Morreu Hilary Mantel, a autora que assinou a mais influente trilogia do romance histórico dos nossos dias, começando com Wolf Hall e O Livro Negro, concluída, em 2020, com O Espelho e a Luz, um feito que a teve imersa no passado, numa investigação exaustiva, ao longo de década e meia, na era dos Tudors, nas entranhas da Inglaterra de Henrique VIII, para dar uma segunda vida a Thomas Cromwell, o filho de um ferreiro que viria a tornar-se o secretário do rei e uma das figuras mais influentes do país, até perder o favor daquele e, por fim, a própria cabeça. A escritora britânica morreu na quinta-feira, no hospital de Exeter, em Inglaterra. Tinha 70 anos.
A morte, na sequência de um derrame, foi confirmada por Bill Hamilton, o agente literário que a acompanhou ao longo de toda a sua carreira, e que manifestou a sua inconsolável tristeza com o desaparecimento da amiga. «Ela tinha ainda tantos romances maravilhosos que poderia ter escrito», adiantando que antes mesmo de desaparecer andava a trabalhar num.
Uma das autoras mais celebradas e premiadas do Reino Unido, tornou-se a primeira mulher a ganhar por duas vezes o Booker Prize, o mais prestigiado galardão literário do país, por Wolf Hall e, depois, por O Livro Negro, sendo que, até hoje, a trilogia vendeu mais de cinco milhões de exemplares em todo o mundo, tendo sido traduzida para 41 idiomas. Os livros foram adaptados a duas peças premiadas da Royal Shakespeare Company e deram origem a uma minissérie da BBC. Em 2015, o príncipe Charles distinguiu Mantel com o título de Dame Commander, Ordem do Império Britânico, o equivalente ao título de cavaleiro, levando alguns na imprensa a fazer comparações zombeteiras entre a realeza moderna e o comportamento desleixado e traiçoeiro dos Tudors no século XVI.
De uma autora de culto à sua ascensão à fama a partir da publicação, em 2009, do primeiro título da trilogia, Mantel manteve-se ao largo do próprio fenómeno que se gerou à sua volta, desinteressada de gozar o estatuto de celebridade, e preferindo a companhia das suas personagens exumadas das páginas dos livros de História e animadas de um novo fôlego a ter de perder tempo com as mundanas cerimónias, dominadas por egos mesquinhos que caracterizam a corte literária. Mantel passou os últimos anos da sua vida juntamente com o marido Gerald McEwen, um geólogo reformado, em Budleigh Salterton, uma vila idílica na costa de Devon, no sul do país. Numa entrevista ao Expresso, em 2020, a autora explicava a sua escolha: «Se quisermos as recompensas que nos esperam no final, temos de abdicar de algumas coisas pelo caminho, e há anos que a escrita ocupa a maior fatia do meu tempo e atenção. Tenho a sorte de ter um parceiro que compreende este compromisso. Somos ambos pessoas tranquilas, não muito sociais, e satisfeitas com os nossos próprios pensamentos. A nossa vida numa pequena cidade à beira-mar poderá parecer monótona a muita gente, mas permite-nos o tipo de espaço mental e de independência de que ambos precisamos.»
Mantel alcançou um nível de sucesso com o qual a maioria dos escritores só podem ambicionar, uma vez que, se a sua trilogia arrebatou os leitores, e teve vendas espectaculares, a crítica, por outro lado, também se lhe rendeu, exaltando a forma como a sua escrita tomava conta dos nervos do leitor deixando-o hipnotizado pelo fôlego da narrativa em que o passado ganhava textura e era urdido de forma tensa elaborando a partir de uma teia em que havia tudo estava em jogo, criando um registo conspirativo e empurrando-o para as zonas mais densas do labirinto da psicologia humana. Mantel foi elogiada pela sua capacidade de levar ao limite as capacidades da ficção histórica, e ainda por se mostrar exímia ao expor a forma como o poder funcionava como um elemento essencial para revelar a verdadeira fibra de que somos feitos. Numa recensão nas páginas do The New York Times, Janet Maslin rendia-se à elegância do arco, ao brilhantismo do enredo, aos vívidos detalhes que entretece de um modo de tal forma significativo que os protagonistas assumiam uma presença incrível, com as suas «maquinações perversas a serem embaladas na verve imparável« daquela prosa capaz de comprimir momentos enormemente incisivos em parágrafos onde a escolha das palavras não deixava de produzir entusiasmo e perturbação. Na entrevista ao Expresso, esclareceu o que a intrigava em Cromwell: “Como é que um homem visto como um herói uma geração após a sua morte se converte num vilão? Se ele habitava a imaginação popular, era como uma caricatura — pode-se apontar para peças e filmes. Mas o processo de o tornar um monstro remonta ao século XIX. Fiquei admirada com a preguiça dos historiadores, que retiraram as perceções uns dos outros e negligenciaram o regresso às fontes.”
Outro aspecto decisivo da vida de Mantel foi a dor crónica que sofreu ao longo de toda a sua vida adulta. Quando tinha 20 anos, começou a ser abalada pelos sintomas do que, só anos mais tarde, viria a ser diagnosticado como endometriose, uma condição em que tecido semelhante ao que reveste o útero cresce noutras partes do corpo. Aos 27 anos, submeteu-se a uma intervenção cirúrgica para lhe ser removido o útero e os ovários, mas nem assim as dores acabaram. Na entrevista que deu por escrito ao Expresso, contou o impacto que a doença e as dores tiveram na sua vida. «Durante muitos anos sofri de endometriose, e das tentativas de a curar; as duas juntas arruinaram o meu corpo. Mas fui muito ajudada por uma cirurgia realizada em 2011. Embora demorasse dois anos a recuperar, já não tenho dores permanentes. Nunca voltarei a ter um corpo ‘normal’ — isso é-me inacessível. Tenho de racionar a minha energia e nunca sinto o meu corpo como fiável. (…) Há uma dimensão política naquilo que me aconteceu — não ter conseguido, enquanto jovem mulher, que ouvissem o meu sofrimento. Foi-me dito que estava a imaginar a minha dor, ou que estava sob stresse — que era uma perfeccionista ansiosa. Todas as falhas foram depositadas em mim, sem que se encontrasse a falha real, o dano físico que estava a acontecer sem ser visto. Sei que milhares de mulheres têm experiências similares. A doença que me atacou permanece mal compreendida e subdiagnosticada. Em média, demora-se sete anos entre as primeiras queixas de uma mulher e o início do tratamento. Mas a questão não é apenas a doença. É o facto de a sociedade ter um corpo standard — e de este ser, ainda hoje, o masculino. Percebi isto ao falar com cientistas da dor: as mulheres têm geralmente uma experiência da dor diferente, que precisa de protocolos diferentes para a aliviar. A investigação baseia-se no corpo e na experiência do homem. Por outro lado, como pessoa com uma presença pública, consegue imaginar a frequência com que me perguntam porque é que não tive crianças? Não é uma questão que seja normalmente endereçada aos homens.»
Além de a ter emparedado numa condição de debilidade permanente, a doença impediu-a de ter filhos. «Às vezes as pessoas, tentando ser simpáticas, querem persuadir-me que ter passado por isto fez de mim uma escritora melhor, ou que era algo que estava predestinado, pois foi o que me levou a manter uma relação à distância com o mundo. Mas a verdade é que teria preferido lidar com o mundo do que suportar toda aquela dor, e a incerteza que vem com ela», disse Mantel numa entrevista ao Times, em 2012.
Hilary Mary Thompson nasceu a 6 de junho de 1952 no seio de uma família católica e de classe trabalhadora provinda da Irlanda numa pequena povoação em Derbyshire, na Inglaterra. A sua infância, bastante conturbada do ponto de vista emocional, preparou-a para a tarefa de escavar e reanimar o passado. Desde criança, era propensa a visões de fantasmas e espíritos. «Estou acostumada a ‘ver’ coisas que não existem», confessava no seu livro de memórias, Giving Up the Ghost. Desde criança, no isolamento de Hadfield, a vila onde cresceu, foi alimentando uma obsessão por mitos, pelo folclore e pelo sobrenatural. Antes ainda de ter aprendido a ler, insistia com os pais para que lhe lessem as histórias do Rei Arthur e dos Cavaleiros da Távola Redonda. «Tinha a cabeça cheia de epigramas de cavalaria e a autoconfiança que vem de um conhecimento profundo de equitação e esgrima», escreve ela. Na entrevista ao Expresso, matizou o papel decisivo que teve a sua infância na obra que viria depois a escrever: «A conexão com a minha infância tem sido sempre muito forte e é onde reside a minha identidade — enquanto oriunda do norte e geneticamente irlandesa, enquanto mulher da classe trabalhadora, enquanto alguém que teve de carregar com as aspirações e expectativas daqueles que não tiveram oportunidades ou saídas nas suas próprias vidas. Foi um modo de dizer ‘obrigada’ às pessoas que me deram vida e forma, incluindo aquelas que morreram antes de as conhecer.»
Aos 18 anos, mudou-se para Londres para cursar Direito na London School of Economics, mas a precária condição económica impediu de concluir a licenciatura, e viu-se obrigada a trabalhar como assistente social num hospital geriátrico. Após ter-se casado com Gerald McEwan, tornou-se professora e começou a fazer as primeiras incursões literárias nos tempos livres. Em 1977, ela e o marido foram viver para o Botswana, tendo passado cinzo anos neste país africano, e depois passaram outros quatro anos na Arábia Saudita antes de regressarem ao Reino Unido em meados dos anos 1980.
Mantel terminou o primeiro dos seus romances em 1979, e era já uma ficção histórica que se passava no período da Revolução Francesa, mas o livro, com mais de 700 páginas, foi rejeitado por vários editores e acabou por ficar na gaveta, e só seria publicado mais de uma década depois. Na entrevista ao Expresso, a autora resumia bem o seu percurso: «Mais tarde, com cinco romances editados, voltei a pegar no projeto, que acabou por ser publicado em 1992. Sempre me vi primeiro como uma romancista histórica. O ‘projeto-Cromwell’ esteve sempre aí, desde muito cedo. Mas tinha de encontrar o momento certo para começar. Sabia que levaria muito tempo, por isso era importante construir a minha carreira até um ponto em que eu pudesse estar ausente sem ser esquecida. O que acabou por me apressar foi perceber que 2009 seria o 500º aniversário da coroação de Henrique. Então, em 2005, comecei finalmente a trabalhar. Pensava que iria escrever apenas um romance. Só a meio do projeto é que pude ver as suas verdadeiras dimensões.»
Se ao longo da sua vida, Mantel manteve uma atitude bastante reservada e nunca quis tomar parte nos aspectos mundanos da vida literária, isso não implica que fosse tímida ou deixasse de manifestar opiniões fortes. Era até capaz de confrontar de forma desabusada certos tabus, e deu provas de um verdadeiro espírito iconoclasta. Se nunca perdeu o favor dos leitores ou da crítica, nos últimos anos gerou alguma controvérsia ao atacar de frente questões ligadas à realeza e à política britânicas. Em 2013, os tablóides aproveitaram os comentários que Mantel fez durante uma palestra em que classificou a duquesa de Cambridge como «um manequim de vitrine» sem personalidade. Um ano depois, gerou irritação entre os conservadores britânicos e provocou outro frenesi na imprensa ao publicar um conto que imaginava o assassinato de Margaret Thatcher por um franco-atirador do IRA. «Ela viu-se prisioneira em sua própria casa por uma semana enquanto a imprensa enlouquecia», lembrou Bill Hamilton, que considerou o episódio «incrivelmente engraçado, ainda que inconveniente para ela».