Bomba Atómica. O grande bang de Hiroxima

A 6 de agosto de 1945, há precisamente 77 anos, o apocalipse abateu-se sobre a cidade japonesa de Hiroxima. A novela gráfica A Bomba, agora editada pela Gradiva, traça a biografia desta arma cuja potência continua a assombrar-nos.

Sim, eu pensava justamente que era uma estrela, mas ela caiu… e eis que explode. E esta estrela grande, como lhe havemos de chamar? Dir-se-ia uma bomba.

Lev Tolstói,
Crónicas de Sebastopol

 

Os habitantes de Hiroxima consideravam-se bafejados pela sorte. Enquanto Tóquio e Yokohama haviam sido fustigadas por violentos bombardeamentos aéreos, a sua cidade permanecia intacta. A elegante ponte, o palácio de exposições com a moderna cúpula de vidro, os templos budistas com centenas de anos, o porto de pesca repleto de embarcações e as movimentadas ruas de comércio do bairro Hondori não haviam sofrido qualquer dano. Os jovens podiam continuar a divertir-se no teatro, nos cinemas, nas lojas e na feira popular.

Hiroxima tinha-se preparado para as bombas incendiárias que desde junho de 1944 castigavam o solo japonês com mais frequência dos B-29 Superfortress americanos, mas corria que nem seria necessário: dizia-se que a cidade no sul da ilha, a 800 km da capital, estava a ser poupada porque os americanos queriam fazer dela o seu quartel-general assim que conseguissem invadir o Japão.

Entretanto, o mundo estava a mudar muito rapidamente. Os acontecimentos sucediam-se a um ritmo vertiginoso.

A 1 de abril de 1945 começava a travar-se a impiedosa batalha de Okinawa, o ponto culminante do conflito no Pacífico, em que mais de mil pilotos-kamikazes mergulharam para a morte, afundando cerca de 30 navios americanos e atingindo cerca de 350.

A 12 de abril, Franklin D. Roosevelt estava a posar para um retrato da pintora Elizabeth Shoumatoff, no seu retiro de Warm Springs, Georgia, quando sentiu uma dor intolerável na parte de trás da cabeça. Dali a pouco jazia morto, vítima de uma hemorragia cerebral. O quarto mandato do popularíssimo Presidente que tinha tirado a América da Grande Depressão terminava abruptamente.

A 28 do mesmo mês, Mussolini era fuzilado sumariamente por partisans e o seu cadáver exposto à multidão, preso pelos pés, como se fosse uma peça de caça, juntamente com o da sua amante, Claretta Petacci, em Milão.

A 30 de abril, Adolf Hitler cometia suicídio no seu bunker, um dia depois de se ter casado com Eva Braun. No espaço de menos de um mês desapareciam da superfície da terra três dos mais carismáticos líderes mundiais de todos os tempos. A 8 de maio a Alemanha rendia-se incondicionalmente.

 

A sombra na escada

Enquanto se fechava um capítulo na Europa, a mais de 8 mil quilómetros de Berlim, no Novo México, havia um outro capítulo, igualmente sombrio, prestes a iniciar-se. Um engenho explosivo com uma potência nunca vista estava a ser preparado em segredo por uma equipa de cientistas desde 1939. E em breve ia ser testado no deserto.

A longa, complexa e fascinante história da bomba atómica é contada por Didier Alcante (argumentista), L.F. Bollée (jornalista e escritor apaixonado por BD, co-argumentista) e Denis Rodier (ilustrador) na novela gráfica A Bomba (2 vols.), recentemente publicada pela Gradiva.

Não é por acaso que a obra envolve três autores. Contar com esta clareza, rigor e riqueza de detalhe a história da bomba, das minas do Congo ao Pentágono, da fábrica de Vemork, na Noruega, ao laboratório de Los Alamos, dos ensaios com cobaias humanas realizados em hospitais americanos ao apocalipse em Hiroxima, é uma proeza que exige uma investigação e organização minuciosas. Alcante descreve que se sentiu «assustado com a dimensão da tarefa: como sintetizar tudo, como evitar caricaturas, julgamentos apressados, precipitadas aproximações históricas e científicas». E remata: «Em suma, tinha a impressão de estar perante uma montanha».

Em traços largos, o primeiro volume, ‘No Princípio Era o Nada’, relata a corrida entre os alemães e os aliados para obter a arma mais destrutiva alguma vez vista, culminando na primeira reação em cadeia controlada da história, no Estádio da Universidade de Chicago, a 2 de dezembro de 1942. O segundo volume, A Sombra, mostra os preparativos, o teste de Alamogordo, e termina a 6 de agosto de 1945, com uma espécie de sombra projetada na escadaria de um banco.

Mas que estranha sombra é esta? Didier Alcante descobriu-a quando visitou o Japão no final do ano de 1981 e início de 1982. Não foram as fotografias da devastação nem mesmo de cadáveres que mais o impressionaram. Foi a sombra de uma pessoa, impressa na escadaria da agência do banco Sumimoto.

«A sombra de um(a) desconhecido (a) que se encontrava a cerca de 250 metros do hipocentro, que morreu instantaneamente, desintegrado pela explosão. Lembro-me de ter ficado, na altura, como que petrificado. Para mim, aquela sombra representava de algum modo a aniquilação de um país que me tinha feito sonhar tanto, três anos antes. E talvez o fim da minha inocência», descreve o argumentista.

Na fatídica manhã de 6 de agosto de 1945, o dono daquela sombra sentara-se nos degraus a descansar ou à espera que a agência abrisse as portas. O calor libertado pela bomba provocou-lhe a morte imediata e o corpo como que se vaporizou, deixando a sua silhueta para sempre projetada na pedra. Quando o edifício foi demolido para dar lugar a um novo em 1971, os degraus foram cortados e doados ao Museu da Paz de Hiroxima.

 

O teste Trindade

Tudo começara em agosto de 1942, quando os responsáveis britânicos e americanos acordaram atribuir a um grupo de cientistas a tarefa de desenvolver uma forma de utilizar militarmente a energia nuclear, no que ficou conhecido como Projeto Manhattan.

A Alemanha também estava a trabalhar num projeto semelhante. Em 1938 Otto Hahn, Lise Meitner e Fritz Strassmann haviam descoberto que o átomo de urânio, se fosse bombardeado por neutrões, cindia-se, podendo desencadear uma reação em cadeia. Era imperioso que os aliados tivessem a bomba antes dos nazis, mais não fosse como arma de dissuasão.

De volta a agosto de 1942, «o general Groves, chefe do Projeto Manhattan, encontrou-se com [Robert] Oppenheimer num compartimento reservado de um comboio que partira de Chicago em direção ao Pacífico e propôs-lhe que assumisse a direção do laboratório único de onde sairia a bomba», descreve Michel Rouzé em Oppenheimer et la bombe atomique. A escolha iria ser muito contestada: «Diziam-se que só um prémio Nobel ou pelo menos um homem mais velho poderia ter autoridade suficiente sobre todas estas prima donnas», revelaria Groves.

Mas Oppenheimer, «teórico genial», filho de imigrante alemão, acabaria por revelar-se o chefe de orquestra perfeito para conduzir esta sinfonia de fim do mundo.

Em Los Alamos (que significa ‘os choupos’ em espanhol) foi montado em tempo recorde o maior laboratório do mundo, que contava com o contributo de figuras como Enrico Fermi, o italiano premiado com o Nobel da Física em 1938 e o físico nuclear húngaro Leo Szilard, que fugira ao nazismo.

Os primeiros resultados tangíveis deste investimento colossal surgiram em 2 de dezembro de 1942, quando Fermi conduziu a primeira reação em cadeia controlada, em Chicago.

Entretanto, nascia em Hanford, estado de Washington, a Cidade do Plutónio, e em Oak Ridge, o Sítio X, o maior edifício do mundo, com o dobro do tamanho do Pentágono, para produzir urânio enriquecido.

Em 15 de julho de 1945, todo este poderoso complexo militar, científico e industrial se materializava num engenho de 4,5 toneladas conhecido apenas como ‘o dispositivo’, que seria testado no deserto de Alamogordo, num vale conhecido por ‘Jornada del Muerto’.

Uma tempestade, com chuva e trovoada, atrasou o ensaio. Mas apenas por uma hora e meia. às 5h30 de 16 de julho, 300 km a sul do laboratório de Los Alamos, realizava-se a primeira detonação de uma bomba atómica da história. Os observadores usaram óculos de soldador para não cegarem com o brilho da explosão. Oppenheimer baptizou-o ‘Ensaio Trindade’, inspirado num poema de John Donne, poeta metafísico do século XVII:

«Bate no meu coração Deus da Trindade, bate
[…]
A tua força quebra, sopra, queima e renova-me»

A explosão, equivalente a 20 mil toneladas de TNT, foi vista a 320 km e ouvida a 80kg. No local abriu-se uma cratera com cerca de um quilómetro de diâmetro e a areia do solo transformou-se em vidro. O diretor do projeto da bomba atómica sentia-se dividido entre o sucesso dos seus esforços e as consequências que daí advinham para a Humanidade. Ao ver a explosão, ocorreu-lhe uma passagem do Baghavad Gita, o livro sagrado hindu do século IV a.C.: «Sabíamos que o mundo jamais seria o mesmo. Algumas pessoas riam, outras choravam. Mas a maioria permaneceu em silêncio. Recordei-me de uma passagem das escrituras hindus: tentando convencer o príncipe a concluir suas tarefas, Vishnu assumiu sua forma com vários braços e disse: ‘Agora eu sou a Morte, a destruidora de mundos’. Os físicos conheceram o pecado», recordaria mais tarde.

No dia seguinte, 16 de julho, o USS Indianapolis zarpava da Baía de São Francisco com uma carga muito especial a bordo. O seu nome: ‘Little Boy’.

 

Estratégia: atingir os bairros mais populosos

Se o argumento para o desenvolvimento da bomba fora o receio de que a Alemanha também a tivesse, esse perigo estava há muito totalmente afastado.

O objetivo agora era outro, acabar com a guerra o mais rapidamente possível. Um homem estava a tratar afincadamente disso, tentando vergar o Japão sob o poder do napalm. «O Esquadrão de B-29 de Curtis LeMay tinha como destino uma retangular de 31 km² no centro de Tóquio, ao longo do rio Sumida. Abrangia uma área industrial, uma área comercial, e centenas de habitações da classe trabalhadora, no que era, nessa altura, um dos distritos urbanos mais densamente povoados do mundo», descreve Malcolm Gladwell em A Máfia dos Bombardeiros (D. Quixote).

O_bombardeamento de Tóquio da noite de 9 para 10 de março de 1945 continua a ser o mais mortífero, com cerca de 100 mil vítimas mortais no espaço de algumas horas. «Centenas de aviões – centenas de bestas mecânicas com asas troando sobre Tóquio, a voar a uma altitude tão baixa que toda a cidade vibrou com o barulho dos seus motores. […] As bombas caíam dos B-29 em aglomerados. Eram pequenos tubos de metal de 50 centímetros de comprimento, pesando 2,7 kg cada um, cheios de napalm», continua Gladwell. Havia uma razão de atingir os bairros mais populosos: «O facto de as regiões mais densamente povoadas da cidade corresponderem à zona incendiária não é acidental: os estrategas de guerra procuraram explorar a vulnerabilidade desta área da cidade, composta por estruturas de ‘papel e contraplacado’ inflamáveis».

Depois do falhanço dos bombardeamentos de precisão, a força aérea norte-americana tinha optado pelos bombardeamentos indiscriminados como forma de atingir o Japão e forçá-lo a render-se.

Uma doutrina que contrastava de forma flagrante com as ideias do Presidente Roosevelt. Em 1 de setembro de 1939, face aos bombardeamentos de civis pelos alemães, FDR havia lançado o seguinte apelo: «O implacável bombardeio aéreo de civis em centros populacionais não fortificados durante as hostilidades que ocorreram em vários cantos da terra nos últimos anos, que resultaram na mutilação e morte de milhares de mulheres e crianças indefesas, chocou profundamente a consciência da humanidade.

Se recorrermos a esse tipo de barbárie desumana durante o período de trágica conflagração com que o mundo agora se defronta, centenas de milhares de seres humanos inocentes, que não têm responsabilidade e nem remotamente participam das hostilidades que deflagraram, perderão as suas vidas».

Mas nem mesmo com todo o poder de fogo mostrado pelos esquadrões de Curtis Le May o tenaz exército de Hirohito desistia. Era preciso algo ainda mais destrutivo e intimidatório para forçar a rendição e acabar com a guerra.

 

Porquê Hiroxima?

A partir dos critérios definidos pelo ‘Comité do alvo’, duas cidades japonesas foram ‘eleitas’ pelos americanos como alvos preferenciais: Quioto e Hiroxima. Tinham de ser locais ainda não atingidos por bombardeamentos, onde fosse fácil circunscrever os estragos para melhor avaliar a potência do engenho. Com um milhão de habitantes, Quioto, a antiga capital do Japão, tinha a vantagem de ser um centro intelectual, o que levaria a população a perceber melhor o significado desta nova arma. Já Hiroxima era um importante centro industrial e militar, responsável pela defesa do sul da ilha. As colinas em volta concentrariam os efeitos da explosão, aumentando a devastação provocada.

Mas vários cientistas, incluindo Leo Szilard, uma das peças fundamentais para o desenvolvimento da bomba, defendiam que se devia fazer uma demonstração numa ilha desabitada para mostrar ao mundo a potência da nova arma, para dar uma última oportunidade ao Japão. Desta vez, os cientistas não foram ouvidos.

 

‘Caiu o sol’

«Estava sentado na sala de estudos, que era um pouco escura, e de repente entrou luz pela janela. Uma luz muito clara, luz azul», recordou ao jornal i, em 2015, Shintaro Yokoshi. Tinha nove anos quando a bomba atómica foi lançada sobre Hiroxima. «Corri à janela para ver o que tinha acontecido. Depois houve um grande estrondo e um grande vento e vi, atrás de um pequeno monte, uma bola de fogo. A cor era impossível de explicar: laranja, encarnado, preto. Como uma bola de vidro cheia de cores. E eu pensei: ‘Caiu o sol!’».

Ao ver a pele das pessoas que chegavam com queimaduras, pensou que «era roupa queimada que estava a dependurar». Acabou por vir para Portugal onde se tornou instrutor de natação.

 

‘Resultado impecável’

A bomba funcionou exatamente como se esperava. «Resultado impecável. Sucesso a todos os níveis», comenta o general Groves, mentor do Projeto Manhattan, no_segundo volume do álbum de Alcante, Bollée e Rodier. Os autores põem magistralmente em confronto a alegria dos americanos e o horror causado pelo engenho. Estima-se que Little Boy tenha provocado mais de 60 mil mortes instantâneas, número que ascenderia a 200 mil nos cinco anos seguintes.

Paul Warfield Tibbets Jr. , o comandante do Enola Gay, o avião que largara a bomba, não se arrependia do seu papel na tragédia. No seu entender, a bomba atómica salvara milhões de vidas, ao obrigarem Hirohito a assinar a capitulação incondicional.

Quanto aos japoneses evitavam falar em sobreviventes, preferindo chamar-lhes ‘hibakusha’ – ‘pessoas afetadas pela explosão’. «Durante mais de uma década após os bombardeios, os hibakusha viveram num limbo económico, aparentemente porque o governo japonês não queria sobrecarregar-se com algo tal como responsabilidade moral por atos nefandos dos vitoriosos Estados Unidos», escreveu John Hersey em Hiroshima, onde humanizou a catástrofe através de seis histórias individuais.

«Embora logo se tornasse claro que numerosos hibakusha sofriam consequências de sua exposição à bomba que diferiam inteiramente em grau e natureza dos sobreviventes mesmo dos horrendos bombardeios com bombas incendiárias de Tóquio e outras cidades, o governo nenhuma medida especial tomou para socorrê-los – até, ironicamente, à tempestade de fúria que varreu o país quando 23 tripulantes de um navio de pesca, o Dragão Feliz Nº 5, e sua carga de atum sofreram os efeitos da radiação produzida pelo teste com uma bomba de hidrogénio americana no atol de Bikini, em 1954».

Como escreveu George Orwell no ensaio ‘Nós e a bomba atómica’, logo em 1945: «Se a bomba atómica se revelasse algo tão barato e fácil de produzir como uma bicicleta ou um relógio de alarme, poderia mergulhar-nos de novo no barbarismo […]. Se, como parece ser o caso, é um objeto raro e dispendioso, tão difícil de produzir como um navio de guerra, é mais provável que ponha um fim às guerras de grande escala, com o custo de prolongar indefinidamente uma paz que não é paz».

Depois de cinco décadas de relativa acalmia, a invasão da Ucrânia pela Rússia trouxe de novo à superfície o receio de um confronto nuclear. Desde 1962, ano da crise dos mísseis de Cuba, em plena Guerra Fria, que_uso destas armas não estava tão próximo. Desde o teste de Alamogordo e as catástrofes de Hiroxima e Nagasáqui, a ameaça nunca esteve realmente afastada, mas apenas adormecida.