Sinalizando uma vez mais a obsessão com o gigantismo, a Feira do Livro de Lisboa, que arranca hoje, eleva mais uns centímetros a bandeira onde se lê outra vez que esta será “a maior edição de sempre”. Em termos numéricos, o que isto significa é que a 92.ª edição, que permanecerá até 11 de setembro no Parque Eduardo VII, contará com 340 pavilhões (mais 20 que na última edição), distribuídos por 140 participantes (mais 10 que na edição anterior). Até aqui, nada de novo. Mas, perante a necessidade de renovar os expositores, a APEL quis também assinalar um compromisso com a protecção do ambiente, recorrendo a materiais recicláveis e construindo os stands em módulos.
Este novo modelo permite, segundo a APEL, uma reorganização do espaço, com melhoria nas acessibilidades e na mobilidade. A outra novidade é a presença da Ucrânia na feira, como país convidado. “Vamos ter livros em ucraniano, uma série de manifestações culturais que vão desde ilustradores a escritores ucranianos no expositor da Ucrânia, que já estão confirmados”, adiantou Pedro Sobral, o responsável da APEL. De resto, e no essencial, a fórmula mantém-se, e é sem o menor pudor que se publicita também uma orgiástica programação, com dois mil eventos distintos, contando, como habitualmente, com a presença de “autores nacionais e internacionais”.
Nas descrições que por estes dias vão aparecendo na imprensa, não parece gerar qualquer desconcerto este regime de enfartamento que a cada ano nos é tão pomposamente servido. E isto talvez se deva à eficácia desse efeito de colonização que a cultura popular gerou, neutralizando todos os antagonismos a essa “nova mitologia” que, segundo a escritora Dubravka Ugrešić, ajuda os consumidores a digerir a indigesta realidade, e, deste modo, a fazerem as pazes com ela.
É isto o que faz de qualquer denúncia do azucrinante ambiente de festa que tomou conta do comércio dos livros algo que é encarado como uma mera afectação de gente snob. E, no entanto, como sublinhava António Guerreiro numa das suas crónicas, quem visite a actual Feira do Livro e não sinta repulsa pelo populismo editorial dominante, ou tem um enorme poder de atravessar, imune, uma paisagem de destroços, ou perdeu a capacidade de reconhecer a violência que sobre ele é exercida. Aquele é um pasmado e gritante espaço onde os livros são atirados a uma simpática e contente fossa. E, depois de tanta farra, tanto barulho e tanta luz, todo esse espectáculo que parece ter-se tornado necessário para que um livro nos chegue às mãos, a sensação que dá, quando chega a hora de ler, é que se tornou já escuro demais.
É ao leitor que cabe livrar-se dos efeitos nocivos de um culto degradante, este que destina os livros a existências condenadas a um regime de feira permanente. Assim, como assinalava Guerreiro, “aquilo que deveria ser um segundo mercado, o das sobras, é hoje o mercado principal. Os livros circulam por todo o lado – em feiras e entrepostos que dão pelo nome de livrarias – como produtos que sobram. Os que não são produzidos para sobrar, muitas vezes nem chegam a entrar lá. Uns são os excedentes, outros são os supranumerários.” Mas em tudo isto, o que acaba por ser mais revoltante é a inevitabilidade desse populismo dominante em que são os que escrevem, editam e, de alguma forma, fazem parte da cadeia que não concebem sequer que se possa falar de livros sem ser neste untuoso tom celebratório que não hesita em proclamar as suas virtudes e a sua utilidade cultural e social.
Abrindo o livro “A Idade da Pele”, de Dubravka Ugrešić, uma reunião de ensaios editada pela Cavalo de Ferro, e que prima por um registo lúcido e avesso a todas as formas de ênfase espalhafatosa, esta autora nascida no território da ex-Jugoslávia, actual Croácia, começa por nos lembrar que se a literatura parece, hoje, ter os dias contados, a sua enfermidade não se deve à ascendência histórica da vida sobre a literatura, mas antes à “autodestruição da literatura, causada pelo esforço zeloso das mesmíssimas pessoas que impulsionam o processo literário; casas editoriais mercenárias, editores pouco dinâmicos, críticos insípidos, leitores sem ambição e autores desprovidos de talento mas ávidos de fama”.
É um diagnóstico desanimador, na linha de tantos outros, e há até quem se esqueça que é esse o papel da literatura, o de abolir ou rebaixar esse grotesco cor-de-rosa, esse geral tom de optimismo, este monstruoso conto de fadas em que nos forçam a desfigurar o rosto com um sorriso servil. O que nos é publicitado constantemente como matéria dos sonhos desta época não passa da maquilhagem do vazio. Esta Primavera da Cultura, que hoje encontramos por todo o lado, sinaliza a forma como se abandonou a realidade pela ideia, e esta pela ideologia, tendo o homem deslizado, no entender de Cioran, na direcção de um universo derivado, de um mundo de subprodutos postos ao alcance de toda a gente.
“Felizes os crentes desta religião civil do livro, a quem é poupado o espectáculo ora pindérico ora de guerra civil, onde os mais brutos conquistaram o território e os mais delicados andam a mato”, escreve António Guerreiro, adiantando que esta metáfora da guerra estava a tornar-se bastante literal na própria dimensão dos livros: “em Portugal, eles são cada vez maiores, têm uma dimensão demagógica, ameaçadora, para expulsarem a concorrência”. O que alguns livros ainda fornecem é cada vez menos um antídoto e cada vez mais um descaminho, essa força que nos chama para ficarmos a sós, em silêncio, num espaço de consciência removido e livre da coacção deste concurso de elevados princípios mentirosos, os quais se oferecem como um livre-trânsito neste tempo vazio e homogéneo da modernidade.
“Quem habita na sombra é difícil de matar”, lê-se nuns versos de Enzensberger. Mas num mundo em que começa a ser cada vez mais complicado desenvolver uma estratégia duradoura para se livrar das formas de serviço social obrigatório, sair dessa longa fila ininterrupta de mortos, desse túnel de corpos falecendo uns dentro dos outros, um deixando cair sobre o outro as cinzas da sua inanição, não há propriamente uma saída, e começa a tornar-se evidente como se tornou curta a distância entre o inferno e um paraíso desolador. À medida que nos aproximamos da situação em que os géneros literários são absorvidos pelos géneros editoriais, e tudo o que não segue esta regra tem uma existência clandestina, como notava Guerreiro, a relação entre a literatura e a vida joga-se cada vez mais sobre a forma da bisbilhotice.
A este respeito, Ugrešić não hesita em conceder que, no âmago da narrativa literária, está a bisbilhotice. “Todos adoramos saber o que acontece aos outros, até o que comeram ao almoço. De resto, os grandes romances também são grandes apanhados de bisbilhotice.” Nestes ensaios, a autora debruça-se sobre uma miríade de manifestações dentro da actualidade para desencarcerar de entre o seu choque em cadeia uma réstia de sentido para fazer ver como estamos degradados pela herança espectral dos antigos traumas, e como o nacionalismo e as actuais formas de populismo e de violência são respostas desesperadas face à impotência da política para negociar condições de vida humanas frente a um modelo não-social de desempenho maquínico com vista a exponenciar a eficácia produtiva e dos consumos, obrigando a uma suspensão da vida.
Ora, na reflexão com que abre o livro, Ugrešić permite-nos entender que o enfraquecimento da literatura, da nossa capacidade de construir ficções que desdobrem as possibilidades e desenhem uma perspectiva sobre aquilo que, segundo os valores actuais, parece impossível, deriva deste nivelamento do espaço social induzido pela omnipresença dos novos media, à medida que a nossa sede de bisbilhotice descarta a função crítica que a narrativa literária introduz, e ficamos entregues a um espaço de conformação das expectativas, a uma adesão à realidade que conduz à petrificação do mundo, sendo certo que a vida sem utopia depressa se torna irrespirável. À medida que circulam e ganham expressão as mais mirabolantes teorias, sendo as ideologias actuais formas mais ou menos evidentes de abjecção perante as regras sociais a que estamos submetidos, como nos diz Cioran, à excepção de alguns transviados, ninguém adere por inteiro seja ao que for, e vivemos numa sociedade sobrepovoada de dúvidas, uma intriga de suspeitas que atinge o tecido social como um cancro, em que, “indemnes de superstições e de certezas, todos se reclamam da liberdade e ninguém respeita a forma de governo que a defende e a incarna”.
Daí que só subsistam no modelo de consumo que triunfou esses ideais sem conteúdo ou mitos sem substância. E a tentação de ler a própria realidade segundo a chave de uma grande conspiração, a qual se adapta à ingenuidade e ao redundante imaginário de leitores que se contentam com as fórmulas mais degradadas da ficção, multiplica-se através dos novos media. “Os bisbilhoteiros escrevem tweets, mandam mensagens, distribuem gostos, fazem publicações”, escreve Ugrešić. “As redes sociais são o seu habitat natural. A literatura da realidade – aquela que esmiúça ao pormenor a vida privada dos famosos – atingiu o zénite. As primevas hagiografias dos santos, enquanto género, evoluíram para biografias, autobiografias e memórias. Uma vez aguçado o apetite pela bisbilhotice, o difícil é pôr-lhe travão. Hoje em dia, somos todos uns santos. Flagelamos a nossa própria pele, expomos de bom grado os nossos órgãos internos; estamos todos em exibição na montra do talho.”
Ao mesmo tempo, já não basta oferecer um espaço digno, uma selecção abrangente ou criteriosa, vender livros com a naturalidade com que se vendem lâmpadas. Há que entreter o público, criar comunidades no Facebook, lembrar todos os dias que ler transforma qualquer indivíduo banal numa figura muitíssimo distinta. Já não se pode contar com aqueles que entram numa livraria como passageiros anónimos, preferindo manter uma certa reserva. Os livreiros devem ser como agentes da bisbilhotice, estando a par das últimas, e devem ainda acolher os visitantes para uma sessão de recauchutagem dos egos, sejam os clientes também escritores ainda a afinar a pose ideal para desabrocharem ou leitores desses que, nas suas escolhas e recomendações, se assumem como activistas e líderes de tendências.
E, nisto, o livro tornou-se um vale-cheque-prenda-rifa. “Compre um livro e habilite-se a uma vida um nadinha mais vistosa. Venha ao lançamento, conheça o autor, os editores, beba um copo e partilhe essa opinião que está a pensar enfiar nalguma garrafa e atirar às correntes internáuticas. Ficar sozinho em casa é tão deprimente; traga a sua solidão para a rua, esfregue-a na dos outros para aquecer, até dar lume. Que se lixem as livrarias e venha a feira do livro o ano inteiro, com churros, aulas de aeróbica, jogos de futebol, lançamentos, imolações, cenas ao vivo, os autores a correr de doidos para oferecer um livro ao leitor. A puxar a manga: Leia, leia… Deus lhe pague.” No meio de toda esta euforia, apetece regressar ao antigo tráfico de sombras, a esses reinos difusos, labirínticos e, tantas vezes, desconexos – as bibliotecas.
Num dos seus célebres relatos, Borges escreve que, na sua biblioteca, tem livros que enfrenta sabendo que já não poderá lê-los ou, nalguns casos, reler como gostaria. É um sinal também da finitude dos nossos hábitos, dessa vida que defendemos, um aviso que a morte nos vai deixando, essa que, à medida que avançamos, começa a impedir-nos de realizar tantas das coisas que nos prometemos. E nesse sentido uma biblioteca é um espaço que guarda as nossas vidas, mas é também um cemitério, às vezes monumental. A relação que mantemos com os livros deve conter partes iguais de um desejo de desbravamento e uma sensação de angústia, e, a este propósito, vale a pena concluir citando um poema de Joseph Mills, cujo o título é “Se os bibliotecários fossem honestos”.
Ei-lo: “Se os bibliotecários fossem honestos/ não sorririam, nem se mostrariam/ acolhedores. Antes diriam coisas como:/ É melhor que tenhas cuidado. Aqui/ podes cruzar-te com monstros./ Estas divisões abrigam bárbaros/ e hereges, assassinos e/ psicopatas, os delirantes, desesperados/ e os depravados. Eles diriam:/ Estes livros descrevem o que nos faz/ a morte, o desejo e a decadência,/ a traição, o sangue que derramamos/ e aquele que é derramado por isso;/ cada um uma caixa de Pandora, assim/ porque haverias de querer abrir um?/ Eles afixariam sinais/ de perigo avisando que o contacto/ poderia resultar em variações drásticas/ de humor, severas alterações na vista,/ e estados alterados de consciência.// Se os bibliotecários fossem honestos/ admitiriam que as estantes/ podem ser mais sedutoras e/ chocantes do que pornografia. Afinal,/ depois de se ter visto algumas/ mamas, vaginas, e pénis/ mais é simplesmente mais,/ uma banalidade reconfortante,/ mas as prateleiras de uma biblioteca/ contêm novidades assombrosas,/ uma escandalosa e permissiva combinação/ de Malcolm X, Marx, Melville,/ Merwin, Millay, Milton, Morrison,/ e qualquer um pode dar uma espreitadela,/ levá-los para casa ou para algum canto/ e poderá ser sujeito a todo o tipo/ de deboche e impregnado de ideias.// Se os bibliotecários fossem honestos,/ diriam que ninguém passa/ tempo aqui sem acabar por ser/ transformado. Talvez o melhor/ seja ires para casa. Enquanto podes.”