A camisola de Don Alfredo

Se o Benfica, embora sem êxito, tinha apontado alto nas suas ambições, o Sporting não podia ficar atrás tendo o então presidente João Rocha marcado, como objetivo, a contratação de Di Stefano ao que, com o seu prestígio, considerava a pessoa ideal para estimular o plantel e elevar o futebol do clube ao mais nível.

Por Manuel Pereira Ramos – jornalista

Provavelmente influenciados pelos ares revolucionários chegados dois meses antes à sociedade portuguesa, os presidentes dos dois grandes clubes de Lisboa, Benfica e Sporting, devem ter pensado, no Verão de 1974, que as mudanças também deviam chegar ao futebol e, o primeiro passo para que isso fosse possível, seria o de ir buscar, lá fora, treinadores de renome. O Benfica lembrou-se, nada menos, que de Miguel Muñoz que, após 14 anos seguidos como técnico de enorme sucesso do Real Madrid, foi despedido por Santiago Bernabéu que entendeu que tanto tempo já era suficiente. Miguel Muñoz viajou a Lisboa, esteve com o presidente Borges Coutinho e o diretor de futebol Romão Martins e, no regresso, contou-me na sua casa de Madrid que gostara muito do projeto, que tinham ficado de lhe dar uma resposta, mas não confiava muito em que pudesse haver acordo. O problema residia nos honorários, era Manuel Pereira Ramosnatural que Miguel Muñoz quisesse manter o nível de retribuição igual ou parecido ao que tinha no Real Madrid, mas isso, para o Benfica, era praticamente impossível e não houve outro remédio que desistir da ideia. A seguinte opção foi a de Miljan Miljanic, chegou-se a um entendimento, mas ele acabou por dar o dito por não dito e aceitar o convite de Bernabéu para treinar o Real Madrid. Finalmente o escolhido foi Milorad Pavic que só esteve um ano na equipa benfiquista, mas ganhou o campeonato.

Se o Benfica, embora sem êxito, tinha apontado alto nas suas ambições, o Sporting não podia ficar atrás tendo o então presidente João Rocha marcado, como objetivo, a contratação de Di Stefano ao que, com o seu prestígio, considerava a pessoa ideal para estimular o plantel e elevar o futebol do clube ao mais nível. João Rocha e Yazalde foram a Benidorm e aí, conseguiram convencer a Di Stéfano que deixou as férias a meio para ir para Lisboa tomar conta da equipa. A chegada do “Saeta Rubia” despertou um enorme entusiasmo que não tardaria em transformar-se numa desilusão de grandes dimensões. Durante a pré-temporada as coisas não correram bem, a digressão ao Brasil foi pouco menos que desastrosa, nos jogos amigáveis no Algarve a equipa também não convenceu, no balneário havia divisão de opiniões sobre o técnico que também já andava com a candeia às avessas com o presidente e a derrota no primeiro jogo do campeonato frente ao Olhanense foi decisiva para um despedimento mais que anunciado e que pôs fim a uma fugaz passagem de pouco mais de dois meses pelo Sporting, possivelmente ignorada por muitos dos mais jovens adeptos sportinguistas. No mesmo dia em que terminou a sua aventura portuguesa, Di Stéfano voltou a Madrid, à sus espera estávamos dois ou três jornalistas aos que não escondeu a sua enorme desilusão, para ele o grande culpado do fiasco tinha sido João Rocha, visivelmente agastado e fora de si acusou-o de tudo e mais alguma coisa, menos bonito e simpático chamou tudo o que quis ao presidente leonino, o que podia ter sido uma bonita história acabou em descalabro.

Depois dessa frustrante experiência, Alfredo Di Sféfano prosseguiu a sua carreira de treinador, teve alguns êxitos nos vários clubes por onde passou entre eles, por duas vezes, pelo Real Madrid, na primeira bateu um ‘record’ negativo ao perder as cinco competições em que a equipa participou e na segunda proporcionou o aparecimento da maravilhosa geração de jogadores conhecia pela ‘Quinta del Buitre’. No ano 2000 Florentino Pérez tomou conta do clube, uma das suas iniciais decisões foi a de recuperar a Di Stéfano para a causa nomeando-o presidente honorário e, no seu primeiro ato, ambos fizeram a apresentação de Luis Figo como novo jogador do Real Madrid.

Onze anos mais tarde, esteve na entrega da Bota de Ouro a Cristiano Ronaldo, uma cerimónia num hotel de Madrid e à que também assistiu Eusébio, ver sentados na mesma mesa a três tão enormes figuras deu para imaginar o impacto que teria havido na história do futebol se tivessem pertencido à mesma geração e podido jogar juntos. Sala cheia e entre os assistentes, a família de Cristiano, Indira, Florentino Pérez e uma multidão de jornalistas, todos riram a bandeiras despregadas quando, a pedido meu que dirigia a sessão, Eusébio contou a história da camisola de Di Stéfano na final de Amesterdão: “Ele era o meu ídolo, sobre a Taça dos Campeões não sabia muito nem estava demasiado interessado, o que queria era a sua camisola, eu era um miúdo, só tinha 20 anos e, com a ajuda do Coluna, no final do jogo fui ter com ele e pedi-lhe: Don Alfredo, por favor, dê-me a sua camisola. Tirou-a, agradeci-lhe mil vezes, fiquei com ela, mas com medo de a perder com a invasão do publico, metia-a no slip e aí ficou escondida e a salvo até que tudo terminou, era o meu grande troféu”. Ao longo da vida, os dois construíram uma boa amizade, admiravam-se mutuamente e, com apenas seis meses de diferença um do outro, ambos nos deixaram no mesmo ano de 2014.

Certo como estava de que ele teria imensas coisas para contar tentei, ao longo dos anos que o conheci, fazer uma longa entrevista a Di Stéfano, quando nos víamos falávamos informalmente, mas, por um motivo ou por outro, ela sempre ficava adiada. Via que o tempo ia passando, que a sua saúde se ia depauperando, era uma corrida contrarrelógio porque, sobretudo, não queria que me viesse a suceder o mesmo que com o que fora secretário geral do Partido Comunista Espanhol, Santiago Carrillo. Com ele tinha tudo combinado para o encontro, sabia como teria de proceder para poder entrar na sua casa, mas fui adiando uns dias a ida com a má sorte de que, nesse intervalo, ele teve um enfarte, morreu e fiquei sem resposta ás muitas perguntas que tinha para lhe fazer. Conselho amigo aos jovens jornalistas: Nunca deixem para amanhã a entrevista que podem fazer hoje.

Nos seus últimos anos, na vida de Di Stéfano entrou Gina, uma rapariga muito mais jovem que ele, foi a sua chefe de imprensa, depois secretária, namorada e quase chegou a esposa. Como era ela quem mandava pedi-lhe para me conseguir a entrevista, dizia-me que sim, mas pagando, começou por pedir 1.500 Euros, depois baixou para 1.000, mas sempre me neguei a dar fosse o que fosse. Ele, de certeza, que não sabia nada disto, apaixonado como estava não se apercebia do casamento por interesse que, com Florentino Pérez como padrinho, ela planeava. Quem sim viram a tramoia foram os filhos que lograram que a incapacidade do pai fosse judicialmente reconhecida e eles tidos como únicos herdeiros o que provocou que a que quase chegou a ser a sua madrasta tenha regressado a Costa Rica e nunca mais se tenha sabido nada dela. Os filhos que tanto desvelo tomaram conta do pai até ao fim, sim consentiram que eu fosse a casa fazer a entrevista, os problemas físicos eram evidentes, mas a cabeça funcionava, estava lá tudo e, entre muitas coisas, até recordava a cerrada marcação que, num jogo da Taça Latina, lhe tinha feito o Zezinho do Benfica. Foi a última entrevista dada a um jornalista por Alfredo Di Stéfano antes de nos deixar poucas semanas depois, uma honra com certo sabor a tristeza, de estar na minha mão teria preferido mil vezes que ele tivesse continuado a viver desfrutando da família, dos amigos e dos triunfos que já não viu do Real Madrid, o grande amor da sua vida.