Uma rua do Cais do Sodré passou a ter de recolher às 23h. O que mudou num mês?

Os estabelecimentos da rua de São Paulo, em Lisboa, passaram a ter de recolher as suas esplanadas às 23h. A medida, defendia a Junta de Freguesia da Misericórdia, pretende devolver o sossego à população. Agora, um mês depois, há opiniões diversas.

Por José Miguel Pires e Daniela Soares Ferreira

Uma visita ao Cais do Sodré dá para perceber que o ruído maior é feito pelos clientes que ficam no exterior dos bares, além dos ajuntamentos no Largo de São Paulo e na rua cor de Rosa. A Rua de São Paulo é mesmo uma das mais tranquilas, mas a junta assim não o entende. E, não por acaso, decidiu fechar algumas ruas onde as esplanadas podiam, de acordo com as respetivas licenças, estar abertas até depois da meia-noite. 

Desde o início de agosto que, por ordens da Junta de Freguesia da Misericórdia, em Lisboa, as esplanadas têm de estar encerradas entre as 23h e as 8h na rua de São Paulo, Largo Conde Barão e rua da Boavista.

Eram muitas as críticas sobre o barulho no Cais do Sodré em várias ruas e vários espaços. Lixo nas ruas ou barulho até altas horas de madrugada e venda de droga são algumas das queixas dos moradores, a quem ‘poluição sonora’ está a deixar os cabelos em pé e, garantem os mesmos, está bem pior que no início da pandemia. Melhor agora?

O i presenciou a ‘hora de fecho’ das esplanadas na rua de São Paulo, no passado sábado, para perceber, um mês depois, quais eram as reações e os ‘balanços’ desta medida, sendo as opiniões dos clientes e moradores variadas. Nádia, turista neerlandesa de visita em Lisboa, nem sequer estava a par da hora de fecho da esplanada onde se encontrava. Trata-se de uma medida que “provavelmente vai ajudar um bocado” com a questão do barulho, admite. Ainda assim, “vai continuar a haver gente aqui na rua”, augura ao i, questionando se a medida será efetivamente eficaz ou não. 

A seguir ao fecho da esplanada, não se mostrou desapontada ou com vontade de ir para casa, confessando que provavelmente a noite continuaria noutro sítio das ruas do Cais do Sodré, essas sim, com luz verde para manter as esplanadas abertas até às 2 da manhã. Junto da turista neerlandesa estava Inês, portuguesa, defensora de que, mesmo com o fecho das esplanadas, “as pessoas vão continuar por aqui, até porque os bares em si não fecham, e as pessoas gostam sempre de vir cá fora, nem que seja para fumar”. Por isso, argumentou, “não parece que a medida vá surtir grande efeito”.

Um pouco mais abaixo na Rua de São Paulo, e à medida que o relógio se aproximava das 23h, os empregados iam fazendo as ‘last calls’ de quem se encontrava no espaço exterior, levando, pouco a pouco, os clientes a levantar-se e decidir entre ficar no interior dos estabelecimentos ou partir rumo a outros locais. Não se veem desacatos ou resiliência por parte de quem tem de decidir o que fazer depois da hora de recolher, alguns continuando a noite dentro dos mesmos bares, outros abandonando em direção à movimentada rua Cor de Rosa. 

Manuela, brasileira residente precisamente na zona da Misericórdia, confessa ao i que, mesmo com o fecho das esplanadas na rua de São Paulo às 23h, “não se sente assim tanta diferença, porque nas restantes ruas continua tudo aberto”. Também para ela o plano era, após o fecho da esplanada, ir para outro local nas imediações. 

Quando o relógio estava próximo da meia-noite, foi possível notar que, mesmo com as esplanadas já recolhidas, a diferença no barulho era pouca ou nenhuma, encontrando-se vários grupos reunidos na via pública, e principalmente no largo de São Paulo, onde, apesar de a música ao vivo que costuma marcar este espaço ter sido ‘fechada’ às 23h, as esplanadas se mantinham, bem como os grupos de pessoas que lá se reuniam.

Junta rejeita críticas O i tentou perceber junto da Junta de Freguesia da Misericórdia o porquê desta decisão. “A abertura de novos estabelecimentos de restauração e bebidas na Rua de São Paulo aumentou de forma intensiva, alterando de modo significativo a dinâmica local e da envolvente mais próxima, levando uma grande concentração de pessoas até à hora de encerramento dos estabelecimentos, situação esta que colide com o direito ao repouso dos habitantes da zona e às normais condições de habitabilidade nesta rua”, começa por explicar a Junta de Freguesia liderada por Carla Madeira (PS).

E garante ainda que esta medida não é exclusiva a esta rua, uma vez que “todos os planos de ordenamento de esplanadas efetuados a partir de 2020 têm esta particularidade”. “Deste modo, a medida já foi anteriormente implementada em outras ruas da freguesia, como a Rua da Silva, a Travessa dos Mastros e a Travessa dos Pescadores e Travessa do Cotovelo”, garante. “De salientar que após a implementação da medida nestas artérias, houve uma melhoria significativa da qualidade de vida dos moradores e uma saudável convivência entre a função residencial e a função económica nas mesmas”.

Questionada sobre que queixas têm recebido dos moradores, a Junta de Freguesia diz que “existem queixas genéricas, acerca do Cais do Sodré sem particularizar artérias, e existem queixas específicas sobre a Rua de São Paulo”.

E o que é específico na Rua de São Paulo, que acaba por ser a única rua do Cais do Sodré abrangida pela regra? Segundo a junta de freguesia, os moradores do eixo da rua de São Paulo apresentam “várias queixas diárias de ruído tanto a nível individual, como através da Associação de Moradores “Aqui mora gente”.

A maioria das queixas incidem no barulho de arrastamento de mobiliário urbano de esplanada de madrugada e de ajuntamentos em zona de esplanada, como também no barulho excessivo dos bares que, pelo regulamento municipal de horários, são obrigados a estar de porta fechada a partir das 23h, regra que não está a ser cumprida.

Garantindo que a junta não pode atuar em matéria de fiscalização de ruído excessivo dos bares, uma vez que esta é uma competência da Câmara Municipal de Lisboa e da Polícia Municipal, a freguesia da Misericórdia implementou o que diz estar ao seu alcance e dentro das suas competências “de forma a minimizar o impacto do ruído. Poderíamos ter sido mais rigorosos, suspendendo totalmente a licença de esplanada dos estabelecimentos sobre os quais temos queixas, contudo, e porque sabemos do impacto negativo que alguns comerciantes tiveram durante a pandemia, optámos pela redução do horário”, argumenta ainda ao i, sublinhando que o Cais do Sodré não é todo igual, separando a rua de S. Paulo da zona de discotecas. “Se por um lado temos a zona da frente ribeirinha, que no âmbito do Regulamento de Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de Venda ao Público e de Prestação de Serviços pode estar a funcionar até mais tarde, ou a Rua Nova do Carvalho que tem um plano específico”, por outro lado “temos uma área residencial que envolve todo o eixo da Rua de São Paulo até ao Conde Barão onde são necessárias regras para que exista uma saudável convivência entre moradores, que têm direito ao descanso, e comerciantes que ali estabeleceram o seu negócio e que devem respeitar os residentes”.

O i tentou ainda perceber se os ajuntamentos no Largo de São Paulo provocam mais ruído que as esplanadas na mesma rua. E a junta esclareceu que no Largo de São Paulo, os ajuntamentos são “na maioria das vezes motivados pela venda ilegal de álcool, são de facto uma agravante no aumento do ruído. Contudo, e dado tratar-se de um problema de segurança pública, a junta de freguesia não tem competências de atuação nessa matéria”. Aqui, garante que tem reunido e articulado com a Polícia de Segurança Pública e com a Polícia Municipal, “entidades competentes em matéria de manutenção de ordem pública e de fiscalização da venda ilegal de álcool, por forma a solicitar a sua intervenção nesta matéria”. Mas o certo é que tudo continua na mesma.