O eco da morte de Fernando Chalana continua a perdurar na batida do coração de cada um que foi, verdadeiramente, seu amigo. O feiticeiro do drible, o poeta do futebol fantasmagórico – porque ele, como um espírito, incorpóreo, parecia atravessar adversários como fantasmas no seu caminho aos ziguezagues, em frente, sempre em frente –, teve uma vida para lá da vida que lhe conhecemos, no Barreiro, na Luz, ultimamente no Seixal.
Era um homem que gostava dos seus lugares e das suas pombas. E que gostava de os ter perto. A antítese do emigrante. E, no entanto, depois do Campeonato da Europa de 1984, foi para Bordéus, envolto no pó de ouro das estrelas e havia um altar à sua espera, logo para ele, imagine-se, para o nosso Fernando que era um rapazinho que não queria crescer, como Peter Pan, obrigado a ser homem muito cedo, ainda imberbe não fora aquela sua barba farta de sabedor dos Evangelhos.
Chalana foi, em França, outro Chalana. Chalaná, como lhe chamavam, repare-se a forma como o seu nome passou a ser agudo, oxítono, dava a sensação que algo estava aí para acontecer, algo que ninguém estava preparado para adivinhar. Repare-se noutro pormenor, insuspeito, mas praticamente premonitório.
O seu nome vem do francês: Chalana – fomos buscá-la ao castelhano, tal como está mas, por sua vez, tem a sua raiz em França, Chaland, onde surgiu vinda da Grécia, Khelándion, um barco de pesca de fundo chato, uma fragata, se quiserem, sempre tem mais a ver com o Tejo e com o Barreiro, onde o Fernando surgiu na face da Terra a 10 de Fevereiro de 1959, já pronto para brincar com a mágica senhora das paixões (a bola) e correr como um menino pela eternidade, para usar as palavras do Torga.
«Chalana n’a jamais été compris par le public français mais a toujours été aimé», diz-me Eric Bielderman, mon pote, camarada de tantas jornadas no futebol e sem ele, o grande jornalista da sua (nossa) geração no L’Équipe e no France Football, que era editor da secção internacional ao mesmo tempo que eu ocupava idêntico lugar em A Bola.
Gilbert Bécaud, Monsieur 100.000 Volts, poderia cantar em memória do Fernando: «Quand il est mort, le poète/Tous ses amis/Tous ses amis/Tous ses amis pleuraient/Quand il est mort le poète/Le monde entier/Le monde entier pleurait/On enterra son étoile/Dans un grand champ/Dans un grand champ de blé». Não, Chalana não foi enterrado num grande campo de trigo onde a brisa despenteia as pétalas da amoreira. Continua a correr e a fintar defesas confusos para sempre dependurado na parede branca da nossa memória.
Que falhou a Chalana em França? A pergunta infiltra-se por entre o nevoeiro de um certo esquecimento. Porque, entre nós, Fernando em França foi como Che Guevara no ano em que esteve em parte nenhuma. Com a diferença que não foram um, foram dois, até ser positivamente resgatado de volta ao Benfica, o clube da sua vida.
«Nunca ninguém conseguiu perceber a presença muito forte da sua mulher, Anabela, e não foi fácil descobrir o seu carácter discreto, sempre humilde. Mas, atenção!, todos adoravam a sua gentileza e a suavidade do seu sorriso. Foi sempre como uma criança para nós, franceses», continua Eric.
O mistério de Chalana
Criança, menino, são expressões que se repetem, em português ou em francês, entretanto traduzido. Deus, um deus qualquer, criou-o para ser criança, para ficar sempre criança, mas abandonou-o a meio do caminho e mandou-o seguir, sozinho ou mal acompanhado, o resto da sua vida, apesar de, no fim dela, ter encontrado na mulher, Cristina, provavelmente o amparo que nunca teve.
A Volta à Gália. Tudo parecia estar no seu lugar. Baixinho (1m65), bigode farto, cabelo longo, geralmente arrumado em cachos atrás das orelhas. Pois… pois… faltava-lhe apenas o capacete com asas. A poção mágica? Caiu nela ao nascer. A poção mágica que lhe permitia, simples mortal (é estranho, só agora, ao escrever, percebo que o Fernando era, de facto mortal, tão mortal que morreu mesmo, à revelia de todas as nossas vontades) fazer coisas que só as personagens de todas as mitologias são capazes de fazer.
Eric Bielderman: «Chalana manteve-se sempre um mistério. Muitas vezes brilhava intensamente mas, noutras, tornava-se transparente. Toda a gente esperava pela sua súbita explosão. Havia aquela expectativa. Tínhamo-lo visto a ser fantástico no Campeonato da Europa, fazia parte da fortíssima equipa do Bordéus de 1984 a 1987. Foi campeão de França. E, no entanto, era como se continuássemos à espera».
«Tranquillité, sérénité, plénitude», dizia a imprensa da Gália sobre o Bordéus campeão em 1985. «Le Récital Girondin!». Chalana estava lá. O treinador era Aimé Jacquet, futuro campeão do mundo em 1998. E havia Giresse, o senhor do meio-campo, Dropsy, guarda-redes, Battiston, o homem que quase foi assassinado por Schumacher no Mundial de Espanha, Jean Tigana, o maratonista, Bernard Lacombe, o elegante, Dieter Müller, o avançado gigante da Alemanha. Praticamente invencíveis dentro do Hexágono. Bela carreira na Taça dos Campeões Europeus: Athletic Bilbao (3-2 e 0-0); Dínamo Bucareste (1-0 e 1-1); Dnipro Dnipropetrovsk (1-1 e 1-1, com desempate por grandes penalidade e Fernando Chalana a marcar o decisivo, com o pé direito, pois claro. «Eles não percebiam», contou-me o próprio Chalana, certa vez, em cavaqueira. «Perguntavam-me – “mas então tu és gaucher (canhoto) e marcas o penalti com o pé direito?” E eu ria-me: “quem vos disse que sou canhoto? Nunca fui. Só treinei tanto o pé esquerdo que para mim já não havia diferença entre um e o outro”».
O Eric recorda-se bem desse momento: «Chalana deixou uma marca na alma de todos os girondinos quando marcou aquele penalti contra Dniepr na Taça dos Campeões, no desempate. Entrou na lenda do Bordéus porque toda a gente achava que ele era esquerdino e, de repente, decide a eliminatória com um pontapé rasteiro e tranquilo feito com o pé direito.
Foi no dia 20 de Março de 1985. Aí sim, de repente Chalana voltou a ser o mágico que levara o Bordéus a pagar por ele uma soma recorde do futebol francês, qualquer coisa como 18 milhões de Francos. De tal modo festejado por todos os seus companheiros, que saltaram em bloco sobre ele, que esteve à beira de perder os sentidos. Em seguida foi como se desaparecesse».
A final, ainda assim, foi sonhada. Seria a segunda final europeia de Chalana depois da que jogou contra o Anderlecht pelo Benfica para a Taça UEFA. Apesar de uma garra que vinha lá do fundo da sua alma girondina, a Juventus foi demasiado forte na meia-final: 0-3 e 2-0. «Não jogou mais do que 18 jogos em três anos de Bordéus para todas as competições. Ganhou a alcunha de O Jogador de Um Milhão. Um por cada partida. Mas ninguém, aqui em França, esquecerá o menino do bigode!» Torga outra vez quando termino dizendo que desejava deitar-se no banco mais comprido que vagasse e pudesse dormir. Em paz…
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