A Organização Mundial de Saúde anuncia que o fim da pandemia está à vista, mas que não é altura de baixar a guarda: vacinar grupos vulneráveis antes do inverno, incluindo profissionais de saúde idosos, pode evitar mais mortes, disrupção e incerteza. Gustavo Tato Borges, presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública, fala das expectativas para os próximos meses e defende cuidados a ter no regresso às aulas, desta vez sem medidas covid-19 nas escolas. Defende que o isolamento de cinco dias deve continuar a ser respeitado, assim como o uso de máscara quando se vai à escola e trabalhar e se esteve em contacto com alguém infetado. Faltam orientações? Falta sobretudo sensibilização depois de um verão em que a guarda baixou no geral, o que a repetir-se nos meses de mais infeções respiratórias pode trazer “dissabores”, diz. Em dia de aniversário do Serviço Nacional de Saúde – criado oficialmente a 15 de setembro de 1979 –, aponta prioridades para o novo ministro da Saúde e fala de problemas estruturais que têm sido pouco discutidos, da falta de meios na Direção Geral da Saúde ao papel da linha SNS24 para lá da pandemia.
As aulas estão a começar sem medidas para a covid-19. O que esperar nas próximas semanas? Vemos por exemplo casos de crianças a testar positivo ainda durante as férias, depois de festas.
Estamos com uma situação epidemiológica muito tranquila em termos de mortalidade e internamentos, portanto nesta fase diria que é normal e aceitável não haver nenhuma medida específica para as escolas, até porque não existe uma medida específica para lado nenhum a não ser para os lares e unidades de saúde, onde à partida estão efetivamente as pessoas mais vulneráveis. É natural e compreensível que o ano letivo comece sem nenhuma medida, mas isso não quer dizer que os pais e os alunos devam negligenciar ou esquecer-se de que esta doença e esta pandemia ainda continuam a existir e que ainda podem trazer algum dissabor.
Parece-lhe que existe essa sensibilização ou que se atingiu um ponto de cansaço em relação à covid-19 e medidas de proteção?
Aquilo que acabamos por sentir, não só nós médicos de saúde pública mas os profissionais de saúde em geral, é que há uma boa parte da população que considera que a covid-19 já não é um problema. Que esta variante é muito ligeira e que não temos de nos preocupar com esta doença. Não é bem assim por isso temos de continuar a passar a informação de que esta é uma doença que pode causar mortes e que por isso precisamos de ter alguns cuidados. É importante que se perceba que não se pretende instalar o alarme ou o pânico, mas que as pessoas estejam atentas a si e aos seus familiares diretos para que possam agir o mais depressa possível. Até à pandemia as doenças respiratórias virais foram sempre encaradas como doenças secundárias, sem grandes problemas.
Benignas.
Sim, mas todos os invernos tinham um elevado impacto e contribuem para o aumento da mortalidade. Sabendo isto e que continuamos a ter além dessas doenças a covid-19, temos de minimizar a nossa possibilidade de sermos transmissores destas doenças e adequar comportamentos, pensando nos mais vulneráveis. Isto não quer dizer deixar de fazer a nossa vida ou de conviver, mas estar um pouco mais atentos para evitar sermos veículos de transmissão. Isto quer dizer que embora não haja medidas, por exemplo nas escolas os pais, no caso das crianças, e os professores devem estar atentos à sua saúde e dos seus familiares diretos para que se alguém inicia sintomas de doença respiratória possam ser minimizados os riscos de haver surtos. Se tem sintomas deve fazer o teste e se estiver positivo não deve ir à escola. Se tem alguém doente em casa, um familiar direto com sintomas respiratórias, mesmo que vá trabalhar ou vá à escola, deve por exemplo usar máscara. No caso das crianças, que sabemos que vão brincar mais próximas, e se têm a mãe, o pai ou outro familiar direto com covid-19 ou gripe, articular com a escola para que possa ficar em tele-ensino se isso for possível. Não vai ser por uns dias que há problemas de maior.
Isto saindo de um período de verão em que, com ou sem sintomas, se fez uma vida normal. É possível voltar a esse cuidado?
É verdade. Estamos a sair de um período de verão em que a testagem baixou imenso, as pessoas queriam estar de férias, mas penso que neste momento é importante que se regresse a alguma testagem, até porque é difícil justificar ausência ao trabalho de outra forma e há o risco de termos pessoas a ir trabalhar com sintomas. O ideal seria que se alguém tem febre, tosse, fica em casa dois ou três e dias e depois regressa. Sabemos que isso nem sempre é fácil, por isso a realização do teste permite despistar se estamos perante uma infeção que pode ter um maior impacto. Com as novas vacinas e vacinação regular dos mais vulneráveis, e se verificarmos que isso se traduz numa baixa mortalidade e sobrecarga hospitalar, poderemos começar a assumir que esta doença atingiu um ponto de equilíbrio e integrar a covid-19 nas doenças virais de inverno e então dispensar questões como o isolamento, mas penso que ainda não estamos no ponto de haver certezas de que o possamos fazer.
Nesse sentido o terceiro inverno da covid-19 é o teste para perceber se estamos perante uma doença sazonal endémica mas controlada.
Sim, penso que essa é a ideia dos nossos governantes e da maioria dos profissionais de saúde e que se tivermos vacinas que protegem os mais vulneráveis e doença ligeira nos mais jovens, poderemos encará-lo assim. É certo que existe a covid longa, mas como ainda não há certezas absolutas do seu significado e impacto, creio que deixamos de ter razões para continuar a bloquear a liberdade das pessoas e que nesse sentido este inverno será uma prova de fogo para a sociedade portuguesa. A vacinação é extremamente importante mas deveremos manter alguns cuidados de proteção para evitar até situações de mal estar entre as pessoas. Uma coisa que incomoda os pais é perceber que acabaram por ser contagiados porque lá foi aquela criança com ben-u-ron para escola, que a meio do dia ficou com tosse e depois já não é apenas um infetado. Também ficamos chateados quando nos toca a nós e por isso tentar respeitar que os outros não fiquem infetados por causa da nossa família.
Defende então que se mantenham os cinco dias de isolamento em caso de teste positivo.
Para já, sim. A partir do momento em que verificarmos que a situação não é tão preocupante, acredito que a DGS a deixe cair porque as doenças que atualmente obrigam a evicção nomeadamente escolar são doenças com impacto sério nas crianças e não acredito que a covid-19 venha a integrar esta lista.
Mas antecipa que essa mudança possa acontecer este inverno?
A menos que haja uma decisão governamental em sentido contrário, penso que este inverno iremos manter as atuais medidas, podendo até aumentá-las se infelizmente houver uma situação de sobrecarga hospitalar e aumento de mortalidade significativa. Penso que este outono/inverno nos permitirá perceber o que fazer daqui para a frente. Janeiro será em princípio o mês do veredicto.
Costuma ser o pico de infeções respiratórias.
Sim, penso que até lá não teremos problemas de maior se conseguirmos manter alguma prudência e respeito pelos outros e então veremos.
Continuam a surgir novas variantes. Com menos testes, há vigilância suficiente? Havia a ideia de usarem águas residuais, mas não tem havido desenvolvimentos.
Enquanto o teste foi obrigatório ou altamente recomendado, mesmo fazendo essa análise das variantes apenas numa amostra, conseguíamos ter um acompanhamento mais robusto. Nesta fase conseguimos apenas ter uma ideia do que se passa nos testes que fazemos que já não será tão representativa da realidade. O uso das águas residuais é interessante porque permite despistar não só a circulação mais ou menos intensa do SARS-CoV-2 mas também outros vírus, como aconteceu nos EUA, em que foi detetado o vírus da poliomielite e isso levou a desencadear ações para evitar a propagação da doença. Seria interessante que passasse a ser uma realidade e que mesmo a vigilância laboratorial fosse alargada para outras áreas. Temos agora uma nova equipa ministerial e temos de aguardar para perceber qual é o rumo, mas creio que devemos reforçar a nossa vigilância não só da covid-19 mas de outros vírus e bactérias que influenciam a nossa vida, não só através de águas residuais mas reforçando a capacidade para análise de várias amostras que por vezes são colhidas e que não são enviadas para genotipagem para se perceber a variante.
Em que casos?
Falamos habitualmente da covid-19 e gripe, mas doença dos legionários, doenças invasivas pneumocócicas e mesmo pneumonias. Há muita gente que vai ao hospital com uma pneumonia, é feita a colheita de expetoração, mas depois a seguir não segue para o INSA e os hospitais não têm ainda capacidade para fazer trabalho microbiológico. Além disso tem de haver uma maior integração dos resultados desse trabalho com as equipas de saúde pública para que depois isso se repercuta medidas na comunidade. Há uma falta de integração de dados entre os diferentes setores que acaba por dificultar o trabalho em conjunto de todos os intervenientes.
Há duas semanas a DGS alertou para falta de recursos humanos no SNS no inverno. Vê alguma consequência desse alerta no terreno ou podemos vir a ter as mesmas queixas e dificuldades de invernos passados, nomeadamente na saúde pública?
Sabemos que houve esse alerta até para a necessidade de os profissionais terem de vir a fazer mais horas extra, o que creio que não será possível porque as pessoas estão cansadas e em muitos casos já esgotaram as horas extraordinárias previstas na lei e não estão disponíveis para continuar a fazer horas extra ad aeternum sem haver reforços efetivos de pessoal.
Não se poderá contar com a mesma disponibilidade dos invernos passados?
Não haverá a mesma disponibilidade e mesmo comparando com a altura pré pandémica, creio que não teremos a mesma capacidade. Os profissionais de saúde sempre deram o litro, sempre se esforçaram para além daquilo que era legalmente obrigatório e até ideal. Neste momento, a sensação é que seria preciso dar mais horas ainda, diminuindo a qualidade dos serviços prestados aos utentes, e creio que isto tem de ficar muito claro para que os decisores percebam que terão mesmo de garantir melhores condições de trabalho e reforçar os recursos humanos. Quando me pergunta se aconteceu alguma coisa em duas semanas, sabemos que existem aqui problemas estruturais que não é possível resolver desde o momento em que saíram as linhas orientadoras da DGS para o inverno, mas não vejo nada de concreto tirando no caso das urgências de obstetrícia haver uma comissão a trabalhar. Temos o handicap de ter mudado a equipa ministerial, vai iniciar funções a direção executiva e mesmo que se fale do Dr. Fernando Araújo, ainda não é certo, por isso temos uma série de incógnitas que vai ser difícil ultrapassar a tempo de termos medidas para este inverno.
A sobrecarga das urgências é um problema crónico. A ideia de enviar pulseiras verdes e azuis para os centros de saúde poderá ter efeito?
Sabemos que há uma orientação para os hospitais articularem com os centros de saúde e devolverem os utentes com pulseiras azuis e verdes, mas também é preciso perceber que não é algo que nos hospitais se faz de ânimo leve. Sabemos que às vezes há um doente que tem uma pulseira verde ou mesmo azul mas efetivamente aquilo que precisa de fazer só pode ser feito no hospital. É preciso um trabalho de aproximação entre as unidades para que efetivamente quem possa ser atendido fora dos hospitais seja, mas é preciso ter consciência de que a agenda dos médicos de família nos centros de saúde também está sobrecarregada e que será preciso garantir, por cima disto, uma uma ou duas vagas por dia por médico. Por outro lado, há um trabalho de comunicação a fazer junto dos utentes, que estando no hospital por vezes não perceber esse encaminhamento. E por fim um trabalho de sensibilização para ligar antes de mais para o SNS24 para ser feita uma primeira triagem do seu caso e perceber onde se deve ir.
A linha SNS24 tem pessoal suficiente para assumir cada vez mais esse papel? Teve uma atividade recorde nos últimos anos, mas com o baixar da intervenção na pandemia os meios foram sendo desmobilizados.
Penso que neste momento esse é um ponto essencial. O Ministério da Saúde tem de decidir qual é o papel que se pretende para a linha SNS24. Pretende-se que seja porta de entrada e orientadora dos utentes para a consulta adequada ou que seja apenas uma solução de recurso em situações pandémicas e de crise? Dependendo do que for a resposta, os recursos humanos têm de acompanhar e não diminuir. Tem de haver uma dotação de recursos humanos e uma definição de trabalho para que a linha seja de facto eficaz e para que os utentes saibam que podem contar com ela e com os encaminhamentos que são feitos.
A capacidade da linha para marcar consultas é limitada.
A linha permite encaminhar as pessoas para uma consulta no centro de saúde em 24 horas, 48 horas ou então uma ida à urgência imediata de acordo com os algoritmos.
Mas não marcam?
O problema é que marcam, mas a integração da linha SNS24 com as agendas dos ACES nem sempre funciona da melhor maneira. O utente tem indicação para se dirigir ao centro de saúde nas 24 horas seguintes, chega lá, o sistema não o reconheceu, mas depois quando se acede ao registo a informação está lá. A integração dos sistemas informáticos do SNS tem de funcionar muito melhor do que funciona, até porque o atendimento telefónico hoje nos centros de saúde é muito limitado. Antigamente havia um telefonista que fazia a distribuição de chamadas. Agora não há telefonistas, o ministério da Saúde libertou-se destes profissionais e essa foi uma das carreiras extinguidas. São os administrativos que estão a atender as pessoas presencialmente que têm de parar o atendimento para atender o telefone, o que não é fácil quando se tem cinco ou seis pessoas à frente. É preciso repensar tudo isto para que se atenda convenientemente as pessoas. Agora na ARS Norte há um sistema de atendimento telefónico novo em que se regista as pessoas que não são atendidas e as chamadas são devolvidas.
Outro exemplo do Porto a replicar, como disse esta semana o PM?
Sim, mas como se deve imaginar, como há poucos administrativos, acaba por não ser possível ligar às pessoas em tempo útil. Portanto quando se fala da necessidade de reforçar recursos humanos no SNS, tudo isto tem de ser tido em conta mesmo quando se introduzem novos mecanismos. Ainda na linha SNS24 há outro problema que são os algoritmos que temos neste momento, que em alguns casos acabam por não conseguir enquadrar situações que não sejam suspeitas de covid-19. Precisamos que a linha SNS24 têm uma maior abrangência.
Leva-me a outro ponto: ainda no recente relatório do SNS se podia ler que por exemplo as avaliações do estado nutricional dos utentes baixou durante da pandemia e foi feita mais vezes a doentes covid-19 do que aos outros. É altura de “descovidar” o sistema?
Sim e sabemos muitas vezes que os utentes que mais precisam de avaliação nutricional são idosos acamados, quadros demenciais. É verdade que temos de manter atenção à covid-19, mas é preciso encontrar um equilíbrio na valorização de outras patologias. E aqui chegados, e quando falamos da falta de profissionais, se fomos a ver, os nutricionistas são muito poucos, os psicólogos muito poucos, os terapeutas da fala muito poucos, isto para não falar da medicina dentária, que chegou a ser um projetos pilotos e que não avançou. Se não oferecemos nada disto no SNS, há muitas pessoas que nunca vão ter acesso a este tipo de cuidados. Para o SNS ser geral, universal e gratuito, precisamos de mais profissionais e de todas estas valências, não se pode pensar que os médicos de família conseguirão responder a tudo. O tempo não estica.
E pensar que o privado responde nesses casos é uma falácia?
Sabemos que há cada vez mais pessoas com seguros de saúde, alguns sentem-se melhor atendidos, tudo bem, mas há uma proporção da população que não tem acesso aos cuidados, ponto final. E por isso precisamos de continuar a trabalhar para que o SNS seja efetivamente o garante do acesso à saúde de toda a população. Infelizmente nos últimos 30 anos os recursos têm sido sempre insuficientes. O SNS é sempre muito importante, diz-se sempre que é um marco de Abril, mas tem sido um parente pobre em muitos momentos. Basta recordar os apoios que foram dados à banca na altura da crise e os apoios que são dados à saúde em alturas de crise como esta, ficamos sempre a perder.
Assinala-se o dia do SNS, com um novo ministro. Que medida recomendaria no imediato?
É extremamente importante reforçar as carreiras e autonomia dos diferentes serviços, hospitais e centros de saúde, para que possam organizar-se e trabalhar com orçamento adequado. Agora, a curto prazo, penso que o Ministério da Saúde tem de resolver a questão de falta de equipas nos serviços de urgência e avançar para uma reorganização. Aqui no Norte o Dr. Fernando Araújo mudou algumas coisas na altura em que estava na Ordem dos Médicos e quando foi secretário de Estado. Temos urgências metropolitanas para algumas especialidades e teremos de replicar esse modelo.
Algo que pode gerar contestação?
Mas aí teremos de explicar às pessoas que concentrando as equipas conseguimos ter uma resposta mais robusta e contínua, com informação sobre onde devem deslocar-se. Aqui na zona do grande Porto só há uma urgência metropolitana de psiquiatria no Hospital de S. João, não vale a pena ir a outro lado. Se estiver noutro lado, o doente é transferido para o S. João após estabilizado. Não é a solução ideal, mas neste momento será uma solução para resolver constrangimentos nos serviços de urgência. Ter cinco hospitais a fazer urgências de obstetrícia cada um a fazer poucos partos com profissionais insuficientes se calhar faz menos sentido do que ter dois ou três. Penso que neste momento a primeira medida urgente para o SNS é a reorganização dos serviços de urgência.
Irá a tempo deste inverno?
Creio que sim. É uma questão da direção executiva e o ministério se sentarem e articularem com os sindicatos e adaptar algumas regras, por exemplo a de que as equipas não podem ir fazer urgências a outros hospitais. É perfeitamente possível que isto até ao inverno seja posto em prática. Do lado da saúde pública penso que a medida prioritária seria tirar as juntas médicas de atestados multiusos dos ACES e colocá-los na Segurança Social.
Seria preciso contratar médicos?
Já têm médicos e já fazem juntas médicas para muitas situações, reformas antecipadas, ausência prolongada por doença. O que fariam era juntar os atestados multiúsos a esta realidade e há muitos médicos com experiência nesta área. É possível organizar um atendimento de juntas médicas na segurança social retirando essa carga burocrática aos centros de saúde.
A mortalidade continua acima do normal no país apesar da diminuição das mortes por covid-19, com mais de 300 óbitos diários, nos níveis mais elevados da última década. Não há ainda uma análise detalhada, não é preocupante partir assim para o inverno?
Sim, no fundo há uma estabilidade na mortalidade desde o início do ano que não é normal, o normal é haver uma sazonalidade. Penso que o mais importante é haver de facto um avaliação para se perceberem as causas.
As causas só são divulgadas com um desfasamento de quase dois anos. Não é demasiado tempo para haver alguma intervenção?
Pois. Hoje [ontem] por exemplo a meio do dia, temos 107 óbitos, 23 abaixo dos 70 anos, portanto 70% dos óbitos acontecem em idade expectável. Isto diz-nos que os nossos idosos podem estar a ter um impacto não só da covid-19 mas do que foi um menor acompanhamento nos últimos dois anos, com diferenças regionais e menor taxa de mortalidade no Norte. Penso que desde já estes dados devem fazer-nos refletir sobre o acompanhamento da população mais vulnerável e essa análise escalpelizada das causas de óbito tem de ser muito bem feita para se perceber se isto foi associado a um mau atendimento, à pandemia e se há outra causa.
Desde o início da pandemia que se fala sempre de estudos que precisam de ser feitos e, percebendo-se que é complexo, como se passa a ter análise em tempo útil?
Isso leva-nos a outra questão que são os recursos que neste momento a DGS tem disponíveis para fazer este trabalho. A DGS precisava de um grupo de profissionais dedicados exclusivamente a isto e que não fossem apenas dois ou três. Hoje, além da falta desses recursos, a DGS está assoberbada por tarefas que não deviam ser suas. É por exemplo a DGS que autoriza a entrada no mercado português de produtos de tabaco de acordo com a legislação. Não faz sentido de nenhum, é algo que devia estar na economia ou concorrência. Como este há outros exemplos de trabalhos que não devia ser a DGS a fazer ainda para mais não tendo recursos suficientes e próprios. Há muitos profissionais em mobilidade na DGS, não fazem sequer parte dos quadros.
Além do envelhecimento dos quadros e poucas novas entradas.
Absolutamente. A DGS precisa de uma reforma que permita dotá-la de profissionais de diferentes áreas de trabalho e em número suficiente. Se não trabalharmos a maneira como o serviço está organizado, o trabalho vai demorar imenso tempo. Ainda antes da pandemia, criou-se um grupo de trabalho para estudar a mortalidade materna em 2018 e só agora, quando houve barulho, se conheceram resultados. Continuamos com uma lentidão e burocracia no SNS que nos dificulta o trabalho. Eu, como delegado de saúde do meu ACES, não sei as causas de morte dos meus utentes este ano e precisava de saber até para perceber o estado da saúde da população e poder aconselhar alguma medida.
Consegue perceber a mortalidade nos lares?
Não sei as causas de morte, à exceção de casos mais ligados à covid-19. Os dados da mortalidade estão centrados na DGS e o acesso é difícil. Precisávamos que fossem acessíveis para podermos intervir na nossa área de influencia. Uma das medidas que temos pedido ao Governo nos últimos anos tem sido um sistema de informação em saúde pública e não aconteceu. Tenho de pedir ao INE dados da população do meu concelho, uns são gratuitos, outros têm de ser pagos, outros são confidenciais. Há todo um pensamento estratégico que é preciso fazer mas isso implica dotar os serviços de recursos financeiros, técnicos e informáticos e para isso acontecer tem de haver uma aposta nesse sentido por parte do ministério da Saúde.