais.
O balanço de horas extras inclui todas as instituições sob alçada do Ministério da Saúde, mas olhando apenas para os hospitais, que o i analisou um a um, há casos em que o recurso a horas extra praticamente duplicou face ao primeiro semestre de 2019: é o caso da Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano (+99% horas extra nos primeiros seis meses de 2022 face ao primeiro semestre de 2019) ou Centro Hospitalar do Oeste (+84). Há nove hospitais onde há um aumento superior a 50% no recurso a horas extras face ao primeiro semestre de 2019.
E só dois dois hospitais terminaram junho com uma ligeira diminuição no recurso a trabalho extraordinário: o Centro Hospitalar Universitário de São João e o Hospital Magalhães Lemos. Fonte do São João explica ao i que a tendência não chega para a acomodar aumentos sem aumentar despesa. No primeiro semestre de 2022, o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, um dos maiores do país, registou o maior recurso a trabalho extraordinário: 792 mil horas, um aumento de 54% face a 2019. Segue-se o Centro Hospitalar Lisboa Norte, com 643 mil horas extraordinárias, um aumento de 13% face a 2019.
“A população pensa que haverá aumentos, os profissionais ficam dececionados e desmotivados e acima de tudo não se resolve o problema dos utentes”, resume ao i fonte hospitalar. Em alguns casos, apurou o i, já há médicos a comunicar por escrito que não estão disponíveis para fazer mais de 150 horas.
O i tentou perceber junto do Ministério da Saúde se atendendo às questões suscitadas sobre a aplicabilidade do diploma haverá alguma alteração, tendo o gabinete de Marta Temido remetido para as declarações de ontem do Secretário de Estado António Lacerda Sales, que garantiu que ninguém ficará sem resposta no SNS em agosto e que o Governo está a trabalhar com determinação na resposta aos novos desafios “com determinação, mas também com investimento e com reformas estruturais” .