Em 25 milhões de cidadãos reservistas na Rússia, Vladimir Putin anunciou o recrutamento obrigatório de 300 mil homens e mulheres com experiência militar na primeira mobilização em 80 anos no país. Há uma primeira grande diferença face ao que se passa numa democracia como Portugal: em tempo de paz, ao contrário do que sucede na Rússia, o serviço militar é profissionalizado, com caráter voluntário – deixou de haver serviço militar obrigatório em 2004 – pelo que os reservistas são apenas quem fez vida militar. O que se passaria em caso de necessidade iminente de reforço das forças numa situação de guerra?
O enquadramento está na Lei de Defesa Nacional e na Lei do Serviço Militar, mas existem alguns vazios.
Primeiro seriam mobilizados os militares no ativo – atualmente um pouco menos de 27 mil. Os dados variam consoante a entidade que os regista e o Anuário Estatístico Defesa Nacional foi descontinuado em 2016 pelo ministério, mas as contas dos diferentes ramos apontam para um contingente dessa ordem.
Mais velhos na retaguarda Depois, tal como acontece agora na Rússia, seriam chamados os militares na reserva. Em Portugal há dois tipos de situações. Por um lado, os militares na reserva ativa, que desempenham ainda funções administrativas nos três ramos das Forças Armadas: Exército, Marinha e Força Aérea.
Por outro lado, os militares na chamada reserva fora da efetividade, que são mais, situação em que se mantêm durante cinco anos até à reforma, por norma aos 66 anos de idade. Um contingente que, juntando as duas situações, rondará atualmente os 8 mil militares e permitiria aumentar as forças nacionais para cerca de 35 mil, disse ao i fonte militar. O i procurou ontem obter informações junto do Ministério da Defesa, mas tal não foi possível até à hora de fecho.
Numa situação de guerra, os mais velhos, até aos 66 anos, assumiriam por regra funções de retaguarda, onde a experiência é importante para o controlo e comando, e os mais novos na frente de combate.
Em caso de meios adicionais, colocar-se-ia então o cenário de mobilização de cidadãos fora da vida militar. E é aqui que existe falta de regulamentação.
A lei do Serviço Militar de 1999 determina que existe uma reserva de recrutamento constituída pelos cidadãos portugueses dos 18 aos 35 anos de idade, que, não tendo prestado serviço efetivo nas fileiras, podem ser objeto de recrutamento excecional, “em termos a regulamentar”. Em 2020, perante a diminuição do efetivo militar nos últimos anos, o então ministro Gomes Cravinho chegou a avançar com um grupo de trabalho, o que na altura foi noticiado, mas não houve alterações.
Seria necessário adaptar a lei, mas o o cenário mais rapidamente concretizável, explica fonte militar, seria avançar com a mobilização de cidadãos nestas faixas etárias que, tendo feito serviço militar, deixaram as Forças Armadas e trabalham hoje em entidades civis, nomeadamente forças de segurança. Por esta via, seria possível aumentar o esforço da Defesa Nacional para cerca de 40 a 45 mil homens, com menor necessidade de formação, explicou ao i fonte militar.
Num cenário de previsão de necessidade ainda de mais meios, a Lei da Defesa Nacional estabelece que toda a população pode ser convocada. E se para quem nunca foi a um Dia de Defesa Nacional nem fez serviço militar isso pode ser desconhecido, está escrito taxativamente na lei, no capítulo VI, sobre Defesa da Pátria. No artigo 38º pode ler-se que o “O Estado pode mobilizar os cidadãos para a defesa nacional”. Que esta mobilização “pode abranger a totalidade ou uma parte da população e pode ser imposta por períodos de tempo, por áreas territoriais e por setores de atividade”. E que pode determinar a subordinação dos cidadãos por ela abrangidos às Forças Armadas ou a autoridades civis do Estado.
Não há um plano conhecido, mas o natural seria recorrer então à população mais jovem, até aos 35, independente de ter as mínimas bases de treino militar. Nem todos poderiam ser mobilizados, até para manter a economia e as áreas essenciais do país a funcionar, mas fonte militar estima que até 20% destas faixas etárias poderiam ser mobilizadas em caso de necessidade, o que exigiria sempre um período prévio de formação, que poderia ser de seis meses.
Tendo em conta que Portugal tem atualmente, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística, mais de 1,5 milhões de pessoas, poderia haver a mobilização ainda de mais 100 mil pessoas.
A última vez que foram mobilizados militares na reserva foi na guerra colonial, que vitimou mais de 10 mil homens entre 1961 e 1975. Foi nesses anos de serviço militar obrigatório, ou por conscrição, que as Forças Armadas tiveram o maior contingente: segundo uma análise do tenente-general Joaquim Formeiro Monteiro, “em 1961, foram recenseados, aos 20 anos de idade, 73 366 cidadãos do sexo masculino, tendo sido apurados para o serviço militar 64,8% do universo recrutável, com o tempo de serviço alargado para dois anos e, dez anos mais tarde, em 1971, o recenseamento foi estendido, pela primeira vez, aos cidadãos que completavam 18 anos, atingindo um número de 91 363, tendo sido apurado 72% do contingente de recrutamento”.
Chegou a haver mais de 300 mil homens mobilizados na guerra colonial, um cenário que foi sendo progressivamente descartado. E mesmo a história desse período só tem sido coligida nos últimos anos. O historiador Miguel Cardina, que já defendeu a existência de um museu do colonialismo, revelou em 2016, à Renascença, ter encontrado já mais de 8 mil casos de deserção. Cerco que Putin apertou esta semana aos reservistas que não compareçam à convocação.