Filho e neto de médicos, Domingos Machado nasceu em Lisboa há 70 anos. Fez toda a carreira no Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, de onde se reformou em 2021. Esta semana, a notícia de que foi o primeiro em Portugal a doar um rim a um desconhecido foi uma aragem na turbulência que tem atravessado a Saúde. Em conversa com o i, fala da transplantação a que dedicou toda a carreira, de como os rins são um órgão fascinante e das lições sobre a natureza humana que lhe deram mais de 40 anos como nefrologista, a preparar doentes e dadores para transplantes renais. Não acredita que no futuro venham a dominar doações anónimas, mas espera que o seu caso ajude a passar a mensagem de que é possível doar um rim em vida, a um familiar, a um amigo ou até a alguém que não se conhece.
Já andava a ponderar esta decisão há muito tempo?
Há dois anos, três anos. Na pandemia a nossa cabeça esteve noutros sítios. Cheguei a estar mais de 100 dias consecutivos no hospital, quando as equipas tinham turnos desencontrados. Não dormia lá, mas enquanto diretor de serviço achei que devia ir todos os dias, sábados e domingos. Ainda a trabalhar antes de me reformar em 2021 fiz os primeiros exames para perceber se poderia ser candidato.
Mas tem ideia do momento em que a ideia lhe veio pela primeira vez à cabeça?
Vem do tempo em que fui presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação. Nessa altura lutei para que a lei da transplantação fosse modificada. A sociedade fez uma petição que entregámos na AR e que levou à lei atual, que trouxe muito mais hipóteses. Antigamente só podia doar órgãos em vida quem fosse familiar no sentido sanguíneo do termo e já não havia razões para isso. A lei foi alterada em 1993. Na altura, em discussões internas sobretudo no meio médico, havia algumas pessoas que achavam que não valia a pena ficar em aberto a possibilidade de alguém doar um órgão a alguém que não conhece. Isto tem vários nomes como doação não dirigida ou anónima, eu pessoalmente prefiro a designação ‘não dirigida’ e foi algo que sempre defendi e que agora fiz.
Há 20 anos isso já se fazia lá fora?
Sim, são sempre casos pontuais e sempre defendi que deve ser sempre muito escrutinado porque já foram detetadas situações que parecem doações altruístas até em contexto familiar mas que, mais tarde, se vem a perceber que houve pressões e coisas eticamente não aceitáveis. A lei que temos é ponderada, com muitos filtros até se ser admitido como dador. Neste tipo de doação dirigida, e também inspirei isso, o candidato a dador, como eu fui até há uns tempos, tem de ser avaliado por duas equipas independentes, que não são só médicos. São médicos, enfermeiros, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais.
E isso é possível desde quando?
Não sou jurista, mas acho que não ficou proibido em 1993. Entretanto a Coordenação Nacional de Transplantação, a dr.ª Margarida Ivo, achou que era melhor alguns aspetos ficarem mais definidos e publicou-se um diploma que clarificou os detalhes. Havia uma questão que não estava clarificada, que é, quando aparece um caso assim, a quem se aplica o rim. Também aí vingou o que eu defendia: como existe um programa de doação cruzada, estas doações seriam destinadas a esses doentes.
Doentes que têm alguém que lhes quer dar um rim mas que não é compatível com eles.
Sim. Eu queria dar-lhe um rim a si, mas somos incompatíveis. Aqui ao lado há outra pessoa a querer dar um rim a alguém, mas são incompatíveis. Vai-se estudar se o outro dador lhe pode dar a si e eu vou dar ao outro doente e as operações são feitas ao mesmo tempo. Isto já se faz há alguns anos e já cruzamos dadores com Espanha e com Itália. O que acontece é que às vezes há vários pares inscritos mas estão bloqueados porque falta um dador compatível. Quando aparece um dador anónimo, isso às vezes cria uma espécie de efeito dominó em que de repente se conseguem fazer vários transplantes.
Foi o que aconteceu no seu caso, em que foram feitos três transplantes.
Sei que sim e fico muito contente. Não só houve alguém que recebeu o meu rim, que não sei quem é nem quero saber, como foi possível avançar com mais dois transplantes neste programa.
A regra, fora das doações dirigidas, é nunca se conhecer a identidade dos dadores. Sendo médico e conhecendo as equipas, teve de pedir ainda mais segredo?
Isso faz-se sempre, não é bom para ninguém saber. É também por esse motivo que não falo da data. Fico feliz de ter ajudado a desbloquear isso e que todas as pessoas, como já foi tornado público, estejam bem.
A teoria estava farto de saber. Tem ideia de quantos candidatos a transplantação de rim preparou ao longo de mais de 40 anos de carreira?
Com certeza centenas. É um processo que tem diferentes etapas. Há dadores que avançam, outros que desistem e é natural que assim seja. Há também pessoas que queriam doar um rim a alguém que conhecem mas depois, como isto não está muito divulgado, têm alguma reticência em inscrever-se no programa de doação cruzada. Faz-lhes alguma impressão que o seu rim vá para alguém que não conhecem.
Na prática, viver este processo teve alguma coisa de diferente?
Não, e a partir de certa altura comportei-me como se fosse uma pessoa de fora do meio.
Antes tinha feito os exames para perceber se podia ser dador.
Sim, isto antes de iniciar o processo. Dos muitos casos que acompanhei, temos por exemplo situações em que as pessoas estão bem, são saudáveis, mas depois têm um rim que funciona a 70% e o outro a 30%. Isto para a pessoa não tem nenhum problema, mas não vai dar o rim de 30% porque é insuficiente para quem precisa e não vai ficar com esse. Portanto há situações destas, de assimetria renal, que são um fator de exclusão de dadores. Antes de avançar queria perceber se seria o meu caso e este é um exame que não se costuma fazer por rotina, não há vantagem a não ser em casos específicos. Fiz esse exame e também o estudo da anatomia do rim, que normalmente tem uma artéria e uma veia, mas pode haver outras anatomias que tornem mais difícil a operação. Não era o meu caso, tive o privilégio de ter tido função renal muito simétrica e também os rins serem bons do ponto de vista anatómico, por isso avancei.
E faz-se por isso, por ter rins saudáveis?
Toda a vida bebi água, gosto bastante de líquidos mas é ter tido a sorte e o privilégio de, até esta altura da vida, não ter tido uma doença minimamente relevante. Muitas pessoas da minha idade têm hipertensão, por exemplo. Se não for ligeira, pode ser contraindicação.
Sendo um procedimento médico, sentiu em algum momento o lado mais emocional da dádiva?
Sou emocional mas sou muito controlado. As fases mais emocionais reservei-as para mim e avancei sempre de uma forma racional, mantendo-me crítico do que me estavam a fazer e a dizer.
Quer dizer que foi um doente chato?
Não por isso, mas no sentido de observar e fico muito contente que as duas equipas que me estudaram, a equipa do Hospital de Santo António, onde fiz o transplante, e a equipa do Hospital de Santa Maria que também me estudou, mostraram um elevadíssimo grau de eficácia, excelência e de cuidado, não só em termos clínicos, bem como da coordenação. Desde logo na prestação de informação, que foi o que procurei fazer ao longo da minha vida clínica. É muito importante a comunicação com os candidatos a dadores.
Que preocupações tinha?
Sempre preferi chamar mais a atenção para os eventuais problemas secundários. Às vezes era criticado por parecer que estava a afastar as pessoas da doação. O que fazia era transmitir informação, porque às vezes os candidatos chegam num estado de entusiasmo e numa euforia em que querem tanto dar um órgão que parece que nem nos estão a ouvir. Geralmente no hospital era eu que dava esse primeiro bloco de informação, mas o processo envolve enfermeiros, assistentes sociais, com reuniões de equipa e só quando todos estão em sintonia é que se avança. E, além disto, com a mudança de lei de que falávamos, passou a existir uma entidade independente, que se chama a EVA – Entidade de Verificação da Admissibilidade da Colheita para Transplante. Verifica a admissibilidade dos dadores. Quando o processo de avaliação no hospital está concluído, são eles que dão o ámen final ou têm o poder de veto. Normalmente têm precisamente estas duas preocupações: se a pessoa está completamente informada e se não há pressões, se está de livre vontade.
Falava há pouco dos requisitos anatómicos. Que percentagem da população poderia ser dadora?
Por simetria e questões anatómicas penso que se excluiria uns 20%. O que muitas vezes depois impede é a coexistência de outras doenças: hipertensão, obesidade, diabetes. Mas as pessoas saudáveis, maioritariamente, poderiam ser.
E imagina que um dia este gesto que teve – “extraordinário”, como me dizia esta semana um médico desta área – possa ser mais comum?
Não sei, depende também da ideia que cada um tem, de valores gerais. Não me parece que seja algo de esperar que aconteça muitas vezes mas pode acontecer e por isso é bom que a lei o permita e que o processo esteja todo definido. Eu ter agora permitido que o caso fosse divulgado, por solicitação da comissão nacional de transplantação, foi sobretudo para uma divulgação geral de que existe a doação em vida e a doação cruzada, para que as pessoas que estão a pensar em dar um rim a uma pessoa da família, do seu círculo de amigos ou relações, se sintam mais confortáveis de que há a possibilidade de serem avaliadas, há protocolos muito bem definidos e trabalha-se com elevadíssimo grau de segurança.
Houve 451 transplantes de rim em Portugal no ano passado, mas os transplantes de dador vivo e doação cruzada são uma minoria. No global houve 36 dadores vivos, quando chegaram a ser 78 antes da pandemia.
Sim, são poucos, desde há muitos anos que eu e outras pessoas nos batemos por isso e a Sociedade Portuguesa de Transplantação chegou a ter uma campanha que dizia “Dar um rim faz bem ao coração”. O Estado e o Governo estão obrigados a fazer campanhas, embora nunca tenha dado por nenhuma, no sentido de alargar a informação. E podemos perceber porque é que são necessárias. Provavelmente se eu estivesse numa situação de insuficiência renal a fazer diálise nunca pediria a alguém da minha família ou amigos que o fizessem, mas se calhar aceitaria se houvesse essa iniciativa. Uma coisa é uma pessoa pedir dinheiro emprestado ou o carro emprestado, outra é uma coisa destas. Não estou nessa situação e espero não estar, mas julgo que não me sentiria à vontade. Mas se houvesse essa iniciativa por parte de um familiar, talvez pensasse e aceitasse. E isso só acontece se houver um grande conhecimento na população de que isto é possível.
E a maioria das pessoas não sabe?
Não sabem. E tenho insistido que mesmo nos centros de diálise é preciso reforçar a informação. Lá os doentes contactam com médicos e enfermeiros e há muitos profissionais que, mesmo trabalhando nesta área, não estão suficientemente atualizados. Às vezes há um caso, como acontece noutras áreas, em que um transplantado recebeu um rim e as coisas não correram bem e isso fica mais na memória do que os casos que correram bem. As pessoas esquecem-se até que esses doentes existiram. Por isso estas campanhas nunca estão terminadas e ficarei contente se esta minha decisão puder pelo menos lembrar às pessoas que há protocolos e instituições várias a fazê-lo.
Já está a ter esse feedback?
Sim. Neste momento já não estou a trabalhar no campo mas noutro dia o diretor do centro de transplantação de Coimbra dizia que tinha recebido uns telefonemas e aí os meios de comunicação podem ter um enorme papel. Não é fazer propaganda como se faz a um detergente ou a uma marca de carros, mas abrir os olhos para esta possibilidade. Sendo certo que uma pessoa ser estudada não obriga a dar, até ao último momento pode desistir. Há casos em que os candidatos desistem quase em cima da hora e é algo que aceitamos sem qualquer pressão.
Quantos doentes com insuficiência renal podiam beneficiar de um transplante?
Há mais de 10 ou 12 mil pessoas em diálise em Portugal. Muitas têm idades avançadas e outras comorbilidades em que o transplante seria prejudicial, mas talvez um quarto sejam candidatos bons. E por muito bem que a pessoa esteja em diálise nunca está muito bem porque tem de dedicar um número de horas ao tratamento, tipicamente sessões de quatro horas mais a deslocação. A qualidade da diálise e o conforto melhorou imenso mas ainda é um grande peso. A transplantação dá o salto qualitativo na generalidade dos casos. Claro que há casos que correm mal. E isto tudo tem de ficar claro ao longo do processo de avaliação, porque às vezes as pessoas pensam que vão ficar como novas e é preciso que sigam medicação para vida e sejam observados por rotina com bastante frequência nos primeiros tempos e mais espaçadamente depois. De vez em quando há um doente que nos desaparece, que não contacta e passado algum tempo vimos a saber quase sempre que perdeu o rim ou porque foi viver para um sítio onde deixou de fazer os medicamentos ou deixou de ser seguido. Não podemos mandar nas pessoas mas, para aceitarmos ser transplantados, é preciso ter a noção de que implica um compromisso e que as orientações são dadas não por teimosia das equipas mas porque é necessário.
Quando acordou, o que é que sentiu?
Como acontece muitas vezes nas anestesias, não me lembro de nada. Sei que estive numa sala de recobro, lembro-me de regressar ao quarto.
E sente a diferença? Quanto pesa um rim?
Cerca de 150 gramas, não se sente. Foi o rim direito. Fiz a operação por cirurgia laparoscópica, com quatro pequenos orifícios na barriga e depois fizeram uma incisão maior para tirar o rim, mais na virilha. Sobretudo nos EUA as dadoras são muito preocupadas com os aspetos estéticos e, se isso tranquilizar alguém, a minha cicatriz quase não se vê.
Fez isto aos 70 anos. Teria feito aos 50?
Menos, talvez. Aos 50 sabe-se menos do futuro. Na altura tinha filhos muito novos e estava muito envolvido na profissão mas sobretudo porque há 20 anos a transplantação não era feita com a mesma segurança.
Mas imagina que será algo que pode passar pela cabeça de pessoas mais velhas mais do que pelos mais novos?
O maior centro mundial continua a ser o Hospital do Centro do Rim de São Paulo, com o qual trabalhei muito, e cada vez mais a tendência é não aceitar dadores muito novos. Sempre pus muito travão à doação de pessoas muito novas e é bom que quem dá tenha já uma experiência de vida e maturidade. Naturalmente há pessoas de 19 anos muito maduras, mas temos noção de que nem sempre é assim.
Achou que estava na fase da vida em que podia fazê-lo.
Sim e que, se agora podia, talvez daqui a uns anos não o pudesse fazer.
Haveria um limite de idade?
Não há um limite, mas se agora estivesse no ativo e me aparecesse uma pessoa com 90 anos, a minha primeira ideia seria que não. Já houve casos de dadores com mais de 80 anos, também cá, mas é muito raro porque com essa idade são raras as pessoas que não têm outras mazelas.
A primeira doação de um rim em vida aconteceu em Portugal em 1969, uma mulher que doou o rim a um irmão, operados pela equipa do professor Linhares Furtado em Coimbra no mesmo domingo em que o homem foi à Lua. Era um jovem estudante de Medicina. Tem memórias disso ou mais da ida à Lua?
Da ida à Lua, seguramente. O transplante deve ter vindo lá nas páginas do meio dos jornais e não teve essa repercussão pública, também porque o professor Linhares Furtado, sendo um dos cirurgiões mais extraordinários da história da medicina portuguesa, é também extraordinário pela sua modéstia e pela personalidade reservada. É tudo menos um cirurgião-espetáculo.
Inspirou-o esse pioneirismo a escolha de nefrologia?
Nessa escolha propriamente não. Acabei o curso em 1975. Na altura sabia apenas que queria uma especialidade não cirúrgica. Apareceu o projeto do Hospital de Santa Cruz e um nefrologista com quem eu trabalhava no Hospital dos Capuchos, o professor Jacinto Simões, convidou-me. Pareceu uma oportunidade muito interessante e fui.
Mas porquê os rins?
Porque seria a vocação do hospital, a par do coração. O edifício do Hospital de Santa Cruz foi feito nos anos 70 por um grupo de 50 médicos, uma iniciativa integralmente privada. Compraram o terreno e fizeram o hospital porque viviam todos um bocadinho desconfortáveis por estarem a fazer medicina nos hospitais privados, que estavam muito mais focados no exterior e tinham falta de condições técnicas para lá da questão hoteleira, que é a que chama mais a atenção dos doentes mas que talvez não seja a mais importante. Então resolveram fazer do seu bolso essa instituição que abriu em 1972. As instalações do bloco operatório já tiveram algumas obras, mas ainda hoje são de qualidade muito alta. Com o 25 de Abril, o hospital acabou por ser fechado por razões políticas, considerou-se que era uma clínica de elite. Esteve assim uns anos e em 1979 um secretário de Estado da Saúde, o dr. Mário Marques, percebeu duas coisas importantes. Existia já uma lei, como há hoje, que quando uma pessoa tem uma doença que não pode ser tratada em Portugal, pode deslocar-se ao estrangeiro e isso é pago pelo Estado. Recuando a fins dos anos 70, Mário Marques percebe que havia duas rubricas de despesa no orçamento do Estado significativas: uma era por causa de doentes renais que iam fazer hemodiálise fora do país – em Espanha e noutros países – e a segunda, doentes a precisar de cirurgia cardíaca, que também não tinham resposta cá. Tinha um hospital fechado com ótimas condições, resolveu fazer obras e o Hospital de Santa Cruz abre em 1980 já público e vocacionado para a transplantação renal e de coração. E desde o dia em que o Hospital de Santa Cruz abriu, 23 de abril de 1980, nunca mais nenhum doente teve de recorrer ao estrangeiro, o que foi muito bom para os doentes e para o erário público. O dinheiro que se gastou ficou logo nos primeiros meses amortizado.
Antes tinha ido fazer o Serviço Médico à Periferia (SMP) para Moura. Como foi para o menino de Lisboa, filho e neto de médicos, ir fazer medicina para o Alentejo profundo?
Foi uma experiência marcante. Nunca tinha ido a Moura. Tinha aspetos negativos porque estava afastado da família e tinha duas crianças pequenas. Era-se muito mal pago, não havia nenhum subsídio e tínhamos de pagar do nosso bolso o hotel barato onde nos instalámos e depois as viagens ao fim de semana para casa, muitas horas de carro. Fazíamos muitas horas extraordinárias que nos prometeram que seriam pagas e nunca foram. Ao mesmo tempo era muito empolgante. Estávamos em 1977 e vi nessa altura várias pessoas que nunca tinham ido ao médico. Algumas iam ao médico um bocadinho como as pessoas vão ao Zoo, passe a comparação, para ver pela primeira vez uma girafa: não para se queixarem mas porque queriam ver um médico. Pela primeira vez tinham acesso e nesse aspeto o SMP foi muito importante em dar esse acesso. Havia pessoas que nunca tinham medido a tensão arterial na vida e o Alentejo é e continua a ser uma zona do país onde há tensão alta. Nós não resolvemos o problema, mas com certeza contribuímos para que houvesse alguma resposta.
Deu-lhe a noção da importância de existir um Serviço Nacional de Saúde?
Qualquer pessoa aceita que um bem tão essencial seja acessível a todas as pessoas. Isto não é uma posição política de esquerda ou direita, é uma posição moral e para mim foi sempre assim. Podemos aceitar que seja diferente uma pessoa ter acesso a corrigir dentição ou fazer cirurgia plástica, agora cuidados básicos de saúde, prevenção e tratamento devem ser para todos e felizmente houve um desenvolvimento. Vemos que continua a haver uma crise de falta de médicos de família e é das questões que tem de ser resolvida porque, a médio e longo prazo, a saúde de uma população está muito dependente de haver uma cultura de maior prevenção e contrariar o excesso de muita farmácia e muitos exames que levam a maior despesa e não significam necessariamente mais saúde.
E isso agravou-se.
Sim, hoje há faixas da população que ficam muito desanimadas quando o médico não pede muitos exames. E muitas vezes para os médicos é difícil dizer que não: uma coisa é eu achar que aquela pessoa que tenho à frente não precisa nada de fazer outra vez uma radiografia, uma ressonância ou um TAC pela minha experiência; traduzir isso em argumentos racionais é mais complicado. Começa a haver em Portugal medicina defensiva porque ninguém está para suportar as consequências, porque depois há um caso em que o diagnóstico não foi correto e tudo isso tem uma repercussão muito ampliada pela comunicação social, às vezes justamente, outras injustamente, que destrói carreiras e instituições. É sempre algo complexo que exige algum esforço de compreensão e no meu entender alguns trajetos da Medicina têm sido maus como este de se fazerem cada vez mais exames, às vezes também por interesses gananciosos de pessoas e instituições que ganham muito dinheiro na saúde e que tratam a saúde como outro negócio qualquer em que tem de se ter lucros. Isto exige uma reflexão, tem de ter regras e regulação.
Falava há pouco de na transplantação ser preciso ter a certeza de que não existem pressões. Apanhou casos suspeitos?
Sim, uma razão que me levou a estar sempre muito atento e a insistir para que a lei mudasse e a doação não estivesse restrita a familiares de sangue foi ver que por vezes existiam essas pressões dentro das famílias. Lembro-me de uma filha que ia dar o rim ao pai. Tinha passado todos os filtros e uma vez no meu gabinete, a tremer e com uma expressão facial que não lhe conhecia, confessou que não queria dar o rim e só ia fazê-lo porque todos os dias o pai a ameaçava com uma arma. Há uma certa ideia de que as famílias são estruturas idílicas onde estas coisas não acontecem e podem acontecer, por isso temos de estar atentos. Detetei vários outros casos, este era particularmente grave. Ser família não é garantia única. A maior parte serão saudáveis, mas há casos destes. Outros casos que por vezes acontecem é os pais fazerem muita pressão para que a pessoa dê ao outro irmão e é difícil explicar a fronteira entre poder haver uma sugestão e respeitar-se o direito absoluto de a pessoa não querer dar. E depois há pessoas que têm atitudes muito abertas.
Recorda algum caso?
Houve um caso que me impressionou de uma senhora que vivia na altura fora do país e estava a ser estudada como dadora para o irmão. Estava tudo bem e insistiu que queria levar o irmão para lhe dizer a ele e a nós que não lhe queria dar o rim. Ele estava bem, dizia ela. Para ser dadora, ela teria de vir a Portugal com risco de perder o emprego, mas queria o nosso compromisso de que se o irmão piorasse e isso fosse vital, que a chamássemos e ela viria. Achei uma atitude absolutamente honesta e que concretizou: sempre que vinha a Portugal voltava ao hospital para o afirmar. Há pessoas que querem dar e são ambíguas. Uma vez uma senhora da esfera alta da sociedade queria dar a um irmão e veio à consulta acompanhada pelo marido. O marido disse: “Não quero que a minha mulher dê o rim”. Aconselhamos sempre as pessoas a debater em família, mas a decisão é delas. E aquela senhora respondeu: “Não dou porque o meu marido não quer, mas não pode dizer isso ao recetor”. A cobardia em assumir.
O que fazem numa situação dessas? Protegem o candidato?
Sim. Está codificado, arranja-se um pretexto porque é verdade que nunca há dadores perfeitos.
Ficou então com uma amostra variada da natureza humana.
É verdade. Sempre disse que aquele meu gabinete no hospital era um observatório extraordinário do mundo. Vê-se quase sempre o melhor: a abnegação, a solidariedade, o altruísmo, mas também se vê coisas más.
E sai-se mais otimista ou pessimista?
Essencialmente uma lição positiva e de muita dignidade. Para mim isso foi muito útil. Não sou muito irritável mas quando me irrito, sei lá, no trânsito por exemplo, vem-me logo aquele pensamento “não tenho o direito”. Já me aconteceram coisas duras na vida e, não sendo religioso, não deixo de privilegiar o facto de ter saúde e faço todos os dias uma espécie de graças a Deus por isso.
Não lhe deu nem um bocadinho de religiosidade a medicina?
Não vou por esses caminhos. Respeitando muito, não é por aí que me oriento.
Ao fim de mais de 40 anos a trabalhar no SNS, e tendo visto melhorias, saiu com que estado de espírito quando se reformou em 2020?
Com a convicção de que já vi os hospitais a funcionar francamente melhor. Sempre trabalhei só em hospitais públicos. Estive ligado a alguma diálise privada e tenho hoje ainda alguma atividade, mas nunca trabalhei em grandes hospitais privados. Vejo com preocupação que os hospitais públicos estão a ser geridos hoje com padrões que muitas vezes não têm a ver com a qualidade. Há administrações muito boas, há outras que são más e há pessoas, que não são muitas, mas que são de péssima qualidade. E basta haver uma de péssima qualidade que destrói a administração e as instituições. Pessoas que desrespeitam de maneiras gravíssimas os profissionais, são autocratas, que têm um poder que lhes é mantido. E o que me preocupa é que não exista uma preocupação de avaliar resultados. Não sou especialista, mas julgo que o ministério tem estado apenas preocupado sobre se o desvio do orçamento que existe sempre não é escandalosamente grande.
E tem sido.
Mas parece que se conta já com isso, desde que não seja muito maior do que o previsto. Agora, à custa de quê, ninguém vai avaliar. Algumas administrações entram nesse jogo e não há uma visão mais geral sobre como é que estão a ser os cuidados aos doentes. Regressando ao mundo da transplantação, a certa altura o ministério resolveu criar, copiando o que se faz pela Europa fora, centros de referência, com um conjunto de requisitos. Das oito unidades de transplantação renal portuguesas, só duas é que não são centros de referência e tenho a ideia de que é porque não se candidataram. Conhecendo por dentro, algumas unidades não merecem ou deixaram de merecer ter essa distinção de excelência. É publicidade enganosa.
Quer dar exemplos?
Não.
Acontece noutras áreas?
Acontece na saúde e acontece na transplantação renal.
Quando é que as coisas foram, na sua visão, francamente melhores?
Pode ser o comentário de alguém velho que acha que houve uma idade de ouro mas há 20 anos era bastante mais agradável trabalhar nos hospitais. Os médicos sentiam-se mais confortáveis. Embora os ordenados tenham sido sempre baixos, havia um prazer de trabalhar nos hospitais e os médicos eram pelo menos ouvidos e respeitados nas suas áreas. Não quer dizer que se seguisse e não defendo que sejam os médicos a mandar nos hospitais, mas é indispensável que os corpos técnicos sejam ouvidos com atenção e não se deve partir do princípio, que às vezes acontece, de que estão ali para reivindicar, pedir coisas exóticas e incomodar administrações que não gostam de ser incomodadas. E nisto não se lhes dá pelo menos o benefício da dúvida de que têm um trajeto que devia dar autoridade de serem ouvidos com respeito. Isto acontecia e deixou de acontecer.
Como olha para a turbulência deste verão no SNS?
Olhando de fora, não é a primeira vez que há problemas nas urgências e nas escalas. Sabemos que isto acontece porque houve muito pouco cuidado com a demografia médica das especialidades e que os serviços públicos, por maltratarem as pessoas – e não diria que isso vem do ministério mas muitas vezes acontece internamente por parte de administrações hospitalares – tornaram-se muito pouco apetecíveis. Suspeito que aquilo que era muito comum na minha geração e até mais novas, o vestir a camisola, está em dissolução. Talvez seja uma questão deste tempo, mas é muito acentuada pelo desrespeito que existe. Os médicos estavam habituados a ser mal pagos mas pelo menos tinham outras compensações e condições para executar a sua missão. Quando um médico diz que está a gastar por exemplo muito tempo a fazer requisições de transporte de doentes, não é normal que oiça um grito de um administrador que diz que é assim mesmo, muitas vezes até num tom mal criado e arrogante, não querendo perceber que talvez não seja boa ideia que os médicos consumam horas a escrever manualmente ou informaticamente impressos sem que haja pessoal mais competente com essa função. Este é um exemplo light.
Disse que nunca viu a questão do desenvolvimento de um SNS como sendo de esquerda ou direita. Como vê o debate político em torno da saúde?
Do pouco que acompanho, acho que há apropriações por partidos, por oposições e penso que era preciso descolorir o debate. Os diagnósticos estão feitos e acho sempre um bocadinho disparatado quando surgem novos grupos de trabalho. Voltando a falar da minha área: um problema que está identificado há imenso tempo é o do seguimento a longo prazo das pessoas que recebem um órgão. Pertenci a grupos de trabalho nomeados pelo ministério, produzimos documentos, alguns já com a colaboração de juristas do ministério chegaram à fase final de estarem publicáveis e depois desaparecem, alguns que eram muito bons à cabeça para os doentes – na nossa visão, porque deixariam de fazer grandes viagens, e para os hospitais mais próximos, poupando-se imenso dinheiro. Este problema mantém-se e era só ir buscar esses documentos onde estiverem. Nesse aspeto a pandemia ajudou: de um momento para o outro foi possível realizar consultas à distância, mas tenho receio que não se perpetue.
Dos anos de transplantação em Santa Cruz, e é considerado um dos pais da doação em vida, ficou com muitas histórias marcantes?
Claro, ainda que não goste muito dessa expressão. E doação em vida pode não ser só do rim, há do fígado, pode haver de pulmão, que eu saiba não se fez nenhuma de pulmão em Portugal.
Não sabia.
Sim, normalmente faz-se em recém-nascidos que nascem com doenças raras que podem ser resolvidas assim, tira-se um bocadinho do pulmão ao pai e/ou mãe. Mas em todo o mundo a transplantação em dador vivo continua a ser quase só renal.
Preparou bebés?
Tivemos algumas crianças mas habitualmente considera-se que antes dos três anos não devem ser transplantadas. Depende muito da experiência cirúrgica. O doente mais novinho transplantado em Santa Cruz tinha quatro anos. Recebeu um rim de adulto. Havia em Santa Cruz um cirurgião extraordinário, que operou esta criança, a quem a história da transplantação muito deve, o dr. António Pina, que teve uma morte súbita muito novo. Foi ele que fez, depois dos primeiros passos do professor Linhares Furtado em 1969, o renascer do dador vivo e muitas outras unidades vieram aprender com ele. Tinha 50 e poucos anos quando morreu.
Deixa muitas memórias?
Era um cirurgião de elite por duas razões. Habitualmente pensa-se que o melhor para os cirurgiões é terem muito boas mãos, mas mais importante é terem uma boa cabeça. Ele era extraordinário, estava sempre do lado do doente, assumindo o risco. Às vezes certos cirurgiões não querem avançar quando há uma grande probabilidade de correr mal. Ele, quando achava que a probabilidade de correr mal era maior ao não fazer nada, fazia e salvou muitas vidas, até com operações que outras pessoas, por não terem as mãos mas sobretudo a cabeça, não fariam. Faz muita falta. Há pessoas que se pensa que a saudade vai diminuindo com o tempo, mas neste caso acho que tem aumentado em todos os que tiveram o privilégio de trabalhar com ele.
Perguntava-lhe sobre histórias marcantes.
A doação em vida tem muitas histórias extraordinárias. Creio que foi um ano depois da morte do Dr. António Pina que organizei uma celebração de homenagem a todos os dadores de rim do Hospital de Santa Cruz e de outros. Fez-se uma cerimónia muito emotiva, homenageando as pessoas na sala e entregou-se simbolicamente um diploma aos dadores. Para surpresa de algumas pessoas, em vez de me dirigir especificamente às pessoas que lá estavam a representar o Governo, com todo o respeito, disse qualquer coisa como gostava de me dirigir à alta sociedade portuguesa que está nesta tenda. Realmente aquelas pessoas que estavam ali eram mais importantes do que as que costumam aparecer nas revistas. E também é importante falar das equipas que estão envolvidas nisto, os gabinetes de coordenação de transplantação, que ficam muitas vezes na sombra. E mais uma vez é uma coisa que não se percebe neste país: há gabinetes de coordenação que funcionam de forma excelente e outros não e nunca houve uma apreciação sobre porque é que há locais que têm elevada produtividade e outros não. Em Espanha, que é sempre recordista da transplantação, quando se constatam estas assimetrias, instala-se alguém que fica alguns dias no hospital a ver e quase sempre descobre quais são as lacunas. A nossas auditorias cá são às vezes feitas com alguma ligeireza, focadas em aspetos formais, se o nome dos doentes está escrito na lombada ou não e depois coisas muitíssimas importantes não são aferidas. Se há um número de casas de banho mínimas nos serviços, se são limpas com a frequência adequada. Depois como isto não aparece nos livros de reclamações, porque as pessoas ou não percebem ou valorizam mais coisas como a comida estar fria, não é visto.
Vê nisso alguma especificidade portuguesa?
Não sei, acho que às vezes temos uma auto-tolerância grande e depois na avaliação há alguma dose de hipocrisia. Fazem-se avaliações ou auditorias das coisas que já se sabe que estão bem. Não é de agora. Quando eu era jovem médico e fazia banco no serviço de urgência de S. José, que era o grande de serviço de Lisboa, com dezenas de pessoas em macas, quando se sabia que lá ia o ministro ali durante umas horas tudo aquilo estava impecável.
Não é a primeira vez que o oiço.
É histórico, toda a gente da minha geração presenciou coisas dessas. Essa ideia de que, quando vai o senhor ministro, mudam-se as coisas, sempre me pareceu não fazer sentido. Era bom que o senhor ministro visse como estão as coisas e, a alterar-se alguma coisa, era pôr um bocadinho pior para ver se o ministro intervinha. Agora se é assim, se for para pedir mais verbas ou organização, ao maquilhar perde-se a oportunidade de mostrar como estão as coisas na realidade. Esse espírito não está ainda ausente das instituições. Agora podem não ser as macas mas são outras coisas.
Além da Medicina foi sempre um melómano. Curiosamente o prof. Linhares Furtado também. Há alguma relação?
Não sei mas é uma das coisas sobre que tivemos muitas conversas, é um homem com uma cultura vastíssima e não sei se toca mas pinta. A mim acho que veio de casa, ouvia-se muita música clássica.
As suas mãos não davam para cirurgião e não davam para pianista?
Acho que não, sou muito desafinado. Nos corais punham-me lá para trás e era sempre proibido de cantar. Mas sim, uma das coisas que me deixa satisfeito é que, tendo tido uma vida profissional muito ativa, nunca perdi o gosto e a vontade de fazer outras coisa.
É um apaixonado pela Gulbenkian, esteve na inauguração do auditório.
Sim e sendo muito rigoroso, se tivesse de fazer contas à vida, o sítio onde passei mais horas foi em casa, depois no hospital e em terceiro lugar na Gulbenkian, onde assisti à grande maioria dos concertos. Mas ainda no fim de semana passado vi um grande pianista, Nikolai Lugansky, que veio encerrar um ciclo de concertos num auditório em Carnaxide. E é fantástico que hoje seja possível ouvir um grande pianista numa freguesia da Amadora, que um homem que toca nas salas mais famosas do mundo inteiro possa tocar numa sala mais pequena de uma zona mais suburbana.
Já o ouvi falar deste seu gesto ter talvez raízes mais profundas, antes da Medicina. Na infância?
Talvez ter sido educado por pessoas que valorizavam muito a generosidade e solidariedade, que se davam até onde podiam dar e delicadamente. Não importa só dar, mas dar delicadamente.
Mesmo nascido numa família de médicos, com mais posses.
Sim, mas vivia-se uma vida regrada. O meu pai morreu quando eu tinha 15 anos mas até aí não viajávamos, não se fazia férias de hotel, a minha praia de infância era Carcavelos. Era uma vida confortável e com zero luxos. Aprendi sempre que não nos devíamos queixar dessas coisas, há sempre quem esteja pior. Marcaram-me muito umas tias que tinham vivido em termos económicos superlativos mas que num acidente tinham ficado com muito pouco. Nunca se queixaram, jamais. Lembro-me dessas tias terem deixado de ter criadas e, talvez os tempos fossem outros, tinham boas relações que não cessaram, havia duquesas que iam lá a casa, era lhes servida uma chávena de chá sem bolachas. Hoje em dia está-se a valorizar excessivamente o estatuto económico. Haverá exceções, mas passou a ser quase o único padrão de valor das pessoas, o que acho um retrocesso civilizacional triste.
Como vai ser o futuro da transplantação?
Até há 20 anos a maioria dos dadores eram vítimas de acidentes. O grande fornecedor era a estrada Marginal. Havia muitos acidentes de mota e acidentes industriais com gente nova.
Fugia das histórias?
Tentava não saber. Aparece um rim de uma criança… Sabemos que temos de prosseguir e que, infelizmente, acontecem acidentes. Com a diminuição dos acidentes que vitimavam muitas pessoas nos 20/30 anos, temos avançado ao mesmo tempo para a colheita de órgãos de dadores mais velhos, hoje maioritariamente em mortes por AVC.
O futuro está nos transplantes com animais? Foi feito o primeiro transplante com um coração de porco.
Lembro-me de um congresso em 2001, organizado pela sociedade europeia ESOT, e um dos grandes temas era a xenotransplantação, a partir de animais e células estaminais. Quem estivesse a assistir ficava com a sensação de que não era para o dia seguinte mas estava-se a escassos meses dessa realidade. Passaram 20 anos. Tem havido progressos e a minha convicção é que se chegará lá, mas acho que não temos razões para colocar prazos. É importante que se faça investigação e que haja dinheiro para investigar. A certa altura assumiu-se que seria do porco e nunca mais se pensou em rins de macaco ou outros animais. Depois hoje se houvesse investigação com órgãos de macaco ou chimpanzé seguramente haveria imensos movimentos de defesa dos animais que se iriam opor. Hoje a investigação biológica com animais é muito difícil, muitas vezes é feita em sítios remotos. Acho que as células estaminais na regeneração e eventualmente fazer órgãos in vitro terá um papel, mas estamos a falar de investigação caríssima e quem a financia? Há muitos anos que os avanços vêm da indústria farmacêutica, que só investe naquilo que pode gerar receitas, enquanto a medicina académica deixa de ter fundos.
Tendo escolhido a nefrologia pelo desafio, encontrou beleza nos rins?
Sim, a fisiologia é fascinante e a dos rins ainda mais.
Todos os médicos dizem isso das suas especialidades. O que é fascinante?
A quantidade enorme de funções. A mais óbvia é tirar substâncias do sangue e colocá-las noutro líquido que é a urina. É a mais vital. Mas a regulação da anemia, da medula óssea, o metabolismo do cálcio e do fósforo e de uma data de hormonas. Não é por acaso que sendo tão pequenos recebem 20% do nosso sangue. No conjunto, numa pessoa normal os rins pesam 300/400 gramas. Numa pessoa que pese 70 quilos, não representam sequer 1%, mas recebem 20% do sangue que o nosso coração bombeia, é o órgão mais irrigado. Tem tantas funções que é um grande consumidor de oxigénio. É um órgão em termos de fisiologia muito mais fascinante que o coração, que também não bate só, tem hormonas. Ensinei imunologia muito tempo por isso o mais fascinante é estudar a fisiologia da imunologia das células e dos linfócitos nos rins.