Durante anos fingiu-se crer que a guerra pertencia ao passado, pairando sobre os conflitos dispersos que iam cobrando a taxa da ira humana que nenhuma época é capaz de dissolver. Hoje a guerra está de novo presente, constituindo uma ameaça real do futuro próximo. E pode por isso ser instrutivo quando o passado ressurge, quando nos são devolvidos alguns estilhaços lancinantes, arrancando-o a essa falsa inocência própria da relação desintegrada que se destina aos museus. Por vezes, voltamos a ser atravessados por essa luz sempre mais fraca na alma, pelo frio nos ossos que nos chega através das fendas da História, sinais que restituem a sórdida e imunda infâmia a esses conflitos em que todas as partes envolvidas são derrotadas.
Num momento em que, uma vez mais, começa a parecer-nos plausível que toda a Terra venha a ser destruída numa “explosão enorme, que ninguém ouvirá” (Svevo), das profundezas do Danúbio, o rio que nasce algures na Floresta Negra, atravessa nove países e desagua no Mar Negro, reemergiram nas últimas semanas os enormes destroços de mais de uma vintena de navios alemães da Segunda Guerra Mundial, ficando expostos numa espécie de museu caótico patrocinado por uma seca que deixou à míngua tantos dos principais cursos fluviais europeus, tendo-se registado alguns dos níveis de água mais baixos do último século.
Este museu oferece uma imagem bastante fiel desse efeito de desordem e do rasto de devastação que mantém a sua acidentalidade fortuita e uma cadeia de ecos insanável através das eras. E estes destroços que permanecem no leito do rio há quase oito décadas e só emergem quando o nível da água está extremamente baixo, produzem agora esse cenário espectral no que em tempos foi conhecido como os portões de ferro, “aquela ciclópica zona encerrada do Danúbio, na fronteira entre a Jugoslávia (agora Sérvia) e a Bulgária, marcada por séculos de disputas de fronteiras, exílios, intrigas, espionagem e tráfico de armas e pessoas”. Segundo Claudio Magris, os portões de ferro foram um teatro de intrigas mais ou menos disfarçado entre as pequenas potências locais e as grandes potências que, manipulando-as cinicamente, lutavam pelo domínio do mundo, então divido em dois blocos pelos infames acordos de Ialta: o hemisfério soviético e o ocidental, à sombra dos EUA.
E este verão que se nos impôs como uma ominosa advertência do que nos espera fez os níveis de água diminuir vertiginosamente, causando constrangimentos sérios tanto para o transporte fluvial como para a pesca ao longo do Danúbio, vem também dar-nos uma imagem do passado que parece embaciar com a sua respiração cortada o vidro a partir do qual observamos o futuro. Depois da invasão da Ucrânia em fevereiro pelas tropas russas, o cenário de uma Terceira Guerra Mundial que estaria a ser travada de forma dispersa em várias partes do mundo, tornou-se bem mais palpável. E a enorme divisão nas próprias sociedades ocidentais, torna claro que os sangrentos conflitos que se avizinham não poderão já servir-se de ideais ou de objectivos universais, sendo evidente que, se todos os lados assumem um compromisso com a liberdade e contra a tirania, é evidente como todos esses discursos não passam de manipulações ideológicas. Nos dias que correm, ninguém sabe quem são os aliados e quem são os inimigos. Thomas Mann dizia que os tempos do nazismo eram tempos morais porque, pelo menos, se sabia quem era o inimigo a vencer. Mas não demorou muito para que os aliados se virassem uns aos outros, se recriassem como inimigos, revelando, aliás, que já o eram antes. Nisto, os ideais de liberdade tornaram-se puros instrumentos retóricos.
Hoje, as utopias não passam de maquilhagem para os interesses económicos e geoestratégicos, mas isto permitiu, pelo menos, ajudar a dissolver a sedução da guerra, que sempre produziu uma certa embriaguez, um sentido de iniciação quase mística, permitindo aos homens a possibilidade de respirarem os ares com que se entretece o regime épico da História. Como frisa Magris, “a guerra é épica por excelência; não porque narre gestas heroicas, mas porque, nas suas representações clássicas, se baseia num sentido de totalidade que compreende e transcende o indivíduo e imagina a vida enquanto unidade na qual as dilacerações individuais se compõem, como os naufrágios e as tempestades na totalidade do mar”.
Ora, voltando às águas do Danúbio, esse ribeiro universal que, segundo a lenda, nasce de uma torneira, o clima escaldante que se tem verificado este verão, está a permitir vislumbrar antigos vestígios, acicatando um renovado interesse por relíquias que, nalguns casos, remontam não só a décadas mas milhares de anos, revelando esse museu de sedimentos que começa a vir à tona à medida que os níveis de água caem em rios por toda a Europa.
Além dos navios de guerra que eram parte da frota do Mar Negro da Alemanha nazi e que foram afundados aquando da retirada, em 1944, para evitar que caíssem nas mãos do exército soviético, o assombroso inventário que tem vindo a reemergir conta também com as fundações de uma ponte romana com cerca de dois mil anos que ficaram expostas no Tibre. Em Espanha, o dólmen de Guadalperal, um monumento megalítico com quatro a cinco milénios, e que é muitas vezes comparado a Stonehenge, ficou a descoberto nas águas a oeste de Madrid. Semanas antes, uma vila espanhola, que havia sido abandonada e submersa quando os reservatórios artificiais foram construídos na década de 1960, voltou a reemergir. E em julho, pescadores encontraram uma bomba de 450 quilos no rio Po, na Itália.
Por todo o continente, a pressão climática levou a que se sucedessem ondas de calor e temperaturas extremas que estão a gerar uma série de efeitos em cadeia, desde logo prejudicando as colheitas e fragilizando a capacidade da Europa de conseguir gerar energia a partir de recursos naturais, o que vem agravar ainda mais os problemas num momento de crise energética. Assim, a produção de energia hidroelétrica na Noruega ficou seriamente comprometida e os reactores nucleares na França estão em risco. Na Grã-Bretanha, foi proibido o uso de mangueiras no exterior depois de Inglaterra ter registado em julho o mês mais seco desde 1935. Na Espanha, várias cidades da Andaluzia restringiram também o uso de água. Na Alemanha, os ambientalistas estão preocupados que lagos e rios secos no centro do país ameacem a sobrevivência de peixes e outros animais selvagens.
O que também reemergiu em vários rios por todo o continente nas últimas semanas foram as chamadas rochas da fome. Tratam-se de pedras onde foram feitas gravuras ao longo dos tempos sempre que os níveis de água regrediam e as populações locais se comiseravam reconhecendo que o ano seguinte seria muito difícil por causa das fracas colheitas. Um exemplo amplamente divulgado foi o de uma rocha que reemergiu no rio Elba, perto da cidade de Děčín, na República Checa, e que já em 2018 tinha ficado exposta. A inscrição, que parece ter sido gravada em 1616, diz: “Se me vir aparecer, chore”.
A par do processo planetário que ameaça desenraizar cada indivíduo do seu mundo e dos seus laços fundamentais, com o ciclo noticioso que participa numa cultura popular global que, com a sua infinidade de distracções, tem provocado uma desagregação da consciência e da nossa capacidade de produzir essa narrativa que distingue os acontecimentos decisivos daqueles que são meramente acessórios, estes destroços dos navios nazis, além do efeito evocativo da sua espiral de fragmentaridade, a presença de alguns pormenores do passado que voltam a passear como vagabundos entre nós, representa não só uma visitação do passado, mas um perigo sério, um efeito de circularidade na história recente, uma vez que se encontram ali cerca de 10 mil peças de munições não detonadas, segundo as estimativas das autoridades sérvias, que admitem que o custo da remoção dos navios e munições poderá rondar os 30 milhões de euros. À Reuters, Velimir Trajilovic, um aposentado local que escreveu um livro sobre os navios alemães, lembrou que “a flotilha alemã deixou para trás um grande desastre ecológico” que constitui uma séria ameaça para quem vive nas redondezas. Isto significa que hoje estamos a viver uma época em que tudo o que parecia sepultado, toda essa morte que destinamos aos museus, volta a reemergir para actuar como uma gangrena sobre o futuro. Isto significa que vivemos uma época que pouca margem nos oferece para imaginar um devir livre da imunda infâmia do nosso passado. E se Kierkegarrd lembrava que a vida só pode ser compreendida quando se olha para trás, embora deve ser vivida olhando para a frente – ou seja, para alguma coisa que não existe –, a grande sensação de perda que intimamente nos envenena talvez se prenda com a impossibilidade actual de nos libertarmos do pesadelo da História.
Voltando ao “romance submerso” de Claudio Magris, a essa esplendorosa reportagem em que um homem faz uma viagem através do tempo revisitando tantos episódios que definiram a tumultuosa “civilização danubiana”, a certa altura este magnífico cicerone europeu deixa-nos uma reflexão fundamental sobre a natureza do tempo na relação sentimental com ele estabelecemos e que nos permite perceber o desfasamento em que vivemos hoje e até essa incapacidade de apreender o carácter de urgência e de perigo existencial que enfrentamos actualmente. “Vivemos como contemporâneos acontecimentos ocorridos há muitos anos ou décadas, e sentem-se como longínquos, definitivamente apagados, factos e sentimentos de há apenas um mês. O tempo diminui, alonga-se, contrai-se, concentra-se em nós, a tal ponto que parece possível tocá-lo com a mão, ou desfaz-se como bancos de névoa que se diluem e desvanecem no nada; é como se tivesse muitos carris, que se cruzam e afastam, e sobre os quais ele corre em direcções diferentes e contrárias.” Assim, este verão, os eventos que se desenrolaram em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, que parecem para muitos hoje já desvanecidos no passado, voltaram a estar presentes, a revisitar-nos como assombrações incertas. Só nos damos conta da feição calamitosa de um determinado, dos abalos profundos que levam a nossa percepção da realidade a alterar-se subitamente muito depois destes terem ocorrido, quando finalmente a História recupera o fôlego, conferindo a um acontecimento o seu alcance e o seu papel. “Recordando a derrocada búlgara, acontecimento decisivo para o desfecho da Primeira Guerra Mundial e portanto para o fim de uma civilização, o conde Károlyi escreve que, enquanto o vivia, não dera conta da sua importância, porque «nesse momento, ‘esse momento’ não se transformara ainda ‘nesse momento’. Também para Fabricio del Dongo a batalha de Waterloo, enquanto ele a está a travar, ainda não existe”. E Magris remata esta reflexão notando que “no puro presente, que é por outro lado a única dimensão em que se vive, não há História; não existe em instante algum o fascismo ou a Revolução de Outubro, porque nessa fracção mínima existe apenas a boca que engole a saliva, um gesto da mão, um olhar que poisa na janela.”