A contraofensiva da Ucrânia no sudeste de Kharkiv surpreendeu o Kremlin, semeando a confusão entre forças russas, que começaram desordenadamente a bater em retirada de Izium, aponta o mais recente relatório do Instituto para o Estudo da Guerra. É que, de um momento para o outro, a guarnição desta cidade – porta de entrada para o oeste do Donbass, talvez a mais importante base de apoio logístico russa na região – deixou de estar a uma distância relativamente confortável da linha da frente, temendo um cerco.
Kiev finalmente conseguiu a iniciativa na guerra, enganando Moscovo ao ameaçar com um grande contraofensiva em Kherson, no sul. Levando os invasores a enviar reforços vindos do leste para esta cidade estratégica, enquanto as forças ucranianas discretamente se preparavam para avançar em Izium, a mais de 500 km de distância.
Apesar deste conflito se ter tornado uma guerra de atrito ao longo dos últimos meses, o exército ucraniano conseguiu penetrar a linha da frente russa, chegando a uma profundidade de mais de 70 km. Estima-se que tenha recuperado uns três mil quilómetros quadrados de território numa questão de dias, mais do que os russos conseguiram conquistar desde abril.
Talvez mais importante ainda, Kiev tem divulgado imagens das suas tropas a entrar em Kupiansk, a norte de Izium, cortando uma estrada e linha ferroviária essencial para o abastecimento dos russos. Declarando ter reconquistando a aldeia de Velikiy Burluk, este sábado, a meros 15 km da sua fronteira com a Rússia.
A justificação do Governo de Vladimir Putin foi muito semelhante à dada para a catastrófica retirada dos arredores de Kiev e do norte da Ucrânia. Explicando que as suas forças saíram de Izium meramente para “reagrupar”, retirando do sudeste de Kharkiv para concentrar esforços no oblast – uma divisão administrativa equivalente aos nossos distritos – de Donetsk. No entanto, apesar da repressão de vozes críticas, começam a ouvir-se vozes críticas mesmo no seio da liderança russa.
“Foram cometidos erros”, declarou Ramzan Kadyrov, o temido senhor da guerra que Putin colocou à frente da Chechénia, que sempre se afirmou o mais leal seguidor do Presidente. “Se hoje ou amanhã não forem feitas mudanças na estratégia, vou ser forçado a falar com a liderança”, assegurou Kadyrov no Telegram, reagindo às notícias da retirada em Izium. “Pode não ser simpático quando dizes a alguém a verdade na cara, mas eu gosto de dizer a verdade”.
Já o ministro da Defesa ucraniano, Oleksii Reznikov, assegurou que a contraofensiva a sudeste de Kharkiv correu ainda “melhor do que o esperado”. Em vez do habitual lento avanço russo, graças a bombardeamentos massivos de artilharia contra trincheiras ucranianas, ou destruindo cidades quarteirão a quarteirão, a Ucrânia lançou um ataque relâmpago. Recorreu a concentrações de forças mecanizadas, com apoio de grandes quantidades de defesas antiaéreas, impedindo a aviação russa de travar o contra-ataque.
No entanto, há o risco das forças ucranianas se estenderem demais e ficarem expostas a um contra-ataque. Depois de reconquistar tanto território, “tens de controlá-lo e estar pronto a defendê-lo”, ressalvou Reznikov, em entrevista ao Financial Times. Garantindo que a moral russa sofreu um choque enorme, chegando o Kremlin recorrer a cerca de 1200 tropas chechenas de Kadyrov, conhecidas pela sua brutalidade, para policiar a linha da frente e evitar deserções
Afinal, a contraofensiva a sudeste de Kharkiv não só apanhou o Kremlin desprevenido – ao longo das últimas semanas, a Radio Free Europe obteve imagens que mostravam forças russas a ser transferidas na direção contrária, para sul, através da Ponte do Estreito de Kerch, que liga a Rússia à Crimeia – como até “surpreendeu alguns ucranianos”, notou Orla Guerin, correspondente da BBC.
“Tudo isto é catártico para os ucranianos e tranquilizador para os seus apoiantes ocidentais”, considerou Guerin. São notícias que chegam em ótima hora para Kiev, que temia que um impasse desgastasse o apetite da NATO em oferecer apoia militar e financeiramente. Tendo o primeiro-ministro da Ucrânia, Denys Shmyhal, pedido fundos de emergência no equivalente a uns 17 mil milhões de euros, este domingo, para reparar a infraestruturas ucranianas, de maneira a enfrentar as baixas temperaturas do inverno.
Fintas ucranianas Para conseguir surpreender a Rússia, a Ucrânia dedicou-se a uma extensiva operação de desinformação. Foi lançando ataques em Kherson – alguns deles com custos humanos enormes, tendo o Washington Post descrito um enorme influxo de tropas ucranianas feridas ou até mutiladas nos hospitais do sul – e até reconquistando algumas aldeias nos arredores da cidade, enquanto impedia a ida de jornalistas para a linha da frente, para impedir que fosse percetível que as suas forças afinal estavam a ser concentradas noutro lado.
Ao mesmo tempo, as secretas ucranianas conduziam uma caça aos informadores russos no oblast de Kharkiv, impedindo-os de avisar os invasores que muito do mais moderno equipamento vindo da NATO estava a ser enviado para a região, descreveu uma fonte militar da Ucrânia ao Guardian. Os informadores “foram quase completamente limpos, eram sobretudo civis ucranianos normais, mas também alguns agentes russos à paisana”, explicou. “Os russos não faziam ideia do que estava a acontecer”.
Já os militares ucranianos desfrutavam de uma visão bastante límpida do que esperar, muito graças ao apoio de secretas ocidentais, seja através de redes de espiões ou imagens de satélite.
Kiev tem tido “informação quase minuto a minuto, 24/7, a ser-lhes entregue pela enorme capacidade global americana, dando-lhes uma ideia muito clara sobre o que os russos andam a fazer”, frisou Paul Rogers, professor de estudos da paz na Universidade de Bradford e consultor de segurança global do Oxford Research Group, à conversa no podcast do jornalista Owen Jones. “Suspeito que as secretas ucranianas podem saber o que algumas unidades russas vão fazer antes delas próprias saberem”, rematou Rogers.
Contudo, não é por a Ucrânia de momento ter vantagem que uma vitória total se aproxima, avalia. “Não há qualquer hipótese de a Ucrânia ser derrotada agora, tanto quanto é imaginável, porque mesmo que enfrentasse enormes dificuldades, a NATO simplesmente aumentaria a sua atuação”, ressalvou este analista. “Por outro lado, a Rússia, nas mãos de alguém como Putin, tem sempre a opção de ameaçar escalar com o uso de armas nucleares táticas”.