Neste preciso momento, por todo o lado, há um número incontável de pessoas – e, aqui, falar em milhões é apenas uma forma exclamativa de se pontuar a coisa, mas que não chega para ser minimamente preciso, ou dar uma boa ideia da extensão a perder de vista deste mal – que estão embrenhadas em tarefas redundantes e desoladoras, uma fieira burocrática de actividades que não parecem cumprir qualquer fim ou propósito claro. Por toda a parte disseminou-se esta monumentalidade das acções que são realizadas sem que aqueles que as praticam conheçam ou possam estar inspirados pelo fio e as consequências em que participam. Deste infindável observatório, a vida começa a parecer-nos uma completa perda de tempo, uma máquina perecível e imbecil cujo único fim parece ser o de nos manter na linha, ocupados. Como o relógio que a pontua de uma forma cada vez mais impositiva, a realidade vai-se tornando uma engrenagem dolorosa, uma organização do estilicídio, cadeia de montagem que indica sempre e só a fase seguinte. E não parece haver saída. É um mal que nem nos oferece o consolo de nos sentirmos as vítimas de uma medonha conspiração. Toda uma estrutura que produz intimamente essa sensação de falta, de ausência, um imenso esforço que parece ter apenas como fim tornar-nos existências vacantes, frívolas, sem nenhuma verdadeira ambição para além do egoísmo pessoal e da tentativa de obter algum lucro pessoal, cedendo aos consolos menores do bem-estar. Por todo o lado, não faltam “aqueles que preferiam estar a fazer algo de útil”, e é precisamente a esses que David Graeber dedicou o seu livro “Trabalhos de Merda”, publicado recentemente com a chancela das Edições 70.
Tudo começou na primavera de 2013, como relembra o autor, que foi incitado pelo editor de uma revista radical chamada Strike! a publicar um desses textos provocadores que mais ninguém tivesse a ousadia de escrever. E foi esse o isco que permitiu a Graeber esboçar um breve texto a partir de ideias que andavam já a fermentar no seu espírito, um conjunto de suspeitas “Sobre o fenómeno dos trabalhas de merda”. Esse foi o título do curto texto que Graeber escreveu e que começou norteado apenas por um palpite, essa mesma suspeita que se adensa e ajuda a fazer de nós seres profundamente cínicos, por nos sentirmos figuras de uma relação universal degradante, uma galeria completa de falsários, vítimas e carrascos. Parece que vivemos à sombra de uma inexorável montanha de processos, os quais se acumulam sem nos dar margem para questionar este regime, e que, pela simples virtude da sua capacidade de submeter um número cada vez maior de pessoas, opera como um sistema de purgas e perseguições, mas sem aquele elemento malévolo, a infâmia que caracteriza a tirania, antes como uma chantagem que se exerce a despeito das nossas convicções, exterior a todo o processo de subjectividade humana, indiferente aos nossos apelos, como uma forma de governo que mergulha num murmúrio indistinto a vida, viciando-a, infringindo todas as formas, todas as relações linguísticas, sociais e económicas, subjugando tudo a um princípio organizacional ou logístico.
Entramos, assim, no regime das distopias mais descaradas, aquelas em que o próprio elemento humano é visto como algo que deve ser sanado, uma excrescência sentimental desnecessária. Põe-se fim ao regime dos contos de fada que sempre embalaram as sociedades, os princípios e valores articulados em torno de ideais colectivos fortes e inspiradores, e passa a funcionar uma coesão de ordem mais pragmática, relativa a funções de ordem gestionária, adaptadas aos processos financeiros, e a uma eficácia de redução de custos e exponenciação dos lucros. "Extensos grupos da população, na Europa e na América do Norte em particular, desbaratam a sua vida activa a desempenhar tarefas que, secretamente, crêem não precisar realmente de ser desempenhadas”, diz-nos Graeber, adiantando que o dano moral e espiritual que resulta desta situação é profundo. "É uma cicatriz na nossa alma colectiva. E, no entanto, ninguém fala nisso.”
Na investigação em que alarga as conclusões daquele breve ensaio que gerou um pequeno alvoroço internacional, produzindo um sem número de sequelas e deixando claro que o autor tinha tocado num ponto nevrálgico da forma como se organiza a sociedade do trabalho no mundo desenvolvido, ele descortina um efeito bastante pernicioso neste modelo, defendendo que, a certa altura, a classe dominante se terá dado conta de que “uma população feliz e produtiva com tempo livre disponível é um perigo mortal”. “E, por outro lado, o sentimento de que o trabalho é um valor moral em si mesmo, e de que aquele que não esteja disposto a submeter-se a um qualquer tipo de disciplina intensa de trabalho na maior parte das suas horas de vigília não merece nada, acaba por ser extraordinariamente conveniente para ela.”
Uma das revelação cruciais da investigação que Graeber levou a cabo permitiu-lhe compreender como a seriedade do trabalho tem vindo a introduzir esse elemento que permite encarar a vida e o gozo do tempo livre como uma impertinência, e como, embora a maioria de nós reconheça o aspecto tirânico e avassalador do actual regime laboral, acabamos por acatar objectivamente a sua chantagem, convencidos de que essa acaba por ser a melhor maneira de defender os nossos interesses, e ainda que também nos sintamos confusos com o cenário deste carrossel de desenganos, preferimos alinhar e participar no jogo, à medida que buscamos soluções individualistas para procurar abrigo para a nossa vulnerabilidade perante este mundo em rápida transformação, isolando-nos e tentando ficar à margem desse ambiente de dissolução e catástrofe, entre crispações ideológicas residuais e lantejoulas de bem-estar ocidental, com uma imagem do mundo em recuo face a fascínios postiços e ilusões, que, com a crise acre do socialismo, contaminam a cultura, e impõem esses mitos de celulóide, essas ideias de influência e celebridade em ambientes virtuais, os quais constituem o mapa de uma alienação e abdicação da realidade. Este é um cenário que se aproxima daquele descrito por Don DeLillo no romance Zero K: “Não será a treva total e o silêncio absoluto. Sabem isto. Já vos explicaram. Primeiro, irão ser submetidos à revisão biométrica, dentro de escassas horas. A edição cerebral. A seu tempo, irão reencontrar-se. A memória, a identidade, o eu, num outro nível. Este é o fito principal da nossa nanotecnologia. Será que vocês estão legalmente mortos, ou ilegalmente mortos, ou nem uma coisa nem outra? E isso importa-vos? Terão uma vida fantasmagórica dentro da caixa craniana. Pensamentos flutuantes. Uma espécie de apreensão mental passiva. Ping ping ping. Como uma máquina recém-nascida. (…) Este mundo, o mundo à superfície – prosseguiu ela –, está a perder-se para os sistemas. Para as redes transparentes que aos poucos impedem o fluxo de todos os aspetos da Natureza e do caráter que distinguem os seres humanos dos botões dos elevadores e das campainhas das portas. (…) Nunca sentiram isto? A perda da autonomia. A sensação de nos transformarmos em entidades virtuais. Os aparelhos que usamos, os que levamos para todo o lado, de divisão para divisão, minuto após minuto, inevitavelmente. Nunca se sentem desencarnados? Todos os impulsos codificados de que dependem para vos guiar. Todos os sensores na divisão que vos estão a vigiar, a escutar as vossas palavras, a registar os vossos hábitos, a medir as vossas capacidades. Toda a informação ligada entre si, concebida para vos incorporar na megainformação. Não há qualquer coisa que vos deixa desconfortáveis? Alguma vez pensam nos tecnovírus, todos os sistemas bloqueados, uma implosão global? Ou será uma coisa mais pessoal? Será que se sentem mergulhados num horrendo pânico digital que está em toda a parte e em lugar nenhum?” Assim, e voltando as transformações a que estamos a assistir nos nossos dias, Graeber nota que, ainda que as empresas levem a cabo reduções implacáveis, os lay-offs e aumentos de produtividade recaem invariavelmente naquela classe de pessoas que está de facto a fabricar, transportar, consertar e manter coisas. “Por meio de uma estranha alquimia que ninguém consegue explicar efectivamente, o número de burocratas assalariados parece aumentar nos últimos tempos e um número crescente de empregados apanha-se – na verdade, uma realidade não muito distinta dos trabalhadores soviéticos – a fazer, oficialmente, semanas de trabalho de quarenta ou até cinquenta horas, conquanto trabalhe, na prática, apenas quinze horas, como Keynes previra, visto que o resto do tempo é passado a organizar ou a frequentar seminários motivacionais, a actualizar os perfis do Facebook ou a descarregar séries.”
Em “Infocracia. A Digitalização e a Crise da Democracia”, um livro que estuda a partir de outro ângulo este mesmo problema, Byung-Chul Han entende que os arautos deste novo sistema baseado cada vez mais na optimização dos processos económicos e sociais com vista a um aumento das nossas capacidades produtivas, essas figuras a quem ele chama os dataístas, uma vez que o seu sistema é baseado em soluções propostas por meio da análise de metadados e regido por algoritmos, “têm em mente uma sociedade capaz de prescindir por completo de política”. “Se um sistema social, argumentariam, possui estabilidade suficiente, isto é, se em todas as camadas sociais existe uma vasta conformidade com o sistema, torna-se desnecessária a acção política em sentido enfático, a qual teria produzido uma nova situação social. Na qual os conflitos de classe e de interesses se reduzem, os partidos também perdem significado e cada vez se tornam mais semelhantes. Os partidos e as ideologias, continuariam os dataístas a argumentar, só fazem sentido numa sociedade em que predominem as desigualdades sistémicas, como injustiça distributiva ou diferenças de classe a grande escala. De uma perspetiva dataísta, a democracia partidária deixará de existir num futuro próximo, dando lugar à infocracia como pós-democracia digital. ”, diz-nos Chul Han. “Os políticos serão então substituídos por especialistas e informáticos, que administrarão a sociedade para lá de pressupostos ideológicos e independentemente dos interesses do poder. A política será substituída por gestão de sistemas baseados em dados. As decisões socialmente relevantes tomar-se-ão por meio de big data e de inteligência artificial. Continuará a haver discursos políticos, mas passarão para segundo plano. A optimização do sistema social prometerá, não um aumento de discurso e de comunicação, mas um aumento de dados e de algoritmos inteligentes, ou seja, a felicidade para todos.” Mas para David Graeber o que se passa é precisamente o contrário, uma forma de intromissão da ideologia em todos os aspectos da nossa vida, ou seja, um triunfo em toda a linha da biopolítica, conceito de Foucault para tentar caracterizar a forma como o homem, enquanto ser vivo, isto é, na sua realidade biológica, se ter tornado, na modernidade, objecto dos cálculos e das decisões do poder político. Assim, Graeber diz-nos que a ideologia neoliberal que dominou o mundo desde os dias de Thatcher e Reagan representou efectivamente o oposto daquilo que afirmava ser, ou seja, que, na verdade, nunca foi outra coisa senão um projecto político disfarçado de projecto económico. Este autor, antropólogo e activista anarquista, que morreu, em 2020, de pancreatite aguda, entende que é devido à ganância e a um certo síndrome de produtividade compulsiva que nos é “pedido que continuemos a escravizar-nos em prol dos lucros de outros à custa das nossas ambições não remuneradas”. Por outro lado, e de acordo com Chul Han, os dataístas apoiam-se numa espécie de álibi, subscrevendo aquela morte do homem que Foucault já mencionou em “L'Ordre des choses”: “O homem é uma invenção que a arqueologia do nosso pensamento mostra com facilidade ser recente. E talvez ter o fim próximo. (…) Então pode muito bem apostar-se que o homem se apagará, como um rosto na areia na orla do mar.” Mas o autor de origem coreana apressa-se a acrescentar que “esse mar, cujas ondas apagam o rosto na areia, é agora um infinito oceano de dados.”
Ora, com “Trabalhos de Merda”, Graeber procurou transcender o que poderia ser uma mera denúncia enfática, e desenvolveu uma análise das transformações que estão actualmente em curso e que apontam para uma desumanização progressiva dos processos laborais. “Gostaria que este livro fosse uma seta apontada ao coração da nossa civilização”, diz o autor, e é certamente isso o que consegue fazer com este livro, que se constitui como uma dessas leituras que abalam decisivamente a nossa consciência e a forma como olhamos para o mundo ao nosso redor, de tal modo que se pode dizer que este é um daqueles livros que, depois de lidos, não podemos mais esquecer o que nos disse. É um livro que nos fala, e que nos instiga a enfrentar algo de absolutamente perturbador no mundo em que vivemos. Algo que indicia um futuro em que dificilmente se entre sem abdicar de toda a esperança “Existe algo profundamente errado naquilo em que nos troámos. Tornámo-nos uma civilização assente no trabalho – e nem sequer no trabalho ‘produtivo’, mas no trabalho cujo fim e sentido residem em si mesmo. Chegámos ao ponto de acreditar que homens e mulheres que não se esforçam mais do que desejariam em trabalhos de que não gostam especialmente são más pessoas, indignas de amor, cuidado ou assistência por parte das suas comunidades. É como se colectivamente tivéssemos concordado com a nossa própria escravidão. A primeira resposta política à nossa tomada de consciência de que entregamos metade do nossos tempo a actividades que são absolutamente absurdas ou até contraproducentes – normalmente sob ordens de alguém de quem não gostamos – tem sido amargura e ressentimento por existirem porventura outros por aí que não caíram na mesma armadilha. Por conseguinte, o ódio, o ressentimento e a desconfiança tornaram-se a cola que mantém a sociedade unida.”