“Que minoria é mais pequena e mais fraca que uma minoria de um?”, questionava Salman Rushdie num dos ensaios com que respondeu à terrível polémica que se seguiu à publicação do seu romance Os Versículos Satânicos. “Para muitas pessoas, deixei de ser um ser humano. Tornei-me um assunto, um aborrecimento, um ‘caso’.”
E justificando as suas tantas reservas em deixar-se dominar pela ameaça à sua vida, notava que “bolhas à prova de bala, como esta, são também à prova de realidade. Aqueles que nelas viajam, tais como os que usam os anéis de Tolkien de invisibilidade, transformam-se em figuras espectrais, se não tomam cuidado. Perdem-se. Neste espaço de fantasmas, um homem pode transformar-se na bolha que o encerra, e um dia – plop! – vai-se para sempre.”
Até aqui era difícil imaginar o sofrimento e os constrangimentos a que o escritor britânico de origem muçulmana indiana viveu sujeito nas últimas décadas, isto depois de ter corrido a notícia, no passado dia 12 de Agosto, de que fora esfaqueado repetidamente quando se preparava para participar numa palestra no norte do estado de Nova Iorque sobre a importância de os EUA oferecerem asilo aos escritores perseguidos e exilados.
Depois de algumas pessoas na audiência terem saltado para o palco travando a agressão, Rushdie foi levado para um hospital em Erie, na Pensilvânia, e submetido a uma operação de urgência, permanecendo algumas horas ligado a um ventilador. O seu agente, Andrew Wylie, deu como certo que iria perder a visão de um olho e que tinha ainda “nervos danificados num dos braços, bem como danos sérios no fígado”. Entretanto, terá recuperado a consciência e as últimas notícias dão conta de que está fora de perigo.
Antes, Rushdie era um símbolo de audácia e de ambição artística, alguém que ousara desafiar o mais temível dos tabus contemporâneos, e se não podia imaginar a hecatombe e as devastadoras consequências que se seguiriam, não o fez ingenuamente. E se fez os possíveis para amenizar as tensões, nunca recuou covardemente nem abdicou das suas convicções.
O ayatollah Ruhollah Khomeini morreu em junho de 1989, alguns meses depois de emitir a mais célebre fatwa das últimas décadas, ordenando o assassinato de Salman Rushdie e de qualquer outra pessoa envolvida na publicação do seu romance Os Versículos Satânicos. As fatwas são um instrumento decisivo na forma como, em volta dos líderes religiosos iranianos, persiste um temor reverencial anacrónico e que associamos às punições medievais, quando a tensão entre o mundo espiritual e a vida terrena era o conflito essencial.
Afinal, para encontrarmos uma analogia na nossa história, temos de recuar às bulas de excomunhão a que os papas católicos medievais e renascentistas recorriam para manter na linha os governantes seculares e todos aqueles que, como Martinho Lutero, desafiavam a doutrina teológica da Igreja. Entende-se o prestígio de que gozam estes líderes e os seus editais, os quais não podem ser rescindidos postumamente, e que levam os seus devotos a provar a sua lealdade através de actos brutais.
É uma espécie de terrífico feitiço que se exerce por contraponto com a dissolução de todas as crenças no mundo globalizado, onde as religiões, particularmente no Ocidente, degeneraram numa espécie de folclore nostálgico, perdendo terreno para a “civilização do consumo” e os anseios aspiracionais que esta excita.
De um lado do mundo, o fervor religioso leva alguns a cometerem actos monstruosos para alcançarem a beatitude, do outro, tudo o que dizia respeito à vida do espírito hoje vê-se refém desses negócios de catering para a alma, esses bufês de espiritualidades, com terapias e workshops ministrados por gurus e curandeiros que prometem sempre resultados. Face a isto, o carácter intempestivo da fatwa de Khomeini que, 33 anos depois de ser emitida, levou um homem que, na altura, nem era nascido, a tentar pôr fim à vida de Rushdie não pode deixar de nos provocar um sentimento que balança entre o temor e o fascínio.
No ano que se seguiu à imposição da fatwa, não só esta foi reafirmada pelo Irão, como o dinheiro do prémio em troca da cabeça de Rushdie foi duplicado, deu-se o ataque contra o tradutor italiano do livro, que ficou gravemente ferido, ao passo que o tradutor japonês, Hitoshi Igarashi, foi apunhalado até à morte, e depois ia-se sabendo das tentativas para localizar o escritor por parte de assassinos contratados e que trabalhavam directamente para o governo iraniano através das suas embaixadas.
Naqueles meses, houve manifestações e distúrbios violentos em vários países, atentados à bomba em livrarias tendo os distúrbios, ao todo, provocado a morte de umas 45 pessoas. Rushdie viu-se obrigado a viver a década seguinte na clandestinidade, uma experiência que o fez sentir-se progressivamente alienado, incapaz de manter alguma estrutura na sua vida pessoal, e passando por momentos de absoluto desespero que viria a relatar e confrontar no seu livro de memórias de 2012, “Joseph Anton”.
Desde então, obstinou-se em regressar à vida pública, e ia ao ponto de insistir que, no caso de haver segurança nos eventos em que participava, esta não estivesse visível. Ele era o primeiro a reconhecer que fora transformado num peão num complexo enredo em que as questões teológicas são secundárias face às jogadas políticas, e à forma como esta perseguição exemplar serviu a agenda de uma série de grupos fundamentalistas, não apenas no Irão, mas também na Índia e no Paquistão, e até em Inglaterra.
Os Versículos Satânicos, que desde o ataque voltou a estar nas listas dos livros mais vendidos em Inglaterra, é um romance cujo enredo é difícil de reduzir a uma sinopse, pela complexidade de uma obra que, em parte, se assume como um ajuste de contas de um homem secular com o espírito religioso, fazendo-se valer da natureza híbrida do género e balançando entre o realismo mágico e uma comédia desaforada sobre o valor relativo do sagrado e do profano, sobre as qualidades da pureza e da mistura, e se as suas sugestões e provocações são encadeadas no campo onírico, em certos momentos transforma-se numa sátira feroz que não poupa os seus alvos.
O líder supremo do Irão é parodiado como um imã que se tornou uma figura de tal modo monstruosa que engole a sua própria revolução. Mas nesta alegoria em que Rushdie ridiculariza alguns aspectos da “santidade” da fé islâmica, e representa Maomé a uma luz mundana, há uma dispersão de sentidos que permite ao leitor dar-se conta das peças de um imenso puzzle, uma autêntica manta de retalhos de factos históricos e interpretações teológicas que assim podem ser recombinadas para que se perceba como se constroem as grandes narrativas. E aquilo de que Rushdie sempre se queixou foi por toda a disputa à volta do seu livro ter acabado por contorná-lo, retirando episódios e fragmentos do seu contexto, as falas das personagens, distorcendo a relação entre as partes.
Rushdie assume a sua oposição e discórdia das ortodoxias impostas aos muçulmanos por certas elites que querem ver o fim do debate de ideias e das transformações sociais que possam pôr em causa o seu poder, mas lembra que essa sua discordância está muito longe de “insultos e abusos”. Ele vinca que nem seria isso o que podia incendiar os ânimos dos muçulmanos. E, por isso, é que foi necessário distorcer o seu livro nos vários panfletos que foram distribuídos aos fiéis.
O que é típico dos fanáticos que procuram manipular os ânimos é que produzam essas imagens grotescas que permitem diabolizar um homem, ou seja, fazer dele a encarnação do espírito de malignidade que actua difusamente e consegue provocar uma terrível frustração em seres que buscam incessantemente e de forma desesperada religar-se a um todo.
Entretanto, forçado a actuar como advogado em causa própria, isto quando mesmo aqueles que diziam apoiá-lo, num ou noutro aspecto, acabavam por o entregar às feras, responsabilizando-o pela maldição que caiu sobre ele, Rushdie foi buscar forças à noção de que integrava uma linhagem crucial de escritores que assumiram riscos heroicos para garantirem que hoje tantos possam gozar livremente do direito de dizer o que pensam sobre assuntos religiosos e políticos, autores como Solzhenitsyn, Joyce, Wilde, Voltaire ou Dante.
E, em muitos momentos, Rushdie surgiu praticamente isolado, uma presença instigadora num momento em que o espaço literário se vê sufocado por uma insidiosa forma de censura que, a coberto de valores progressistas retardadamente optimistas, criou um novo regime de vigilância, os tais leitores sensíveis da indústria editorial, que servem de barreira ao diálogo entre proscritos e danados, vindo com quotas imbecis e metas identitárias reguladas por algoritmos que forçam os leitores a observar a forma mais imbecil da ficção, que é aquela que impede um homem de conter em si a vastidão da experiência humana.
E é neste contexto que o testemunho de um absoluto bastardo como Rushdie se torna um farol à medida que esta forma de idealismo delirante arregimenta um exército de pedantes moralistas para erguer uma nova forma de obscurantismo e isolar-nos a todos nas celas de ferro das aparências.
“Eu nasci indiano, e não apenas indiano, mas indiano de Bombaim – a mais cosmopolita, a mais híbrida, a mais misturada das cidades indianas. A minha escrita e pensamento foram, portanto, tão profundamente influenciados pelos mitos e atitudes hindus como pelos muçulmanos. Nem o Ocidente se encontra ausente de Bombaim. Eu já era um mestiço, um bastardo da história, antes de Londres ter agravado essa condição.”
Tendo-se batido sempre pela necessidade de desenvolver o conceito nascente do “muçulmano secular”, que, tal como os judeus seculares, afirma a sua adesão à cultura ao mesmo tempo que se mantinha separado da teologia, Rushdie lembra que o secularismo, para a Índia, não é simplesmente um ponto de vista, mas que se trata de uma questão de sobrevivência.
“Se fosse permitido que o que os indianos chamam ‘comunalismo’ e política religiosa sectária tomassem controlo do governo, os resultados seriam demasiado horrendos de imaginar.” De resto, é por ser especialmente sensível a estas diferenças que tanto criam a complexa e fina tapeçaria das gigantescas e babélicas metrópoles actuais como Bombaim, que, no ano que se seguiu à fatwa, Rushdie endossou esforços no sentido de “fazer a minha paz com o islão, mesmo à custa do meu orgulho”.
“Aqueles que ficaram surpreendidos e descontentes com o que eu fiz talvez não consigam entender que não sou um qualquer escarumba desenraizado. Para essas pessoas, é aparentemente incompreensível que eu tentasse fazer as pazes entre as duas metades do mundo em conflito, que eram também as duas metades em conflito na minha alma -e que tentasse fazê-lo num espírito de humildade, em vez da arrogância de que tão frequentemente me acusam.” Mas se o escritor lamentou publicamente o facto do seu romance ter ofendido as pessoas, e se insistiu que essa nunca foi a sua intenção, ao contrário do que tem sido repetido, “nunca neguei o livro nem me arrependi de o ter escrito”.
Rushdie fez questão ainda de explicar o óbvio, e algo que escapa quase sempre a quem não tem por hábito ler romances nem faz sequer uma pálida ideia dos princípios em que assenta uma já robusta tradição de questionamento da realidade, fazendo ver como esta assenta numa articulação narrativa de uma série de convenções e ideias feitas que não diferem muito de preconceitos e estereótipos, competindo à literatura examinar e desafiá-los.
Assim, ele explicou que “os escritores não concordam com todas as palavras proferidas por todas as personagens que criam”, registando ainda que, tratando-se isto de uma evidência no mundo dos livros, persiste como um permanente mistério para os oponentes de Os Versículos Satânicos. “A ficção usa os factos como pontos de partida e depois afasta-se, em espiral, para explorar as suas verdadeiras preocupações, que são apenas tangencialmente históricas.”
Por outro lado, se Rushdie nunca deixou de reconhecer que a história e a cultura do islão tiveram para ele um significado mais profundo do que qualquer outra das grandes narrativas, ao mesmo tempo sempre recusou a linha de acusações que faziam dele um apóstata, sublinhando que em nenhum momento assumiu ser um homem de fé, e que, apesar de estar imbuído dos valores daquela cultura, sempre defendeu o seu ateísmo e uma postura crítica face aos postulados islâmicos.
“É óbvio que não és um místico, e quando escreveste Não sou um muçulmano era isso exactamente que querias dizer. Para ti nada de sobrenaturalismo, ortodoxias literais ou regras formais. Mas o islão não tem de significar, necessariamente, fé cega. Pode significar o que sempre significou na tua família: uma cultura, uma civilização, por mais liberal que fosse o teu avô, por mais controverso que fosse o teu pai, por mais intelectual e filosófico que tu sejas. Não deixes que os fanáticos façam de muçulmano uma palavra aterradora, implorei a mim mesmo: lembra-te quando essa palavra significava família e luz.”
Por outro lado, o escritor reconhece que a certa altura chegou a entreter a “fantasia” de se aliar à luta pela modernização do pensamento muçulmano, e pela sua libertação das “correntes da Polícia do Pensamento”. “Dou por mim também contra as certezas graníticas e cruéis do Islão Actualmente Existente, designação pela qual me refiro à estrutura política e eclesiástica de poder que presentemente domina e abafa as sociedades muçulmanas. (…) Encarando a absoluta intransigência e o desprezo filisteu de grande parte do Islão Actualmente Existente, concluí, relutantemente, que não havia forma de eu ajudar a nascer a cultura muçulmana com que sonhei. A cultura progressista, irreverente, céptica, argumentativa, divertida e temerária que foi o que sempre entendi por liberdade. Eu não, não nesta vida, não havia qualquer hipótese. O Islão Actualmente Existente, que acima de tudo deificou o seu profeta, um homem que sempre lutou apaixonadamente contra essa deificação; que transformou uma religião livre de padres numa por eles governada; que faz da literalidade uma arma e das redescrições um crime, nunca admitirá as minhas preferências.”
Este esvaziamento da interioridade em benefício dos sinais exteriores, este esgotamento do conteúdo pela forma, permite configurar tudo como situações morais de modo a que se possa jogar o plano da confissão segundo os princípios sociais da paixão, e, por essa razão, hoje, certas religiões assumem os contornos de uma verdadeira Comédia Humana, reforçando esses signos algo grotescos da fatalidade, do justiceirismo, da crueldade refinada, do sentido do “cá se fazem cá se pagam”.
Nenhuma efabulação resiste a isto, nenhum sentido mais profundo, a própria nuance torna-se um obstáculo à pura inteligibilidade dos factos que devem ser publicitados e entrar logo nas narrativas modelares que recorrem aos arquétipos e a todo o tipo de estereótipos para construir as suas ficções típicas ou representativas. Em sentido contrário, Rushdie frisa que “a vivacidade da literatura reside na sua excepcionalidade, em ser a visão individual e idiossincrática de um ser humano, na qual, para nosso prazer e grande surpresa, podemos talvez encontrar a nossa própria imagem reflectida”. Um livro, adianta ele, “é uma versão do mundo”.
Tendo sempre lamentado que Os Versículos Satânicos tenham sido alvo de uma campanha para o afastar da sua genealogia enquanto obra de ficção, sendo acusado de “sujidade”, de “insulto” e “abuso”. Rushdie admite que pretendeu “a disputa, a divergência e, por vezes mesmo, a sátira, a crítica da intolerância”, mas lamenta que a grotesca polémica que envolveu a publicação do seu quarto romance tenha, no fundo, garantido que nenhum leitor chegaria a ela sem o acosso da polémica a dirigir ou envenenar o seu juízo em relação à obra.
De resto, V.S. Naipaul, outro autor que nunca hesitou em escrever e dizer coisas que caíam mal a muita gente, classificou a fatwa de Khomeini “como a mais extrema forma de crítica literária”, e isto que, na altura, pareceu uma piada macabra à custa da situação desoladora que se abateu sobre Rushdie, os seus editores e todos aqueles que defenderam o seu livro, não deixa de assinalar a crescente tendência para fazer remontar a palavra e a sua capacidade de fixar um entendimento do mundo e dos acontecimentos ou, também, contestá-lo, a um poder que não pode ser exercido livremente pelos indivíduos, mas, tal como a interpretação dos textos sagrados, devem ser ciosamente preservados contra as profanações.
E são cada vez mais aqueles que entendem que deve haver uma escola de zeladores, de sacerdotes e pontífices que assegurem a manutenção de certos conteúdos invioláveis. Ao contrário do que se pensa, não estamos assim tão longe daquelas primeiras sociedades que manusearam a escrita e que a consideravam uma criação sobrenatural, atribuindo-a, cada uma delas, ao seu deus ou herói fundador.
Para os mistificadores que se vêem como líderes espirituais e vigários de uma qualquer divindade na Terra, o poder de fazer manipular a linguagem, essa forma de determinar quais os trilhos que o pensamento deve seguir, funciona como uma mágica e deve, portanto, estar reservada a uns poucos, pois de outro modo o temor reverencial que inspira vai-se diluindo até perder a sua força.
O problema é que, nos nossos dias, estes sectários são a linha da frente do filistinismo contemporâneo, seitas de falsos letrados que desprezam a exactidão da linguagem e da escrita, e que as utilizam de forma aviltante, reduzindo tudo a parábolas mesquinhas, mas são tão mais perigosos do que os analfabetos porque são contagiosos, e na sua distorção do sentido, espalham esse cheiro pútrido de ideias que, sendo tão frágeis, contendo uma articulação de tal modo grotesca, se mostram incapazes de aceitar qualquer desafio, e têm de se impor de forma categórica, com as suas leis e dogmas, e exigir a cabeça de quem quer que procure refutá-las.
No fundo, estes líderes tirânicos esquecem que a posse da língua é essencial no nosso esforço de interpretação e busca do real, para tentarmos discernir a verdade, indo além das aparências, e isto ameaça a sua relação autoritária, o seu regime possessivo sobre a linguagem, mas também a vulgaridade de uma retórica que só sabe valer-se de gestos excessivos, explorados até ao paroxismo da sua significação. “Aí onde quer que estejas, no rico, poderoso e afortunado Ocidente, terá passado assim tanto tempo desde que as religiões perseguiram os povos, queimando-os como hereges, afogando-as como bruxas, que já não conseguis reconhecer a perseguição religioso quando a vedes?”, questiona Rushdie.
E depois vinca, para quem ainda não percebeu, que “a liberdade de pensamento é precisamente uma liberdade do controlo religioso e de acusações de blasfémia”. Ou seja, a integridade do espírito reside nessa zona secreta, nessa relação funda com as suas crenças e valores, e que não pode estar sujeita à vigilância dos outros, nem aos ditames que vigoram numa dada época, nem à tenebrosa teia moralista que entretecem aqueles que pretendem dominar os anseios e paixões dos homens.
Assim, Rushdie denuncia um ponto de vista a que foi dada voz “por charlatães e bispos, por fundamentalistas e por John le Carré, segundo o qual eu sabia exactamente o que fazia. Eu deveria saber o que ia acontecer; como tal, fi-lo propositadamente para tirar partido da notoriedade daí resultante (…) Ele fê-lo de propósito é das acusações mais estranhas jamais imputadas a um escritor. É óbvio que o fiz de propósito. A questão é, e foi a isso que tentei responder: o que foi esse ‘o’ que eu fiz?” E aqui Rushdie exprime o aspecto mais infame dessa devastadora teia que o envolveu, em que, quanto mais se esforça por refutar as falsificações e por demonstrar que os seus acusadores estão a falar de um livro que ele nunca escreveu, mais se acha emaranhado, e parece corresponder à imagem que dele fizeram, “retratando-me como egomaníaco, insolente, ganancioso, hipócrita e desleal”, e ainda “irascível” e “paranóico”.
E descreve esta lógica louca e invertida do mundo pós-fatwa, dizendo que se sente “como se tivesse mergulhado, como a Alice, no país para lá do espelho, onde o disparate é o único sentido existente. E pergunto-me se alguma vez conseguirei regressar através do espelho.” E noutro momento destes ensaios em que tenta lavar essa mancha indecente, essa diabólica letra escarlate que o fizeram envergar, serve-se ainda de metáforas e analogias para tentar resgatar a sua humanidade.
“Dou por mim a pensar em Jodie Foster no papel que lhe valeu um Óscar em Os Acusados. Mesmo que eu admitisse (e não o admito) que o que fiz em Os Versículos Satânicos foi o equivalente literário à exibição desavergonhada frente aos olhares de homens excitados, seria essa admissão justificação para ser, por assim dizer, violentado por um grupo? Será a provocação uma justificação para a violação?” Ora, esta tentativa de se defender torna-se um exemplo angustiante do propósito que a literatura deve cumprir, nesse confronto do um contra todos, e com a consciência de que o ruído e a aviltante prosa do mundo ameaçam a odisseia, a experiência concreta e irredutível do indivíduo.
E se não é difícil assinalar os casos de alguns escritores mais talentosos do que Salman Rushdie, é muito difícil encontrar alguém que, nas lamentáveis circunstâncias que passaram a dominar a sua vida, tenha exemplificado como mártir e como um exemplo de espantosa insubordinação a sua crença nos poderes da literatura, desta agência de advocacia que se bate pelas causam perdidas, por aqueles de nós que se tornam no alvo de uma comunidade inteira, vendo-se transformados no “bode expiatório de todos os seus desapontamentos”, e que mesmo assim não capitulam, não desarmam, antes reafirmam a literatura como a única arma suficientemente afiada ao dispor da inteligência contra a tirania das massas.
“Talvez concordem também que a celeuma em torno de Os Versículos Satânicos foi, no fundo, uma disputa sobre quem deverá deter o poder sobre a grande narrativa, a História do islão, e que esse poder deve pertencer igualmente a todos. Que, mesmo que o meu romance fosse incompetente, ainda assim a sua tentativa de recontar a História seria importante. Que se eu tivesse fracassado, outros deveriam ter êxito, pois aqueles que não têm poder de a recontar, repensar, desconstruí-la, brincar com ela e transformá-la à medida que os tempos se vão transformando, são na verdade impotentes pois não conseguem pensar novos pensamentos.” Assim, e num mundo que cada vez mais ergue as suas ideologias contra a própria realidade, a literatura funciona como contrassenha, uma disciplina da suspeição e um antídoto contra a intoxicação pela fé, contra a usurpação do mundo e das faculdades de expansão do intelecto por essas ficções tão opressivas quanto imbecis. A grande literatura é uma insistência até às últimas consequências na forma como a linguagem e a lucidez cultivam o carácter, é, portanto, uma autêntica escola de hereges.
“‘São as nossas vidas que nos ensinam quem somos’. Aprendi à minha custa que quando permitimos que a descrição da realidade de outrem se sobreponha à nossa – e tenho sido bombardeado com tais descrições, de conselheiros de segurança, governos, jornalistas, arcebispos, amigos, inimigos, teólogos muçulmanos – mais vale morrermos. É evidente que uma visão do mundo rígida, tacanha e absolutista é a mais fácil de manter; pelo contrário, a imagem fluida, incerta e metamórfica que sempre defendi é bastante mais vulnerável. Todavia, tenho de me agarrar com todas as forças a esse camaleão, a essa quimera, a esse ser metamórfico – a minha alma.
Devo manter-me fiel a esses instintos irrequietos, iconoclastas e desfasados, por mais avassaladora que seja a tempestade. E se isso me mergulhar em contradição e paradoxo pois que assim seja; toda a minha vida vivi nesse oceano confuso. Pesquei nele para a minha arte. Este mar turbulento era o mar que avistava da janela do meu quarto em Bombaim. É o mar pelo qual nasci, e que transporto comigo para onde quer que vá.
‘A liberdade da palavra é uma ideia descabida’, afirma um dos meus oponentes extremistas islâmicos. Não, senhor, não é. A liberdade da palavra é tudo, é todo o jogo. A liberdade da palavra é a própria vida.”