No início do ano, foi com alguma efusividade que se viu noticiada na imprensa, e depois se espalhou nas redes sociais em registo triunfal, a nova condição de que passou a gozar a livraria Poetria, no Porto. Após uma luta empenhada e dura dos seus novos proprietários, o casal Francisco Reis e Nuno Pereira, que sucedeu a Dina Ferreira à frente do projecto que se mantinha nas Galerias Lumière, desde 2003, esta viu-se ameaçada de despejo, com a saga a desenrolar-se durante o período da pandemia. A livraria que se impunha como uma montra cada vez mais excêntrica face aos hábitos de consumo numa cidade em acelerada transformação, tentando canalizar e acolher o trânsito do turismo internacional, mantinha ali aquela vitrina virada para a Rua das Oliveiras, que chegava a parecer um rasgão para um museu ilustrando uma ideia de espírito em perda. Aquela montra parecia cada vez mais isolada e em contraste com a envolvência à medida que o comércio tradicional era substituído pelo regime de integração a que se condenam as grandes malhas urbanas. Deste modo, persistia ali, como uma brecha, restituindo uma certa inocência a um ambiente ao mesmo tempo mais sanitizado e algo sórdido (i-mundo). Ao longo de 18 anos, e ainda que com algumas tropelias e muita choradeira da sua anterior dona, esta tinha persistido na defesa de espécies literárias ameaçadas, como a poesia e o teatro, fincava ali os pés, afundando os dentes no braço do tempo, este que se mostra cada vez mais reduzido a uma estrada de sentido único.
Com uma boa dose de sentido dramático, a Poetria afirmava ter uma relação profética com o inesperado. E se cedia a todos os excessos da retórica que fazem de qualquer buraco um coito daquele heroísmo desesperado face à marcha imperturbável do progresso (recorde-se que Valter Hugo Mãe, em tempos, a chamou de “livraria gourmet”, e que o ridículo apodo pegou), e isto precisamente por os poderes públicos não oferecerem o seu apoio e colo entorpecedor. Por ter sido obrigada a lutar, a Poetria resistiu a cair nessa condição de limbo que é própria dos museus. Desse por onde desse, era preciso pagar as contas, vender os livros, manter o trânsito num espaço minúsculo, chamar novos rostos e mãos para colherem a fruta daquela árvore tumultuosa. O fecho da livraria foi por várias vezes anunciado como algo iminente. Em certo sentido, Dina Ferreira soube valer-se do ânimo que a capitulação usualmente gera junto dos clientes, que, por esses dias, como activistas, e em função desse élan de um espaço de resistência que expirava o seu último fôlego, acorriam animados pela crença no seu poder salvífico. Isto foi permitindo à Poetria transformar a sua agonia numa bem-sucedida campanha publicitária. Dina tinha até como mantra um verso de Manuel de Freitas: “Abraça-me com força agora que vou morrer”. Mas os actuais proprietários viram ali uma oportunidade de encontrarem um novo rumo para a livraria e, simultaneamente, para as suas vidas. “Éramos clientes assíduos e ficámos amigos de Dina Ferreira”, lembrava Francisco numa das tantas entrevistas que deram no início do ano. “Um dia, ela confessou estar cansada e tinha em mente encerrar, ‘sem levantar muitas ondas’, acrescentou. Francisco, na altura, não gostava do trabalho que fazia; e Nuno estava a tirar um mestrado em Estudos Literários.
Hoje, se a livraria tem as suas portas abertas num espaço bem maior, mais arejado e luminoso, uma pequena varanda, um piso superior, que servirá para receber eventos, também tem menos capacidade de se imiscuir na marcha e nos atropelos daquela vibrante cidade. Agora, os donos pagam à autarquia uma renda simbólica de 50 euros, e foi assim que o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira se tornou “senhorio” da livraria, conseguindo mais um selo ou cromo raro para abrilhantar a sua caderneta desde que assumiu a direcção da vereação da cultura na sequência da morte de Paulo Cunha e Silva, em 2015. A nova casa da Poetria, no número 115 da Rua de Sá Noronha, fica a cem metros da anterior morada, e embora não goze de uma vitrina para uma rua com o mesmo movimento, esta mudança foi encarada por Nuno Pereira como um “upgrade”, isto num comentário que fez a Rui Moreira durante uma cerimónia de apresentação do novo espaço ao público e à imprensa. O autarca respondeu: “Está muito bonito. Vocês merecem, temos de apoiar estas iniciativas.” Como ficou claro nas notícias que foram saindo na altura, a livraria ficou numa posição insustentável depois de sucessivos avisos por parte da administração das Galerias Lumière, que queriam vagar a loja de forma a transformar o edifício num hotel. Estes avisos começaram ainda em 2019, e se os outros lojistas aceitaram deixar o espaço, os donos da Poetria, que tinham acabado de comprar o negócio a Dina Ferreira, recursaram-se a sair em altura de pandemia, admitindo que era impossível fazê-lo e manter o projecto com o dinheiro que tinham. Francisco Reis e Nuno Pereira rejeitaram qualquer indemnização por parte da empresa imobiliária proprietária, por considerarem que o contrato de aluguer ainda seria válido. Perante o impasse, numa das participações na Feira do Livro, falaram com Rui Moreira, que os tranquilizou: a autarquia estava disposta a ajudar. Ali mesmo, nos jardins do Palácio de Cristal, com Marcelo Rebelo de Sousa como testemunha, a garantia tornou-se pública: a câmara cederia um espaço à Poetria. E, assim, em setembro de 2021, a Câmara Municipal do Porto aprovou por unanimidade a decisão de ceder um imóvel arrendado à livraria durante dois anos, com possibilidade de renovação. O presidente da CMP, disse aos jornalistas, durante a visita à livraria no início do ano que ajudar um negócio como a Poetria, apesar desta não poder ser classificada como uma loja histórica, é “cumprir a missão” de um executivo municipal. “A Poetria é uma livraria única na cidade, com uma histórica ligação ao meio cultural. Quando vieram falar connosco, disse logo que podiam contar, seguramente, com o apoio do município. Sabia que tínhamos esta loja disponível e criou-se, neste contexto, a possibilidade de cedência em condições especiais. Estamos a falar de várias coisas: de comércio tradicional, da alma da cidade e da cultura da cidade”, disse.
Sinal do registo acrítico que tomou conta da forma como este género de anúncios são ecoados e amplificados pela imprensa era um dos títulos que então circulou: Poetria: “Mais do que uma livraria, uma relação de afecto”. A notiícia reproduzia as declarações de Francisco Reis, em que este dizia que o pedido que fizeram ao autarca foi acolhido, uma vez que este estava consciente do “interesse que esta loja tinha para a cidade e para as pessoas”, uma loja “que é muito mais do que uma livraria, é uma relação de afecto com esta zona. E esta zona cresceu muito nos últimos anos. Apareceram muitos restaurantes e hotéis, mas faz falta outro tipo de negócios.”
A par da actividade no sector livreiro, o projecto permitiu também alicerçar a vontade que Nuno e Francisco tinham de criar uma editora, e, assim, nasceu a Fresca, um selo que ao longo dos últimos anos publicou dezena e meia de títulos de novos autores, todos nascidos depois de 1980, sendo a maioria deles residentes na cidade, vincando assim um desejo de promover não só a nova geração, mas vozes locais. Entretanto, e em sinal de uma responsabilidade de levar mais longe a sua integração nos projectos de difusão cultural, foi anunciado um projecto de ligação às escolas da zona. “Vamos pedir aos miúdos para escreverem poesia e desenhar e vamos publicá-los”, contava ao Público o livreiro. “Os miúdos sabem escrever. Nascemos artistas, só que depois vamos perdendo isso.”
A mesma notícia destacava outra declaração de Rui Moreira, em que este aproveitava a medida de apoio à livraria para um acto de campanha, frisando que uma autarquia “não pode ter a visão economicista que é razoável que os privados tenham”, e assumindo estar disponível para outras parcerias do género. Em circunstâncias destas, disse, a Câmara do Porto quer “valer àquilo que são lojas de tradição, com impacto social e cultural”. O autarca independente não encontrou qualquer resistência na assembleia do município, tendo PS e CDU congratulado a decisão que implica ainda um apoio no valor de 9.556 euros, “correspondente à diferença entre o valor mensal da renda devida e a contrapartida financeira definida de 50 euros mensais, multiplicada pelo período da vigência inicial do contrato”.
Depois de contactar alguns livreiros que actuam no Porto e noutras zonas do país, e tomar consciência do desagrado que a notícia causou, o i tentou entrar em contacto com a autarquia, e no início de julho enviou um email para os serviços culturais endereçando as seguintes perguntas: Houve algum concurso para atribuição desta loja à Poetria?; Esta medida faz parte de uma política cultural da cidade? Outras livrarias podem beneficiar dela?; As restantes lojas das galerias Lumière tiveram ou terão acesso a esta medida?; O Porto tem várias livrarias em espaços com rendas altas ou situadas em locais pouco centrais onde as rendas são mais acessíveis. Esta decisão não prejudicará a concorrência, quando a situação das livrarias já é tão frágil?; A Poetria é um estabelecimento comercial e, como tal, tem fins lucrativos. Por que razão beneficiam de apoios públicos? Os outros empresários da cidade na mesma situação de despejo também são ou serão apoiados pela Câmara?
Como tem sido costume nas relações com os poderes locais e sempre que estão em causa escrutinar aspectos controversos das políticas culturais, não houve qualquer resposta. Mas este caso permite-nos abordar uma obra recentemente publicada entre nós, uma das mais reveladoras e minuciosas investigações a este tipo de iniciativas de apoio cultural. Uma obra exemplar e que, por razões óbvias, viu ser cavado à sua volta um fosso no sentido de minimizar o seu impacto. Em “Inquérito à Vida Cultural Portuguesa” (edição da Maldoror), João Pedro George faz as vezes de guia nessa descida ao inferno da “expansão da lógica corporativa e das redes clientelares, através de uma série de negócios privados na cultura que passaram a viver à sombra do patrocínio do Estado e dos poderes locais”. Trata-se da mais penetrante e devastadora denúncia do modo como o campo cultural no nosso país vive de uma sistemática transferência e injecção de recursos públicos nos privados, tendo-se criado essa franco-maçonaria, em que, em volta de algum cacique ou capataz ao serviço das forças políticas, em troca quer da sua conivência e silêncio ou até mesmo de descarada propaganda para certas campanhas, obtém acesso directo e privilegiado a apoios e subvenções, em regime de ajuste directo, escapando aos concursos públicos, afectando assim a estrutura de mercado e influenciando decisivamente as interacções sejam elas pessoais ou comerciais. Este regime coloca uma série de agentes em posições desiguais no campo cultural, estando este, como demonstra George, cada vez mais submetido ao campo político.
Graças a um insaciável espírito inquisitivo, e alimentado pela sua inclinação obsessivo-compulsiva, João Pedro George prova ser um temível farejador dessas pistas e rastros que conduzem aos aspectos mais sinistros da nossa vida cultural, desmontando assim enredos sórdidos ou simplesmente patéticos. O “crítico-bulldozer”, como em tempos George foi apelidado, procede a um escrupuloso exame destas redes e da sua actuação concertada, a qual determina que, no nosso país, o reconhecimento dos pares e o robustecimento da posição de indivíduos ou entidades da sua posição no campo cultural dependa antes de tudo, e acima de tudo, de factores externos: “relações mundanas e ocupação de cargos ou posições de influência no interior das instituições públicas”. Com isto, impõe-se “uma produção cultural neutra, indistinta e comodamente simplista”, que não cria obstáculos ao poder, nem escrutina as suas políticas culturais, mas se torna mais um canal para que este possa “vazar o conteúdo ideológico desejado”. No diagnóstico demolidor a que George procede, fica claro como este estado de coisas está alinhado com a “consagração da componente espectacular da cultura”, e a afirmação desta como mera “cenografia ou como expressão ao nível da forma, mais do que ao nível do conteúdo”, o que leva cada vez mais a um efeito de reificação, a uma perspectiva da cultura enquanto ramo industrial conexo ao poder, o qual produz mercadoria para exportação no mercado internacional, ajudando a criar um reflexo maquilhado do país e das suas instituições. Com isto, assegura George, “o timbre combativo da criação cultural foi perdendo peso e regressou em força a concepção de cultura como factor de ‘coesão nacional’ e dos intelectuais ou artistas como meros figurantes no cortejo do político”. Ao mesmo, isto tem permitido um reforço da influência do Estado, que centraliza e exerce um domínio incontestado da definição da cultura e das práticas que lhes estão associadas, num regime que não apenas a coloca na esfera do poder, mas a instrumentaliza a favor da promoção dos sucessivos governos, das suas políticas e dos interesses que interessa promover seja no plano interno seja na cena internacional. De algum modo, este é um efeito a que ninguém escapa, e que obrigaria a comunidade cultural e artística a práticas de resistência e denúncia, mas o que vemos é a forma como quase todos os agentes se submetem, seja limitando os seus protestos à tentativa de obter apoios, seja, no momento em que os obtêm, passando a gozar esses benefícios e actuando enquanto cúmplices deste regime. Supostamente, com o 25 de Abril, a principal conquista foi a da liberdade de expressão, mas como George demonstra no seu livro, estamos muito longe de honrar esse compromisso, esse nosso dever falar que se impõe na relação entre nós e as palavras, como Cesariny deixou claro. Assim, fica demonstrado como antes ou depois do 25 de Abril nada de substancial se alterou neste reino onde os homens são só até ao joelho: “de um Estado que controlava a informação, durante o salazarismo, passou-se para um Estado cultural, de matriz francesa, assente na integração da produção cultural na própria dinâmica das instituições oficiais”, explica George. “De uma forma ou doutra, o certo é que a tradição intervencionista na cultura nunca deixou de prevalecer, gerando aquilo que alguns designam como ‘estatização da cultura’.” Isto interessa aos poderes públicos, pois este sistema de intervenção coloca como imperativo “a necessidade de lamber a imagem do país”, e é fácil perceber como, actualmente, a cultura, em tantas das suas modalidades, funciona como um resíduo da propaganda voltada para a promoção de afirmação turística, com o sentido de valorizar o perfil internacional do país. Ora, isto implica necessariamente a perda da liberdade e da autonomia dos agentes culturais, debilitando a função deste campo no que toca ao combate e subversão da ordem, a imaginar uma outra relação e outras prioridades, ao invés de reproduzir o discurso do poder. George adianta que aquela concepção que inspirou em tempos a ideia de uma oposição em sentido alargado face à ditadura salazarista, “passou a ser entendida como coisa de frustrados e invejosos, de rancorosos e enjeitados que nunca conseguiram a consagração da crítica nem o êxito do público, os impotentes, os insignificantes, os medíocres, os vencidos, os aprendizes de perdedores”.
O estudo de George oferece-nos uma espécie de catálogo das espécies que habitam e triunfam neste ambiente: “O estado de pilhagem em que vive o campo cultural, colonizado por um exército de ocupação que inclui clientes, cobradores, extorsionários, guardas pessoais, parasitas, candongueiros, grumetes de luvas brancas, almocreves, pajens, frades, gatos-pingados, entre outros, mostra que as tribos mais barulhentas (aparecer muito e ocupar um perímetro extenso, cada vez maior, do campo) são aquelas que preponderam na cultura, e que a expansão da lógica corporativa (trabalhos e projectos invariavelmente atribuídos aos mesmos), que tem esburgado as empresas públicas de muitos dos seus recursos, constitui a urdidura básica sobre a qual repousa o campo cultural.”
Se é certo que George se foca no seu estudo numa espécie de cartel à volta de João Paulo Cotrim, entretanto falecido, e de António Mega Ferreira, ou seja uma série de elementos que beneficiavam de um polvo que sabia exercer pressão junto de autarquias e instituições de moco a que os seus elementos, entrelaçados e subsidiários uns dos outros, operassem como uma “sociedade civil íntima” (Boaventura Sousa Santos”, um círculo restrito em redor do Estado, obtendo vantagens materiais e simbólicas, num acesso aos recursos públicos que ultrapassa os limites do aceitável no que toca a um respeito pela igualdade de oportunidades e do ideário de serviço público, se esta análise inflecte especificamente no “Grupo do Cotrim”, não deixa de ter ramificações, e expor a planta ou arquitectura de um edifício modelo para as formas de conluio que os fundos destinados à cultura permitem em torno de figuras que pretendem tornar o centro de regimes de influência e poder numa sociedade estrangulada desde sempre por formas de nepotismo ou privilégio. Neste contexto, é certo que os livreiros da Poetria estão entre os gatos-pingados, mas a forma como, depois de uma luta para impedir uma acção de despejo durante a pandemia acabou com um benefício inexplicável por parte da autarquia, mostra essa forma de compromisso e cumplicidade que se obtém de agentes isolados, estendendo certas benesses, as quais nunca resolvem problemas de fundo, mas servem para criar um pacto de silêncio, uma omertà em torno de certos interesses económicos, quando, hoje, as cidades são geridas como carteiras de activos, geridas por gestores e tendo como fito valorizar acima de tudo os interesses de certos grupos financeiros.
Quando o Estado suporta uma fatia considerável dos custos, do êxito comercial e dos ganhos financeiros de alguns negócios ou de certas empresas privadas, das duas uma: “ou estamos perante uma privatização da produção cultural do Estado ou perante uma estatização da cultura”, vinca George. E no seu livro, o qual recolhe e aprofunda algumas das polémicas intervenções e investigações de ordem sociológica que tem levado a cabo na sua crónica na revista Sábado, vai ao ponto de demonstrar como os próprios indivíduos que mais se tem relacionado com o Estado no sentido de reunir fortunas à conta dos dinheiros públicos, em tempos, criticaram este regime de estatização da cultura. Eis um excerto de um texto assinado por Mega Ferreira no Jornal de Letras, em 1985: “o Estado prefere actuar como uma espécie de ‘roda dos enjeitados’ da criação cultural: de um lado, deposita-se o pedido; na volta recebe-se o subsídio. A consequência mais grave desta prática paternalista do Estado-polvo que nos governa é o risco de asfixia dos criadores e agentes de difusão e animação cultural. A generalização da ideia de que nada se pode fazer sem subsídio constitui uma espécie de narcótico capaz de tolher os movimentos a quem tem ideias na cabeça”.
Ora, como demonstra George, a aceitação deste regime tácito de submissão aos poderes políticos revela como estes indivíduos que actuam no campo cultural se adaptaram à lógica de funcionamento das sociedades mediáticas: o estatuto e o reconhecimento na cultura aumenta com a sociabilidade e a visibilidade (e vice-versa). Estes agentes perceberam, portanto, que os mecanismos que permitem fabricar uma reputação intelectual e artística é directamente proporcional ao expansionismo mundano, à posição e aos recursos sociais que se possui, à imagem que de si próprio se consegue impor nas instâncias de reconhecimento, à difusão em grande escala de um nome e de uma obra, mas também de um projecto ou de um modelo de intervenção e curadoria artística ou de outra natureza. Tendo isto em conta, é evidente como o Estado e as suas instituições ou as empresas na sua esfera, assumem um papel centralizador nas práticas artísticas, e através do regime da legitimação dos artistas e agentes culturais, sendo que o prestígio que se obtém com estas práticas não depende do mérito ou de dotes intrínsecos, e muitas vezes passa completamente ao lado desse tipo de avaliações ou critérios. Por isso, a cultura tornou-se o principal inimigo da arte, na medida em que não passa de uma fachada que, com o seu modelo restritivo, premeia as vozes e os projectos que actuam de acordo com o horizonte da propaganda estatal. George frisa que estes indivíduos que gozam de legitimidade no campo cultural, dependendo da prodigalidade das instituições que apoiam a produção cultural, cedem às conveniências impostas por essas ligações institucionais, as quais tendem a funcionar de acordo com a moral hedonista do consumo e a reproduzir a hierarquia das obras e dos gostos legítimos, que não ameaçam nem abalam as estruturas da cultura estabelecida. “Cada vez mais dependentes dos orçamentos do Estado central e das autarquias, e cada vez mais preocupados em manter os seus cargos e em garantir subsídios, muitos desses indivíduos abdicaram de uma parte significativa da sua autonomia artística e da sua liberdade crítica e de pensamento.” Isto fica patente nas fotografias em que, em diversos momentos, os livreiros da Poetria fizeram questão de partilhar notícias e fotografias em que aparecem ao lado de Rui Moreira e até de Marcelo Rebelo de Sousa, num regime pornográfico que se tornou bastante comum e mostra como a nossa classe artística e cultural está submetida a este regime de patrocínio por parte dos poderes públicos. E a hierarquia estatal não dispensa, hoje, estas redes de cadeias em favor, estes jogos de influência, sendo que, na promoção da sua imagem, “além das dotações globais do Ministério da Cultura, as administrações locais doispõem, nos seus orgamentos regionais, de recursos próprios para financiar operações ou projectos propostos localmente e seleccionados pelos notáveis locais (autarcas, vereadores), sem concursos formais, em que a escolha dos criadores e produtores resulta da imposição pura e simples das estruturas político-partidárias locais, e sem que se perceba a congruência com qualquer política cultural”. E George adianta que o problema com o estado actual dos financiamentos à cultura, por via destes deletérios contratos de ajuste directo, é “ter-se criado para alguns produtores uma espécie de estatuto especial isento de escrutínio (e ninguém tem o direito, tratando-se de dinheiros públicos, de se furtar às obrigações que a moral cívica impõe a todos os cidadãos)”. O que está em causa nesta forma de tratamento privilegiado, como aquele de que foi alvo no Porto a livraria Poetria, com base nesses argumentos elásticos que permitem sempre distinguir este projecto, fingindo que não se institui desse modo uma reserva exclusiva, excluindo outros, é uma forma de trair o ideal igualitário da democratização cultural, em que o patrocínio estatal desequilibra a concorrência em torno dos recursos públicos (sempre insuficientes) e alimenta o funcionamento dos mecanismos de segregação. Como sublinha George, ao cuidar sempre dos mesmos artistas ou entidades, protegendo-os, este “Estado-patrão” permite que alguns escapem aos constrangimentos impostos pelo mercado. “As análises do sector cultural esquecem-se muitas vezes destas questões embaraçosas, relacionadas com as desigualdades sociais (e as desigualdades sociais não são independentes das desigualdades culturais, e vice-versa); com o controlo dos meios de difusão e de distribuição (publicidade, dar-se a conhecer), bem como das condições (as regras e a sua prática) que tornam o discurso possível no espaço público e formam a base do discurso legítimo e legitimador”, esclarece George.