Começa a contagem decrescente para a entrega do Orçamento do Estado, mas os economistas contactados pelo Nascer do SOL mostram-se pouco otimistas em relação às medidas que serão apresentadas no documento. Apesar de reconhecerem que será uma estreia de Fernando Medina – o OE deste ano já estava fechado por João Leão –, acreditam que em matéria fiscal o país irá assistir a poucas ou nenhumas surpresas. Uma situação que ganha maior incógnita depois da fricção entre o ministro da Economia e o ministra das Finanças.
E vamos ao episódio da semana. Costa Silva defendeu uma descida do IRC no Orçamento do Estado para 2023, mas que seja «transversal». Esta medida ainda está sujeita a negociação, tanto em sede do Orçamento que será conhecido no próximo dia 10 de outubro como no acordo de rendimentos e competitividade, mas recordou o discurso da tomada de posse do Governo, em que foi «claramente» manifestada a intenção de reduzir o IRC, uma vez que «o Programa do Governo fala numa redução seletiva do IRC».
O ministro da Economia reforçou essa intenção: «A minha esperança é que essa redução [de IRC] não seja só seletiva, mas seja global», disse, lembrando que «era um sinal muito grande que se poderia dar a todo o nosso tecido produtivo». Ou seja, pressão sobre o ministro das Finanças que tem vindo a alertar para as restrições orçamentais e para os riscos e incerteza em 2023.
Uma posição que levou Fernando Medina a afastar o cenário de o Governo estar a falar a duas vozes. «Não seria próprio nesta fase trazermos para fora da mesa da negociação aquilo que está a ser tratado na mesa de uma negociação complexa que envolve muitos parceiros. Na matéria do IRC, como em toda a matéria do acordo, o Governo tem uma voz. A voz que é definida coletivamente, a voz do primeiro-ministro e dos ministros que participam na negociação. Pelo menos, irei aguardar pelo final da negociação para falar sobre o assunto», afirmou.
Mas o que esperar? João César das Neves, António Bagão Félix e Eugénio Rosa fazem a antevisão.
João César das Neves ‘A crise vem de fora e não podemos evitar o choque’
«O próximo Orçamento vai ser marcante, porque é primeiro do novo ministro –o anterior não conta, pois já estava feito. A inflação facilita a coleta dos impostos, mas cria várias pressões sobre a despesa (salários, pensões, apoios) e em breve o efeito da subida de juros começará a sentir-se. Vai ser um teste à nova atitude da maioria absoluta face ao equilíbrio orçamental». A garantia é dada por César das Neves, quando questionado sobre o que esperar do próximo documento.
O economista considera que o OE deveria contemplar medidas como a redução do IRS e do IRC: seria «uma ajuda importante para as famílias e para as empresas com vista a enfrentar a subidas de preços», diz, defendendo mesmo que estas hipóteses são «melhores do que algumas das medidas já anunciadas».
No entanto, diz que duvida que o Governo opte por essa via, por entender que «seria um grande risco orçamental».
Para César das Neves não há medidas óbvias e, por isso, admite que é um «Orçamento bastante difícil de fazer». E vai mais longe: «O Governo sofre uma grande pressão política de funcionários e pensionistas, e mesmo famílias e empresas, os quais ainda não foram bem compensados das perdas; ao mesmo tempo, tem de reduzir o défice que subiu muito com a pandemia, e a dívida tão alta rapidamente se torna insustentável num quadro de taxas de juro mais elevadas.
E o problema não fica por aqui. O economista admite que, depois de o Governo «ter apregoado durante anos como grande sucesso político o controle do défice, dificilmente poderia justificar uma nova emergência financeira».
Já em relação ao possível reforço das medidas de apoio às famílias e às empresas, além das que foram apresentadas pelo Governo, o economista acredita que não haverá margem para ir além do que já foi anunciado. «Depois de todo barulho feito nas medidas recentes, anunciando-as como a solução, decerto o Governo vai dizer que elas chegam».
Quanto ao cenário macroeconómico, reconhece que há muitas incertezas face ao aumento da inflação e das taxas de juro. «A situação é muito nebulosa, mas o quadro económico está crescentemente negativo».
E face a esse cenário admite que, do lado do Governo, há pouca margem de manobra. «A crise vem de fora e nós não podemos evitar o choque. Só o podemos gerir, distribuindo a carga entre os grupos sociais».
António Bagão Félix ‘É irónico ser o Estado quem mais beneficia da inflação’
Para Bagão Félix, os referenciais macroeconómicos terão de ser revistos, sobretudo quanto à inflação, que será maior do que a prevista em documentos anteriores. Já o crescimento terá de ser ajustado face ao travão da política monetária para combater a inflação persistente, já considerando os riscos de recessão técnica, cenário já assumido na Alemanha, onde se prevê que o PIB comece a cair já a partir de outubro.
Desta forma, Bagão Félix entende que Orçamento de Estado para o próximo ano vai também enfrentar o aumento nominal considerável da despesa pública, sobretudo devido às despesas relacionadas com pessoal, com juros e despesa social.
Quanto aos impostos, acredita que não haverá grandes mexidas em 2023. «Primeiro, porque há a obsessão tributária, aqui e na Europa, de tudo querer resolver mantendo ou até aumentando a carga fiscal. Depois, porque o Governo não dá indicação de querer propor reformas estruturantes neste domínio, antes pequenos (e às vezes) ilusórios ajustamentos» e dá, como exemplo, o que se verifica com a chamada ‘tributação de lucros anormais’, depois do discurso da presidente da Comissão Europeia.
Uma situação que, no seu entender, representa, «um disparate». E elenca várias razões: «Primeiro, porque quem beneficia de uma tributação adicional é o Estado, não os consumidores. Segundo, porque considero preferível uma solução que promova o reinvestimento dos lucros excecionais».
E face a este cenário, o ex-ministro considera que o Governo deveria impedir a distribuição dos dividendos desta parte dos lucros aos acionistas, que deveriam ser reinvestidos na própria empresa. «Se tal não acontecer, então e só nessas circunstâncias deveria considerar a windfall tax».
Mas vais mais longe nas suas críticas: «É irónico que, sendo o Estado quem mais beneficia da inflação (vejam-se os milhares de milhões de mais receita designadamente do IVA e outros impostos indiretos), deveria ser ele o mais ‘taxado’. Como o Estado não lança impostos sobre ele próprio, então que redistribua solidária e totalmente esse aumento de receitas».
Bagão Félix defende assim que, em termos de IRS, deverão ser atualizados os escalões pela taxa de inflação (ao contrário do que sucedeu este ano) e reduzir a taxa liberatória de 28% sobre a poupança. Já em relação ao IRC garante que a descida da taxa deveria ser feita «por uma via seletiva e não transversal».
Quanto a medidas de apoio às famílias, diz apenas que «se torna imprescindível favorecer as que têm menos recursos e que sofrem – mais intensamente do ponto de vista da proporção dos seus gastos – a subida de preços na alimentação de bens essenciais».
Eugénio Rosa ‘Devia ser promovido fortemente o investimento público’
«Uma coisa é o Orçamento do Estado que o país e os portugueses precisam devido à situação dramática que enfrentam, outra coisa diferente é o Orçamento que o Governo, dominado pela obsessão do défice, de ‘contas certas’, submisso à Comissão Europeia e ávido por aplausos de Bruxelas, deverá apresentar», critica Eugénio Rosa.
De acordo com o economista, o documento que o país e os portugueses necessitam deveria apoiar «fortemente» as famílias e as empresas, mas não com «mini medidas», como aconteceu até agora. «O país precisa de fortes medidas para fazer face à grave crise económica e social que enfrenta causada pelo efeito ricochete das sanções e da sua utilização numa guerra económica aprovada em Bruxelas, sem avaliar e sem se preocupar com as suas consequências dramáticas para os povos da UE, nomeadamente para os portugueses».
Aliado a isso, defende um documento que promovesse fortemente o investimento público, para que este pudesse dinamizar o privado e pusesse uma travão «à profunda degradação da administração pública», nomeadamente do SNS, «disponibilizando meios para pagar remunerações dignas aos seus trabalhadores e para tornar a administração pública atrativa para os trabalhadores com qualificações e com competências elevadas, o que não acontece atualmente».
Opções que não deverão estar no foco do próximo Orçamento, antecipa. «Se analisarmos a execução do Orçamento até se fica com a ideia clara de que isso não será a opção deste Governo de maioria absoluta, que se sente imune ao sofrimento dos portugueses e à destruição da economia do país, apesar do aumento da pobreza no país, da redução brutal do poder de compra dos trabalhadores e dos pensionistas, da degradação da situação de milhares de empresas devido à escalada de preços, nomeadamente de energia e de o país estar a avançar a passos largos para a recessão económica», salienta.
Quanto à revisão dos impostos, Eugénio Rosa defende o IRS em detrimento do IRC, dando como exemplo a execução até julho. «Nessa altura, o Estado tinha arrecadado de IRS 7.336 milhões e de IRC apenas 4.385 milhões. Já para todo o ano de 2022, o Orçamento prevê que as receitas de IRS atinjam 15.202 milhões e as de IRC somente 5.211 milhões, ou seja, pouco mais de um terço das de IRS. Portanto, as empresas e, nomeadamente, os grandes grupos económicos, já pagam pouco relativamente ao que pagam trabalhadores (91,8% dos rendimentos declarados para efeitos do IRC são de trabalhadores e pensionistas)».
E, face a estes números, vai mais longe: «As grandes empresas estão a fazer uma forte pressão com a justificação de que, baixando o IRC, aumentam o investimento. A teoria e a prática económica já mostraram que isso é falso. A redução do IRC beneficia fundamentalmente os grandes grupos, pois aumentará ainda mais os enormes lucros que estão a obter aproveitando a crise».
Já em relação às micro e pequenas, lembra que existe uma taxa de IRC de 17% (das 521.985 empresas que fizeram declarações em 2020, apenas 206.936, ou seja, 39,6% pagaram IRC).
Crise no Governo?
Depois do episódio em torno da redução do IRC, os alarmes voltaram a disparar devido às declarações de Costa Silva sobre o abrandamento da economia neste último trimestre. «Vamos entrar no inverno. Se chegarmos ao inverno e a Rússia pura e simplesmente cortar o abastecimento de gás à Alemanha, vamos ter uma convulsão em termos desmarcados. Temos de nos preparar para isso». No entanto, remeteu os números do próximo ano para Fernando Medina.
Para Paula Espírito Santo, especialista em ciência política, estes episódios mostram que não se está a assistir a uma articulação entre duas pastas que têm algumas convergências e proximidades. «Até pelo contrário, o que verificamos é que estamos a assistir a uma incapacidade de comunicação pública que seja coerente e que faça sentido, pois tudo mostra uma verdadeira contradição», analisa. Para a especialista, há uma leitura: «aparentemente a economia está a querer fazer a dianteira sobre as finanças mas depois publicamente também dá má imagem do Governo».
E agora? «Publicamente, Fernando Medina tem muito mais bases para vingar as suas posições, já foi autarca e tem mais notoriedade pública e provavelmente a sua palavra será sempre muito mais respeitada nas decisões que serão tomadas, até pela proximidade que tem com António Costa», admite Paula Espírito Santo, apesar de reconhecer que os dois têm uma grande proximidade com o primeiro-ministro.
Já em relação ao comportamento de Costa Silva garante que dá sinal «de alguma imaturidade política, porque poderá sair diminuído ou colocado em xeque», daí considerar que tem menos capacidade de conseguir resolver aquilo que é uma contradição anunciada.
No entanto, Paula Espírito Santo acredita que, até haver fumo branco no Orçamento do Estado, o primeiro-ministro não irá fazer nenhum tipo de clarificação em relação a este caso, uma vez que entende que isso seria desautorizar ou diminuir uma das duas pastas que são fundamentais para o país. E até lembra o episódio que se verificou com Pedro Nuno Santos em relação ao novo aeroporto. «Estamos perante pastas e situações diferentes e continuamos sem saber em que circunstâncias é que isso aconteceu e que pressões houve na altura».
Já em relação a este caso acredita que não haverá necessidade de António Costa intervir, até porque, se «o fizer dá a entender que não há capacidade de diálogo dentro do Governo e quando as duas pastas devem estar muito próximas do que aquilo que aparentam estar».
E deixa um alerta: «O que vai ser decisivo vai ser a discussão do OE e algumas destas medidas que têm de ser concretizadas com o Governo provavelmente vão ser muito mais discutidas e mais descortinadas publicamente, mas acho que nas próximas três semanas vai haver uma mensagem menos pública sobre as decisões a tomar depois do Orçamento do Estado. E também aí saberemos se há boa ou má articulação entre os dois».
nuvens escurecem
O Bundesbank prevê uma recessão na economia alemã no inverno devido à escassez de fornecimento de energia causada pela guerra da Rússia contra a Ucrânia. No boletim de setembro, publicado no início da semana, os economistas veem sinais crescentes de que a economia alemã entrará em recessão, o que consideram ser «um declínio acentuado, grande e duradouro da produção económica».
Os alarmes também já soaram em relação à maior economia mundial, mas aí as contas são diferentes. No segundo trimestre, a economia norte-americana contraiu 0,6%, ou seja caiu dois trimestres consecutivos e, como tal, o país encontra-se, por definição, em recessão técnica. No entanto, os EUA não utilizam o conceito de dois trimestres consecutivos de contração para declarar uma recessão, ao contrário da maioria das principais economias mundiais. Para oficialmente existir recessão nos Estados Unidos é necessário que o National Bureau of Economic Research (NBER), um grupo independente de oito economistas, declare que a maior economia mundial se encontra em recessão.
Se para o último trimestre do ano, os dados não são animadores para 2023 pioram. Os especialistas da Allianz Trade, acionista da COSEC, mantêm a estimativa de um crescimento de 6,3% do produto interno bruto (PIB) de Portugal neste ano de 2022. Mas para o próximo ano antecipam agora uma contração de 0,3%, quando, em julho, acreditavam que a economia nacional poderia expandir 1,7% em 2023.
Quanto à inflação foram revistas em alta as suas previsões, devendo situar-se nos 7% neste ano e nos 4,3% em 2023. Anteriormente, a estimativa era de uma inflação de 5,6% em 2022 e de 3% no próximo ano. «A guerra na Ucrânia, a escalada dos preços da energia e a quebra de confiança das empresas e famílias continuam a penalizar a evolução das economias», daí estimarem que «a zona euro irá entrar em recessão no próximo ano» e, como tal, a médio prazo, as perspetivas económicas não são muito animadoras. «Os preços da energia devem continuar elevados, a limitação no fornecimento de gás natural, conjugada com a incerteza geopolítica persistente e com as limitações ao nível das políticas, fazem aumentar os receios de um prolongamento da recessão em 2024. A Alemanha, que tem uma economia assente numa indústria fortemente exportadora, será uma das geografias que vai enfrentar um contexto económico desafiante», afirma Ludovic Subran, economista-chefe da Allianz.
Também a taxa de inflação não parece dar tréguas. Entre as quatro principais economias do euro, a Alemanha deverá ser uma das que estará a braços com uma das taxa de inflação mais elevadas: 8,5% neste ano e 6,2% em 2023. No caso da economia francesa, este indicador deverá atingir os 5,5% em 2022 e 4,3% em 2023. Já a Espanha deverá fechar este ano com uma taxa de inflação de 9% e no próximo ano atingir os 5,7%.
À escala mundial, de acordo com o mesmo estudo, as previsões apontam para que a taxa de inflação neste ano seja de 7,9% e de 5,3% em 2023. Os Estados Unidos da América, a maior economia do mundo, deverá registar uma inflação de 7,8% em 2022 e de 2,9% no próximo ano. Já a China, a segunda maior economia do mundo, deverá terminar o ano com uma subida dos preços na ordem dos 2,1% e de 2,2% no próximo ano.
Para Mário Martins, analista da ActivTrades, «é expectável um arrefecimento da economia, que levará quase inevitavelmente a uma recessão, sendo a única incógnita a dimensão da contração». E lembra que o «pior cenário para a economia da zona euro está a concretizar-se, nomeadamente na redução da atividade económica industrial, devido ao preço do gás natural, ao que se junta a redução do consumo privado decorrente do aumento dos juros, que irá condicionar significativamente a disponibilidade financeira das famílias e empresas».
Uma opinião partilhada por Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa. «A Alemanha é, a seguir à Espanha, o maior destino das exportações portuguesas. Além disso, a Alemanha é o maior contribuinte líquido da UE, logo uma recessão económica germânica é sinónimo de dificuldades financeiras acrescidas nos outros países membros», diz, reforçando o peso da perspetiva de recessão na economia alemã.
E o cenário de Portugal entrar em recessão é considerado como «uma probabilidade cada vez mais exequível à medida que o inverno se aproxima e as perspetivas de uma recessão da maior economia europeia é uma certeza para muitos analistas», conclui Paulo Rosa. «Uma contração do motor económico europeu poder-se-á alastrar facilmente às restantes economias da zona euro, nomeadamente as mais vulneráveis como a portuguesa. A aceleração das subida dos juros pelo BCE também terão um impacto significativamente negativo na economia nacional».
E os alertas não ficam por aqui. «A crise energética, mais acentuada na Europa, e a subida dos juros pelo BCE para travar a inflação mais alta das últimas décadas, e diminuir o diferencial das taxas de juro do euro relativamente ao dólar americano, elevam cada vez mais as incertezas quanto ao futuro», nota o economista, considerando que a «incerteza é uma das principais variáveis que retraem os agentes económicos, culminando muitas vezes em recessão». Ou seja, uma bola de neve que se torna mais difícil de travar à medida que rola. «Diante das perspetivas de diminuição dos gastos pelas famílias e redução dos investimentos pelas empresas, é bem possível uma revisão em baixa pelo Executivo português das anteriores metas económicas mais otimistas», remata.