Grijó de Vale Benfeito era apenas uma das muitas pequenas e pobres aldeias transmontanas que pintavam o cenário do nordeste português em 1922. Lá, no entanto, a 6 de setembro desse mesmo ano, nascia um homem que viria a tornar-se num dos nomes mais incontornáveis da política portuguesa. Adriano Moreira cumpriu esta semana 100 anos e, no âmbito deste marco, vale a pena recordar uma vida cheia de altos e baixos, e de atividade política e académica intensa.
«O Professor Adriano Moreira é um português no superlativo. Representa o melhor de Portugal em muitos tempos diferentes, é o Homem completo em todas as dimensões, o exemplo que podemos exaltar em vida, o Pai que os filhos veneram, o Professor que os alunos consideram», descreve Nuno Melo, presidente do CDS-PP, ao Nascer do SOL. Adriano Moreira liderou os centristas durante um breve período, entre 1986 e 1988, mas nem por isso o seu contributo para a democracia foi pequeno. Afinal de contas, além da presidência do CDS-PP, Adriano Moreira foi deputado à Assembleia da República entre 1979 e 1991, sentando-se no lugar de vice-presidente da mesma entre 1991 e 1995. Mais, o transmontano que chegou a Lisboa ainda bebé, vivendo praticamente toda a sua vida na capital sem esquecer as suas origens, teve assento no Conselho de Estado até 2019, ano em que celebrou o seu 97.º aniversário. «Além das suas intervenções [no Conselho de Estado], feitas sempre numa lógica muito estruturante e estratégica, de um pensador, nos contactos pessoais que essas reuniões proporcionaram, Adriano Moreira era – e é – uma pessoa encantadora», considera Luís Marques Mendes, comentador, antigo presidente do PSD e membro do Conselho de Estado. «É uma pessoa muito humana, um belo conversador e um excelente contador de histórias. É um homem que tem uma experiência de vida fantástica. Adriano Moreira aplicava tudo isso nas relações. É uma pessoa fascinante», acrescenta o comentador político, dividindo a sua descrição do antigo ministro do Ultramar em mais três planos, para lá do seu papel como conselheiro de Estado: plano político, intelectual e de intervenção cívica.
«Além da sua componente política e académica, de intelectual, Adriano Moreira continuava a ter, até há pouquíssimo tempo, com 90 e tal anos, intervenção cívica permanente. Nos artigos de opinião na imprensa, em conferências vastas, em várias partes do país, debates, intervenções em várias instituições culturais e científicas do país… não é normal também uma pessoa já com esta idade ter uma intervenção cívica intensíssima», argumenta.
Marques Mendes também não hesita em reconhecer a Adriano Moreira «um pensamento muito sólido, mas, ao mesmo tempo, sempre com um grau grande de abertura a outras correntes de pensamento e de diálogo com outros setores de opinião diferentes do dele». A título de exemplo, o antigo líder do PSD evoca a relação entre Adriano Moreira e a sua filha, a socialista Isabel Moreira, «em que ele sublinhava o orgulho que tinha em ter uma filha que tinha, como ele, convicções, mas que eram diametralmente opostas das deles». E_prossegue: «É uma outra marca que ele deixa, de uma pessoa que, tendo um espírito forte e convicções muito acentuadas, dialogava, respeitava e convivia muito bem com ideias diferentes. Essa é outra característica que também não é vulgar». Marques Mendes, realçando também o impacto no plano político que Adriano Moreira teve: «Adriano Moreira passou por dois regimes com intervenção política bastante forte em ambos, de uma forma sempre em alta. Não é normal, é até muito invulgar, haver uma pessoa com funções de enorme responsabilidade, quer num regime, quer num outro radicalmente diferente. Ainda no plano político – e isto aconteceu sempre – foi uma personalidade sempre muito respeitada, concordando-se ou discordando-se das suas ideias ou das suas posições. Foi sempre uma pessoa muito respeitada, à esquerda e à direita».
Marques Mendes não esquece a vertente intelectual de Adriano Moreira, que se licenciou em Direito, pela Universidade de Lisboa, em 1944, sendo também doutorado na mesma área, pela Universidade Complutense de Madrid, bem como pelo Instituto Superior de Ciências e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, com a tese ‘O Problema Prisional do Ultramar’, um dos seus principais trabalhos académicos, que lhe valeu o Prémio Abílio Lopes do Rego da Academia das Ciências de Lisboa.
«Este homem suscitou sempre um clima de grande admiração, uma vez mais à esquerda e à direita nas várias correntes de pensamento e de opinião, por ter um pensamento muito sólido e estruturado, muito consistente. Mais do que isso, por ser um pensamento que, normalmente, estava um bocadinho para além da espuma dos dias e tinha uma visão estratégica», considera Marques Mendes, relembrando algumas das críticas que lhe eram feitas: «Por exemplo, quando era líder do CDS-PP, segundo alguns, seriam porque descuidava o dia a dia, a conjuntura, o imediato, e tinha normalmente discursos muito estruturantes, estratégicos, numa perspetiva mais de médio a longo prazo. Do ponto de vista intelectual, eu acho que isso é uma coisa marcante. É um intelectual de grande relevo».
Adriano Moreira conta 100 anos de idade e com eles uma lista quase infindável de cargos, posições, intervenções e debates, tanto durante o Estado Novo como em Democracia. Foi sob o regime de Salazar, aliás, que o advogado se tornou no protagonista do primeiro pedido de habeas corpus de que há registo em Portugal. Na mesma altura, acabou por passar cerca de dois meses na prisão do Aljube, onde conheceu Mário Soares, de quem se tornou grande amigo – apesar das diferenças ideológicas que os separavam. Mais tarde, mesmo assim, Salazar chamá-lo-ia para ministro do Ultramar, pouco depois dos massacres registados no Norte de Angola e do denominado golpe de Botelho Moniz. Ficou apenas dois anos no cargo, entre 1961 e 1963. Foi o suficiente, no entanto, para levar a cabo várias importantes mudanças na administração das antigas Colónias, entre elas a abolição do indigenato, o alargamento da cidadania, a possibilidade de todos os portugueses entrarem, se fixarem e circularem em todas as parcelas do território nacional angolano, a publicação de um Código de Trabalho Rural, a criação de escolas de magistério primário e até o arranque dos Estudos Gerais Universitários, tanto em Angola como em Moçambique.
«Celebrar 100 anos do Professor Adriano Moreira é celebrar uma vida feliz, como confessou em entrevista. Uma vida cheia de trabalho, de serviço, de pensamento, de visão geopolítica, de livros, de páginas distintas da história recente de Portugal, na Universidade, nas Nações Unidas, no Governo, na Assembleia da República, no CDS, meu partido, nosso partido, de que nunca quis sair, que nunca abandonou», congratula-se Nuno Melo. O_antigo ministro do Ultramar foi mesmo uma das razões maiores que pesaram na sua adesão ao CDS. «Fui ‘adrianista’ – num velho jargão dos partidos – antes de outra coisa qualquer. Filiei-me em cima de um resultado que a precipitação do comentário político começou por julgar menos feliz, mas que medido por gente ímpar que dizem cabia num táxi, se transformou num dos melhores grupos parlamentares com que o meu partido já contou. Aliás, que falta nos fariam nestes dias singulares e difíceis», contou o líder centrista.
Mundividência
Ao professor Adriano Moreira, quem também desejou «parabéns nestes seus 100 anos de vida» e um «muito obrigado» foi António Bagão Félix, antigo ministro das Finanças, que admite nunca ter tido uma relação de «grande proximidade pessoal», mas, ainda assim, referindo a «felicidade de se cruzar em tempos de política e em outros fora com o professor centenário». «O que representa para mim e em mim Adriano Moreira? Uma pessoa íntegra e inteira, um humanista inabalável, um cidadão exemplar, um professor brilhante, um mestre na criação e na partilha do conhecimento, uma inesgotável fonte de experiência e de saber, uma mundividência visionária e esclarecida, um acervo intelectual brilhante e ecléctico, um espírito independente e desassossegado», declara. O antigo ministro da Segurança Social garante ter sempre visto Adriano Moreira como «um pensador de espírito aberto, que sabe conjugar sabiamente a fortaleza das suas convicções com o respeito pela diferença».
Bagão Félix reconhece «a rigorosa expressão de um genuíno e desinteressado sentido de serviço público de Adriano Moreira, através do qual a sua palavra e a sua acção têm atravessado muitas gerações e têm transportado sempre o código da esperança como tensão do espírito e alimento da alma», . Em resposta por escrito ao Nascer do SOL, Bagão Félix deixa ainda uma crítica, não a Adriano Moreira mas sim ao país, considerando ser uma «pena» que nem sempre Portugal «lhe tenha proporcionado condições para que o seu pensamento e a sua obra sejam mais aproveitados, em grande parte pela enviesada e preconceituosa separação entre ‘ser de direita’ ou ‘ser de esquerda’».
Em jeito de conclusão, Bagão Félix, também ele ligado ao CDS-PP, classifica Adriano Moreira como «uma pessoa superior porque a sua exigência para os outros sempre foi precedida da exigência para consigo mesmo», que «soube, como poucos, conjugar, em plenitude, o ideário democrata-cristão, a doutrina social da Igreja, o sentido reformista, a visão personalista e a defesa dos valores essenciais da vida».
Portugal em 1922
Adriano Moreira é uma das poucas pessoas em Portugal que viu, ao longo de toda a sua vida, o país mudar praticamente por completo. É um século inteiro de vida, e um século inteiro de grandes mudanças neste país que, quando o antigo conselheiro de Estado nasceu, se encontrava ainda a dar os primeiros passos de uma tumultuosa República. A monarquia caíra apenas 12 anos antes, e vivia-se em pleno caos político. No dia do seu nascimento, aliás, o país era governado já pelo 35.º Governo republicano, pouco mais de uma década depois da instauração do novo regime, o que refletia a grande instabilidade dos primeiros Executivos.
Em termos sociais, Portugal era um país maioritariamente pobre e analfabeto, ainda mais em Trás-os-Montes, região que viu nascer Adriano Moreira. Grijó era «mais uma dessas aldeias de casas de pedra e barro quase sempre sem caiamento, com varandas de madeira que alargavam a área de intervenção das mulheres e um piso térreo albergando animais que, por acréscimo, forneciam ‘o calor interior da habitação’», conforme se pode ler no texto dedicado ao professor catedrático disponível no sítio oficial na Internet da Biblioteca a que dá o nome. «As famílias ‘mais abonadas’ tinham uma ‘modesta leira’ junto ao rio, procuravam nas colinas reter uma outra leira para a vinha e, na serra, uma ‘parcela de floresta’ para terem lenha no Inverno. Por seu turno, ‘uma pequena nobreza não coroada espraiava-se pelas chamadas casas grandes’, desfrutando de ‘uma qualidade de vida modesta e de alguma ocasional reverência’», continua o mesmo texto, citando o livro A Espuma do tempo – Memória do Tempo de Vésperas, da autoria do próprio Adriano Moreira. «Em relação aos benefícios, ‘qualquer atenção parecia uma benesse inesperada’, até porque quase nada existia: nem água nas casas, nem electricidade, nem saneamento básico, nem rede escolar capaz de atender às ‘necessidades sentidas ou que, coisa mais desejável em regiões adormecidas, agredisse a passividade e fomentasse as exigências’. Deste ‘círculo pesado da vida rural’ saía-se para a emigração (durante décadas, o Brasil) ou para a ‘cidade grande’, consequência sobretudo da ‘prestação do serviço militar que trazia o conhecimento da vida diferente, que despertava a vontade de emigrar, estabelecendo também uma cadeia familiar de chamadas’», pode-se ler no mesmo texto, que oferece um vislumbre do que seria a Grijó de 1922.
Um ano tão longínquo que, recorde-se, ficou marcado pela conclusão da primeira travessia aérea do Atlântico Sul, ligando Lisboa ao Rio de Janeiro, pelas mãos de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Foi também um ano em que, fruto do ‘boom’ do desporto organizado em Portugal, se fundaram vários clubes que se mantêm até aos nossos dias, como o Sport Clube Beira-Mar (Aveiro), o Vitória Sport Clube (Guimarães), o União Desportiva Oliveirense (Oliveira de Azeméis) e vários outros. E mais: foi o ano que viu o Futebol Clube do Porto vencer o seu primeiro título de campeão nacional, após bater o Sporting na finalíssima de temporada 1921-22, no antigo Campo do Bessa.