As temperaturas estavam amenas na Île-de-France naquele início de agosto de 1982. Com muitos parisienses a passar férias fora da cidade, a segunda semana do mês arrancava com um ritmo preguiçoso. À hora de almoço de dia 9, uma segunda-feira, algumas dezenas de pessoas petiscavam especialidades asquenazes no interior do Chez Jo Goldenberg, um restaurante-charcutaria na esquina da Rue des Rosiers com a Ferdinand Duval. O Marais era há décadas o grande bairro da comunidade judaica parisiense e o estabelecimento, que tinha construído a sua reputação ainda antes da ocupação nazi de 1940-1944, mantinha um ambiente acolhedor e informal. O toldo encarnado e as vitrinas repletas de produtos convidavam a parar. Lá dentro, as iguarias kosher e a simpatia do senhor Goldenberg faziam o resto.
Por volta das 13h15, um enorme estrondo atordoou os comensais. Era apenas o início de um pesadelo que duraria cerca de três minutos. Logo a seguir à explosão, um grupo de homens mascarados e vestidos de cinzento entrou e disparou rajadas de metralhadora de forma indiscriminada. Antes de se diluírem no dédalo de ruelas do bairro, os atacantes – talvez cinco, mas ainda hoje não há consenso sobre quantos eram – lançaram uma segunda granada, para terem a certeza de que ninguém iria persegui-los. Uma mancha escura de sangue alastrou pelo chão de cerâmica entre as pernas metálicas dos bancos.
Entretanto, ouvindo os estrondos, um polícia que estava a almoçar ali perto resolveu ir apurar o que se passava. De pistola na mão, André Douard aproximou-se do Chez Jo Goldenberg, mas não chegou a entrar. Ao ver a pistola, o filho do dono do restaurante pensou tratar-se de um dos terroristas e disparou sobre ele, ferindo-o gravemente.
Dali a pouco, uma azáfama de sirenes, ambulâncias e carros de bombeiros que nos pareceriam saídos de um museu ou de um baú de brinquedos antigos tomava o bairro judaico de assalto. Oataque tinha deixado seis mortos, entre os quais duas norte-americanas (Ann Van Zanten, curadora da Chicago Historical Society, e Grace Cutler), e 22 feridos.
Houve quem lhe chamasse «a mais pesada perda sofrida pelos Judeus em França desde a Segunda Guerra Mundial».
Aí estava mais uma razão, e das fortes, para odiar as segundas-feiras.
À saída de uma cerimónia de homenagem às vítimas que teve lugar numa sinagoga no próprio dia, François Mitterrand ouviu jovens furiosos gritar-lhe: «Assassino!». O Presidente tinha fama de dar cobertura aos palestinianos e, por conseguinte, de ser cúmplice do anti-semitismo.
Do eclipse ao compact disc
O verão de 1982 ficou marcado pelo mais longo eclipse lunar do século XX, que ocorreu a 6 de julho. Com uma duração total de 106 minutos, parecia o sinistro presságio de terríveis acontecimentos.
A 20 desse mês, um ataque à bomba do IRA no Hyde Park, o famoso jardim no centro de Londres, matava oito soldados e feria 47 pessoas. Três dias depois, em Nagasáqui, chuvas torrenciais e enxurradas destruíam pontes e matavam 299 pessoas. No último dia do mês, conhecido em França como ‘samedi noir’, por ser o dia em que mais pessoas partem para férias, provocando engarrafamentos diabólicos, o país assistia ao mais mortífero acidente de viação até à data: dois autocarros que transportavam crianças e professores para um campo de férias nos Alpes colidiram em Beaune, fazendo 53 vítimas, das quais 46 crianças.
Mas nem tudo nesse verão foi sombrio. Em Espanha, a seleção italiana conquistou a Taça do Mundo: 3-1 na final contra a República Federal da Alemanha. Nos Estados Unidos, estreava-se nas salas de cinema E.T. – O Extraterrestre, o filme luminoso de Steven Spielberg. E na Alemanha era produzido o primeiro CD, uma tecnologia que iria impor-se e revolucionar a forma como ouvimos música.
Décadas de investigação e um acordo secreto
Mas qual a identidade e as motivações dos encapuzados que semearam a morte e o terror no Chez Jo Goldenberg ao início da tarde de 9 de agosto? Quarenta anos depois, a investigação continua a conhecer desenvolvimentos.
Em setembro de 2020 a polícia norueguesa anunciou a detenção de um dos autores do atentado. Walid Abdulrahman Abou Zayed, que vivia em Oslo desde 1991, foi extraditado para França para responder pelos crimes de homicídio e tentativa de homicídio. Embora alegue que na altura do crime estava em Monte Carlo, as autoridades francesas puseram-no em prisão preventiva.
Abou Zayed pertencia à organização Abu Nidal, um grupo radical saído da OLP (Organização para a Libertação da Palestina, liderada por Yasser Arafat). Foi o segundo dos presumíveis autores do ataque de agosto de 1982 em Paris a sofrer as consequências. Em 2015 o ‘cérebro’ da operação já tinha sido detido na Jordânia.
Outros suspeitos nunca responderam perante a Justiça, apesar dos mandatos de captura emitidos pelas autoridades francesas.
Em agosto de 2019, o antigo chefe dos serviços de informações gauleses, Yves Bonnet, terá admitido um pacto secreto de não agressão com os terroristas. Na altura, prometeu ao grupo que poderia continuar a gozar de liberdade de movimentos no país desde que não voltasse a atacar dentro das fronteiras do Hexágono.
«Fizemos uma espécie de acordo verbal em que eu lhes disse que não queria mais ataques em solo francês e em troca deixava-os entrar em França e garantia que nada lhes acontecia», terá confessado Bonnet, segundo o Le Parisien. «E funcionou. Não voltou a haver ataques entre o fim de 1983 e o fim de 1985… depois, houve em Itália, por exemplo, mas, desde que não fosse em solo francês, isso já não me dizia respeito».
O ‘Pai da Luta’
Fundada por Sabrī Khalīl al-Banna, mais conhecido por Abu Nidal (‘Pai da Luta’) a organização Abu Nidal reivindicou ataques em todo o mundo, que provocaram mais de 300 mortes diretas. Um mês antes do massacre da charcutaria em Paris, foi responsável pelo atentado a Shlomo Argov, o embaixador de Israel no Reino Unido. Alvejado à saída do Hotel Dorchester, Argov ficou em estado crítico. Como resposta, os israelitas invadiram o Líbano. Uma bola de neve.
Outra operação com enormes consequências foi o ataque aos aeroportos de Viena e Roma, a 27 de dezembro de 1985, que fez um total de 20 mortos e mais de uma centena de feridos. Quem com ferro mata, com ferro morre, e Abu Nidal acabaria por ser abatido em 2002 no seu apartamento em Bagdade em circunstâncias ainda não completamente esclarecidas.
Quanto ao Chez Jo Goldenberg, fechou as portas em 2006. Quando uma loja de roupa ocupou o espaço, as marcas das balas ainda eram visíveis. Evidentemente tratava-se de um vestígio desagradável que não quadrava com o ambiente requintado do novo bairro da moda. No seu lugar, há hoje apenas uma discreta placa de pedra para recordar aquela funesta segunda-feira.