Texto de João Oliveira Duarte
Depois, há Thomas Bernhard, que nunca poderá ser arregimentado para uma qualquer retórica humanista, que só à custa de um mal-entendido poderá ser subsumido a uma economia do literário ou ao gosto – seguro, cheio de si – de uma certa burguesia esclarecida de tendência cosmopolita. Lá no fundo, estes últimos, fáceis de encontrar em Lisboa, só o podem detestar, mesmo que pensem o contrário: o ódio de Bernhard é demasiado grande, e eles demasiado requintados. Nascido na década de 30 do século XX, na Áustria – ninguém como ele odiou, de todas as formas possíveis e imagináveis, o seu país natal –, deixou-nos como obra um astro gelado, um desses corpos celestes onde a vida será para sempre impossível, lugar irrespirável onde todas as coisas são iluminadas por uma luz corrosiva, tantas vezes mortal.
Defendia algures Maurice Blanchot que os grandes escritores são estéreis, que não apenas são órfãos de pai e mãe como, além disso, não deixam descendência – é esta característica que torna difícil a sua subsunção às boas intenções dos que olham para a literatura como uma educação sentimental. São acasos fechados sobre si próprios – esgotam antecipadamente toda a experimentação que eles próprio instauram. É sempre possível descobrir antecedentes, influências – no caso de Perturbação, por exemplo, como não pensar em Shakespeare, nesses outros príncipes alucinados? –, tal como é sempre possível encontrar, aqui e ali, epígonos, traços que lembram outras escritas, outros lugares. Tudo isso é possível, sem dúvida, mas nada disso interessa. A obra, a obra em particular de Thomas Bernhard, permanece impassível, um acaso que recusa qualquer explicação e ao qual nada pode ser acrescentado, uma ideia que não pode ser retomada, um tom de voz que não pode ser continuado de forma alguma. Sem pai e sem mãe, recusa que haja qualquer forma de continuação, e mesmo quando há epígonos, imitadores, estes não abalam a impassibilidade a que se remetem. São astros que emitem uma luz que nada ilumina, sinal de um lugar onde a vida é recusada em todas as suas dimensões e momentos. Um abismo, singular e irrepetível, face ao qual todos os seres e todas as coisas pagam a sua dívida.
Com tradução de Bruno C. Duarte, editado pelas Dois Dias Edições, Geada é a primeira obra que Thomas Bernhard publicou, surgindo agora, pela primeira vez, em português, retomando o fôlego editorial que a obra de Bernhard já teve entre nós – talvez não fosse má ideia voltar a publicar Extinção, obra entretanto esgotada, mas com uma tradução também ela impecável. A narrativa, que conta sempre muito pouco nas obras deste autor austríaco (“Não se preocupava em contar. A arte de contar está reservada a outro tipo de carácter. Não a ele”, como lemos em Geada), resume-se com facilidade. Um jovem médico é incumbido por um Doutor Strauch de se dirigir à província de Weng para observar o irmão deste último, o pintor Strauch. As trezentas e algumas páginas que se seguem, divididas em dias como um diário, concretizam um dispositivo que iremos encontrar, por exemplo, na segunda parte de Perturbação, no discurso do príncipe Saurau, misturando as anotações e impressões do jovem médico-estagiário com a citação do discurso do pintor Strauch – o famoso discurso indirecto livre, sobre o qual escreveram Pasolini e Deleuze e Guattari. E, da mesma forma que em Perturbação, o que interessa, em última análise, não são tanto as impressões do médico, mas o discurso torrencial, tantas vezes contraditório, desse pintor que destruiu todas as suas obras e que vive enclausurado numa estalagem à qual tem aversão, num lugar para ele intolerável cheio de pessoas igualmente intoleráveis.
Geada não tem, certamente, o estilo maduro que encontraremos nos livros posteriores, nem vemos nesse primeiro livro o domínio da escrita que dará um fôlego singular e único a Bernhard – e que vão muito além do conteúdo ou das condenações, tantas vezes de ordem moral, que encontramos espalhadas ao longo da obra: o ódio, em Bernhard, é musical, é uma cadência que se solta do fundo das coisas, um olho único, imenso, que varre a paisagem, que mede, a cada momento, a queda excessiva dos seres e dos objectos.
“As crianças tinham piolhos, os adultos gonorreia, sífilis, que às vezes paralisa todo o sistema nervoso. «As pessoas aqui não vão ao médico», disse o pintor. «É difícil convencê-las que um médico é tão indispensável como um cão.» (…) Normalmente escolhiam um lugar «para morrer», onde não fosse muito fácil encontrá-las. «Para lá das fronteiras do concelho.» Os animais também se afastam para muito longe, para longe dos outros, quando sentem que vão morrer. «Aqui as pessoas são como os animais… fragmentos de uma vida desconhecida» que tantas vezes caiam sem vida aos seus pés.”
O que talvez falte a Geada, e que irá estar presente na obra de maturidade de Bernhard, é uma consistência musical, feita acima de tudo de repetições, de linhas musicais que vão reaparecendo e sendo retomadas para logo de seguida serem abandonadas uma vez mais. É um ritmo – de pensamento, de linguagem –, mas um ritmo intensa e profundamente febril, como se o fôlego estivesse sempre a faltar, como se a linguagem e o pensamento atingissem constantemente um limite, como se estivessem à partida esgotadas – mas apenas para serem retomadas, num movimento incessante, ondulatório, sem fim nem finalidade. Uma monstruosidade ou um monumento, uma obra arquitectónica sem igual, sem função. É a obra de um insone onde a clareza de pensamento é indistinguível da contradição, onde o encadeamento lógico é trocado por uma respiração apressada, onde todas as coisas, todos os seres, apresentam uma faccies hippocratica, o sinal de uma morte que trabalha dentro deles e que, nas páginas de Geada, vão surgir à claridade, a uma luz mortal.
Se Geada não tem, efectivamente, essa musicalidade febril que vai marcar a obra posterior de Thomas Bernhard, se ainda não ganhou a dimensão política pela qual vai ser reconhecida – como sublinha Marcos Foz no posfácio, aqui as preocupações ainda são muito existenciais, a paisagem ainda não ganhou a concretização que as outras obras irão ter – contém, no entanto, um elemento comum a tantas das obras de Bernhard: um desses seres, além ou aquém do nosso quotidiano, que apenas encontramos em Bernhard, suicidas que levam consigo todo o mundo e cujo olhar frio e inclemente é um juízo mortal lançado sobre as coisas. Strauch é uma dessas figuras, o pintor que destruiu toda a sua obra, cuja vida se reduz cada vez mais a uma solidão sitiada, cujo discurso, alucinado, dá conta desse insone para o qual o mundo se reduz à morte e decadência de todas as coisas, de todos os seres. Digamos figura, e não tanto personagem, porque nada há em Strauch, tal como não há em Saurau de Perturbação (uma das mais próximas temporalmente), que diga respeito à interioridade, à intencionalidade ou mesmo à evolução com que os romancistas, tantas vezes, tentam imitar a vida – são figuras literal e metaforicamente estáticas, sitiadas, que vivem num universo de forças, onde a natureza é violenta e não nos reconhece. Há apenas isto: uma voz, um discurso torrencial, soluçado, digamos assim, que está sempre a começar porque está sempre a terminar, que não tem princípio nem fim, cujas frases se capturam mutuamente, cujos raciocínios estão constantemente a começar porque, na realidade, estão constantemente a terminar. Em Bernhard não é o sono da razão que produz monstros, mas a insónia. É o rosto terminal das coisas.
“Voltou-se para a povoação que se estendia à nossa frente: «a raça humana não é grande coisa por estes lados», disse. «As pessoas são relativamente pequenas. Quando os bebés se põem aos gritos, metem-lhes na boca um farrapo embebido em aguardente. Muitas aberrações da natureza (…) A maioria nasce com alguma espécie de deformação. Todos engendrados na embriaguez. Em grande parte naturezas criminosas. Uma elevada percentagem de jovens passa a vida na prisão. Os ferimentos graves e a depravação e a depravação contranatura são o pão nosso de cada dia.”
Bernhard consegue construir estas figuras monumentais a que nenhuma personagem conseguirá alguma vez chegar, estes seres feitos de linguagem – mas uma linguagem febril, onde a raça humana nunca poderá ser grande coisa, onde a própria existência do mundo é contranatura –, leva-nos ao ar gelado e rarefeito que se encontra no cimo das montanhas (a imagem é de Nietzsche), aí onde a vida é reduzida ao mínimo, onde mal se consegue respirar, onde o vivo vai rareando. É um destes estranhos seres, que vivem em locais inabitáveis, que vieram de lá para nos trazer notícias do inferno, que encontramos em Geada, tal como encontraremos nos livros posteriores. Que Bernhard seja hoje considerado um grande escritor mundial resulta, como é óbvio, de um equívoco.