De dirigente comunista, durante a sua juventude, Kwasniewski tornou-se o construtor da Polónia pós-soviética que hoje conhecemos. Após derrotar o histórico sindicalista Lech Walesa, em 1995, Kwasniewski tornou o seu país membro da NATO, contornando os receios de que essa expansão pudesse antagonizar Moscovo, conseguindo depois integrar a UE.
Eleito como candidato da Aliança de Esquerda de Democrática, um partido-irmão do PS português, sob a sua liderança a Polónia continuou a transição para uma economia de mercado, com privatizações em massa durante os seus dois mandatos.
Após anos de políticas neoliberais, tão em voga na viragem para o século XXI, Kwasniewski seria sucedido por Lech Kaczynski, iniciando a escalada ao poder dos ultraconservadores do Lei e Justiça, que ainda domina a política polaca.
Hoje, Kwasniewski vê na Ucrânia uma demonstração do perigo russo para que sempre alertou e lembra que «o mote da NATO, de que a ‘vigilância é o preço da liberdade’, não é menos verdade do que há 50 anos». Vê na dificuldade alemã em livrar-se da dependência energética da Rússia a prova de que «mesmo países grandes e ricos como a Alemanha não são imunes a más decisões».
Mas admite que as reservas de gás natural polacas «não seriam capazes de cobrir mais de um, um mês e meio de consumo no inverno».
Quão receosa está a Polónia de ser arrastada para a guerra devido à agressão russa?
A Polónia é vizinha da Ucrânia e tornou-se o centro logístico para providenciar ajuda militar internacional ao Governo ucraniano. Varsóvia também é o segundo maior – a seguir aos EUA – fornecedor de equipamento militar à Ucrânia, incluindo tanques, veículos de combate para infantaria e artilharia.
Em conjunto com os países bálticos, Varsóvia é reconhecida como o mais firme oponente das políticas agressivas de Vladimir Putin na Europa. Tudo isto coloca a Polónia na primeira linha de países que estão em risco de uma escalada, ainda que seja improvável.
Dito isto, argumentaria que o risco de ‘arrastar’ a Polónia para uma guerra, no sentido de uma intervenção militar direta, é limitado. A Polónia é membro da NATO e da EU e há um esforço coletivo destas organizações para apoiar a Ucrânia. Qualquer ação individual para confrontar a Rússia seria um aventureirismo que não esperaria de qualquer país europeu neste momento.
Claro que, a longo prazo, não podemos excluir que o apetite da Rússia cresça, tentando reconstruir a União Soviética e causando uma provocação, por exemplo contra os estados bálticos. Isso é especialmente provável se a guerra na Ucrânia terminar com um final positivo do ponto de vista de Putin.
Como tal, é totalmente legítima a decisão tomada na cimeira da NATO, em junho, de apoiar o flanco leste com uma presença mais forte de forças NATO. O mote da NATO, de que a ‘vigilância é o preço da liberdade’, não é menos verdade do que há 50 anos.
Além disso, a Polónia e outros estados iniciaram um amplo programa de rearmamento para reforçar as nossas forças armadas e a resiliência a qualquer potencial agressão.
Acha que alguns países europeus, como a Alemanha, estão a tomar uma posição demasiado branda quanto à agressão devido à sua dependência energética da Rússia?
Há um amplo desapontamento entre os europeus do leste e centro quanto ao ritmo e ao nível de envolvimento alemão no apoio militar à Ucrânia, dada a capacidade económica e industrial de Berlim.
Pessoalmente, eu teria algumas reticências em juntar-me a esse clube. E também não limitaria os motivos para a relutância alemã à sua dependência energética. Berlim tem uma longa e dolorosa história com a Rússia, e com outras antigas repúblicas soviéticas, com o brutal peso de homicídio em massa e crimes de guerra sem precedentes.
Esta memória dolorosa de uma guerra extremamente trágica combatida no leste ainda paira sobre a consciência alemã, sendo também associada a um pacifismo muito mais forte e generalizado na sociedade do que em outros estados europeus. A Alemanha também é uma grande democracia, muito aberta, caracterizada por uma cultura de debate.
Como tal, mudar de política contra a Rússia, uma política que de facto já data dos laços dos anos 70, não acontece de um dia para o outro. Mas acontece. Berlim lentamente começou a adaptar-se a esta nova realidade, no fim de contas, começou a entregar armamento pesado à Ucrânia. Mas, do ponto de vista da Europa Central, a perceção de que a Alemanha é um aliado confiável certamente vai sofrer.
Mas há países da Europa que definitivamente batem certo com a sua descrição, por exemplo a Hungria de Viktor Orbán.
Ele tem estado abertamente a contestar as sanções energéticas contra a Rússia e criou uma exceção para as limitações europeias em relação às importações vindas da Rússia.
Há alguma maneira para a Europa não sofrer de escassez energética num futuro próximo sem o Nord Stream 1? Quão preparada está a Polónia para isso? Ou os países vizinhos?
Se a Rússia de facto parar as entregas através do Nord Stream 1, os peritos dizem que não podemos evitar escassez de gás este inverno, só no próximo ano a situação estabilizará. Muito dependerá também de quão rigoroso será o inverno e da situação económica da Europa, sendo que crescimento ou recessão também ditarão os níveis de procura de gás. Antecipando uma situação difícil, a UE decidiu na última cimeira europeia limitar o seu consumo de gás em 15%.
A Polónia rejeitou a exigência russa de pagar por gás natural em rublos e, como tal, as importações de gás da Rússia para a Polónia foram totalmente cortadas pela Gazprom. O único gás russo que a Polónia atualmente está a importar vem através da Alemanha. A capacidade de armazenamento de gás da Polónia já está esgotada para o inverno, mas a sua capacidade total é bastante pequena e não seria capaz de cobrir mais de um, um mês e meio de consumo no inverno.
A Polónia também abriu o gasoduto do Báltico, um novo gasoduto que vem da Dinamarca e Noruega, mas ainda não há contratos de compra de gás para o encher sequer acima dos 50%. Como tal, a situação é séria e provavelmente será difícil evitar limitações no consumo de gás, especialmente na indústria, sem ter gás natural russo este inverno. Mas essa é a realidade que a maioria dos estados da EU atualmente enfrentam.
A situação na Polónia é agravada pela escassez de carvão, que está com preços recordes. Dado que o carvão é usado para aquecer casas, isso já se tornou um enorme problema social, que pode ter repercussões políticas significativas.
Como se sente quanto à relutância de governos do sul da Europa, como o português, em aceitar as exigências de Bruxelas no setor energético, argumentando que não é culpa sua que o resto da Europa não se tenha livrado da dependência energética da Rússia?
Bem, no sentido politico, claro que é dececionante, dado que a solidariedade deveria ser um dos principais valores base da nossa união. Mas claro, enquanto político posso compreender esta relutância e o raciocínio por trás dele, especialmente sendo que um dos países que está a sofrer mais é a Alemanha, que era um dos mais firmes apoiantes de uma ‘interdependência energética’ com a Rússia. Mas os bem energéticos são globais e a sua escassez vai causar consequências a longo prazo para todos nós, seja para Portugal ou para a Polónia, e o sentimento de ‘schadenfreude’ [alegria com o infortúnio de outros, em alemão] deveria ser abandonado muito rapidamente. Mas a lição desta crise pode dar força e ânimo aos estados menos prósperos do leste e do sul da Europa, mostrando que mesmo países grandes e ricos como a Alemanha não são imunes a más estratégias e decisões. Espero que o interiorizar dessa lição contribua para restringir os egos nacionais e reforçar a EU como um todo.
E o que pensa da tendência de Emmanuel Macron para apelar ao diálogo com o Kremlin?
França tem uma longa história de diálogo com Moscovo, sobre a qual o Presidente Macron tenta construir algo. Por causa desta história, Paris tenta sempre manter-se ativa. Esta atividade não é mal nenhum, até é louvável, se acompanhada com uma abordagem mais ampla para ganhar apoio e consultado o resto da UE e os EUA. Não estou em posição de confirmar se Macron fez um tal esforço para coordenar as suas ações com outros atores de relevo no Ocidente.
No geral, a minha sensação é que Paris, tal como Berlim, sobrestimaram o seu próprio potencial para enfrentar Putin e a situação na Ucrânia. Para Putin, hoje, o que interessa é poder puro, no seu sentido mais básico, e ele vê a Rússia a jogar ao mesmo nível que os EUA e a China. As relações com Paris e Berlim são úteis no seu sentido económico, mas politicamente isso interessa menos à Rússia que as relações com a Turquia e Israel. Por isso, não fiquei surpreendido ao ver Putin bocejar durante conversas com Macron ou Scholz. Por outras palavras, da perspetiva de Putin, Macron pode ser um facilitador ou servir para fazer pressão sobre Zelensky, mas no final de contas não pode oferecer o que Putin queria da Ucrânia. Portanto os seus esforços são em vão, apesar dos mais altruístas objetivos do Presidente francês.
Na sua opinião, há alguma maneira de terminar este conflito que não uma vitória total da Ucrânia? E, nesse caso, quão longe deveriam as forças ucranianas ir? Deveriam tentar tomar todo o Donbass? A Crimeira? Até avançar na Rússia?
Há muitos cenários para o fim da guerra na Ucrânia, que vão até uma vitória total ucraniana ou russa. São todos plausíveis, mas alguns são menos prováveis que outros. A questão importante é o que seria um resultado aceitável para Kiev. Não estou receoso do que seria aceitável para Moscovo, Putin é capaz de mudar o rumo da sua propaganda para apresentar quase qualquer resultado como um sucesso.
Estou seguro de que Kiev irá tentar pelo menos um grande esforço, uma grande ofensiva, para tentar reconquistar territórios no sul, nas regiões de Kherson e Zaporíjia. Estes são territórios recentemente ocupados pela Rússia, com imensa significado económico e político para a Ucrânia, incluindo a maior central nuclear da Europa.
Se eles fossem capazes de o fazer militarmente, obrigar os russos a recuar para a Crimeia e o Donbass, no leste, seria um enorme sucesso e provavelmente o máximo que Kiev poderia conseguir. É difícil imaginar que a Ucrânia fosse capaz de reconquistar militarmente a Crimeia, que foi transformada numa fortaleza russa após 2014. Também não estou convencido de que valesse a pena o custo humano de reconquistar as regiões de Donetsk e Luhansk inteira, mas isso cabe aos ucranianos decidir. Por outras palavras, se os ucranianos, com apoio de armamento ocidental, conseguissem empurrar os russos mais ou menos para as fronteiras de antes de 24 de fevereiro, e o exército russo não conseguisse montar uma contraofensiva, isso poderia criar as condições básicas para um cessar-fogo mais prolongado.
Por outro lado, se a esperada contraofensiva ucraniana falhasse, e Kiev sofresse enormes perdas humanas e materiais sem conseguir os seus objetivos estratégicos no sul, isso também iria criar algumas condições para um cessar-fogo. Mas um acordo de paz mais prolongado, deixando mais de 20% do território ucraniano sob ocupação russa, não seria aceitável para nenhum Governo ucraniano. Infelizmente, estamos muito longe de tempos de paz, e o povo ucraniano terá alguns meses ou até anos muito difíceis pela frente.
Há algum caminho para a paz com Putin no poder?
Sim, há. Não podemos substituir Putin por alguém agradável e geralmente os acordos de paz são assinados com inimigos, não com amigos. Cabe à comunidade internacional garantir que um tal acordo de paz será respeitado e que a futura segurança da Ucrânia é garantida. Não podemos permitir que daqui a uns anos Putin recupere a sua força militar e decida começar uma nova guerra para capturar a Ucrânia inteira.
Ainda assim, vê Putin a sair do poder em breve?
Isso é uma questão a que apenas os cidadãos russos podem responder. Entre os fatores que podem abalar a posição de Putin, a longo prazo, está sobretudo uma profunda crise económica. A curto prazo, seria a necessidade de recrutamento militar obrigatório e os protestos de jovens causados por isto, sobretudo em Moscovo e São Petersburgo. Ou uma rebelião de generais, que percebam que esta guerra não faz sentido e temam ser presos devido à falta de sucesso. Ou talvez até ações de oligarcas próximos de Putin, que estão a perder os seus impérios financeiros.
Não acredito na informação sobre a saúde de Putin estar a colapsar. Ele vai fazer 70 anos e provavelmente está menos saudável do que gostaria de estar, mas mais saudável do que nós gostaríamos que estivesse.