Ucrânia. Putin arrisca a fúria de uma “maioria silenciosa”

O regime russo prometia ordem e prosperidade a troco de apatia. Agora, muitas famílias temem ver entes queridos ser levados para a linha da frente. Mas Putin, humilhado no campo de batalha, não tinha muito mais opções.

Para enfrentar a crónica escassez de recrutas, Vladimir Putin arranjou todo um conjunto de novos problemas. Com o anúncio de uma mobilização militar parcial, esta quarta-feira, o Kremlin quer encher as suas fileiras com mais 300 mil efetivos. Contudo, ao mesmo tempo, deixou muitas famílias russas receosas que a qualquer momento os seus entes queridos sejam enviados para a linha da frente, bem conscientes que tantos outros – o Pentágono estima que a Rússia tenha sofrido até 80 mil baixas, o Kremlin admite menos de seis mil – voltaram a casa em caixões. E parece cada vez maior o risco de uma vingança nuclear, caso as forças de Putin continuem a ser escorraçadas pelos ucranianos (ver página 4).

Teoricamente, podem ser recrutados aqueles com experiência militar, entre os 18 e os 60 anos, dependendo da patente, com destaque para quem tenha formação especializada, como sapadores, engenheiros ou atiradores furtivos. A lista exata das especialidades mais desejadas não é pública, para não revelar as lacunas do Kremlin, o que certamente estará a deixar ansiosos muitos reservistas russos. 

Logo após o anúncio da mobilização militar parcial, a primeira desde a II Guerra Mundial, nos tempos de Estaline, houve mais de uma centena de manifestantes detidos, avançou a Reuters, (ver páginas 6-7) com os protestos a estenderem-se desde centros urbanos, como Moscovo, aos confins da Federação Russa. É algo que se viu sobretudo na distante Sibéria, segundo o Moscow Times, em repúblicas russas mais pobres, como Buryatia, terra natal de uma parcela desproporcional dos soldados abatidos na Ucrânia. 

No entanto, o problema do Kremlin não são os poucos russos politizados e com coragem para sair à rua, enfrentando o risco de uma imediata e expectável detenção. A sua preocupação é a “maioria silenciosa”, a base do seu poder, aqueles que sentiram algum alívio em deixar o poder político nas mãos de Putin, apreciando a ordem e relativa prosperidade que ofereceu, após os anos de caos e miséria da doutrina de choque de Boris Ieltsin. 

“Durante décadas, o projeto de Estado de Putin alimentou uma apatia entranhada entre a população”, notou Eliot Rothwell, um jornalista residente em Moscovo, especializado nas antigas repúblicas soviéticas, num artigo na Tribune. “Os russos viraram-se para dentro, focando-se no que conseguem controlar: a si mesmos, à sua família, as suas vidas pessoais. Procuraram viver não em oposição ao Estado, mas ignorando-o”. 

É a essa “maioria silenciosa” que Putin tem prometido, insistentemente, que a invasão não é uma guerra, mas sim uma operação militar especial. Que poderiam manter a sua vida mais ou menos normal, ainda que sofrendo alguns impactos económicos e sem acesso a marcas ocidentais. Agora, essa espécie de contrato social foi quebrado.

“Mas parece que há limites”, lembrou Anne Applebaum, investigadora do Johns Hopkins University School of Advanced International Studies, no Atlantic. “Daí que ele não fale de uma verdadeira mobilização em massa – que envolveria recrutamento obrigatório de homens jovens em números enormes – mas de mobilização parcial. Nada de estudantes, nada de recrutamento geral, só a ativação de reservistas com experiência militar”.

Putin só avançou com essa mobilização parcial porque não lhe restavam grandes alternativas. Ou sequer desculpas minimamente plausíveis.

Quando os russos falharam em tomar Kiev, no início da guerra, o Kremlin assegurou que não foram derrotados, estavam só a concentra-se em conquistar o resto do Donbass; quando foram corridos de Kharkiv, recentemente, deixando para trás arsenais inteiros, não estavam a fugir, apenas a “reagrupar” em Donetsk e Lugansk. E agora, como é que o Kremlin explica ter perdido o controlo total de Lugansk, esta segunda-feira, com a derrota em Bilohorivka, nos subúrbios de Lysychansk, que conquistara a tanto custo, durante semanas de combate?

Ainda por cima, seria de esperar mais avanços das forças ucranianas em Lugansk, tendo estas chegado ao rio Oskil. Deixando as linhas de abastecimento russas na região expostas ao fogo devastador dos M142 HIMARS, os lança-mísseis de longo alcance americanos que Kiev tão eficazmente sabe usar. 

“Já perdemos, o resto é uma questão de tempo”, lamentara esta semana Igor Girkin, no Telegram. Este antigo espião, ícone da ala mais extrema dos nacionalistas russos, que ganhara a alcunha de Strelkov quando combatia no Donbass, em 2014, tem apontado o dedo a Putin, acusando-o de ocultar um descalabro militar. Contudo, até entre a coligação que suporta Putin, o descontentamento se torna cada vez mais notório. Ouvindo-se críticas do líder checheno, Ramzan Kadyrov, ou apelos do Partido Comunista Russo – que, apesar de oficialmente estar na oposição, está alinhado com o regime russo e apoiou entusiasticamente a invasão – a uma mobilização militar massiva. 

É que a operação militar na Ucrânia “tornou-se uma guerra”, declarou esta semana Gennady Zyuganov, líder dos comunistas. Atrevendo-se a falar de uma guerra em público, algo que levara à detenção de outros, acusados de desinformação. 

Já Kiev parece consciente da pressão política que causaria uma contraofensiva ucraniana bem-sucedida, como a que se viu no sudeste de Kharkiv. Isso até fazia parte do plano, explicara a antiga primeira-ministra Yulia Tymoshenko, ao SOL.

“Aqui estamos todos convencidos que, mal as tropas russas no sul da Ucrânia sejam esmagadas, imediatamente levará ao início do colapso do regime”, garantira, referindo-se ao suposto contra-ataque em Kherson, uma finta para levar o Kremlin a reforçar a região, enquanto os ucranianos se prepararam para atacar no sudeste de Kharkiv. É que, após uma vitória sonante de Kiev, “as lutas internas das elites russas escalarão enormemente. Porque deixarão de acreditar que a Rússia está no lado vencedor”, anteviu Tymoshenko.