Texto de Paulo Bugalho
Ter-se-á mais ou menos como ponto assente que toda a literatura consiste em falar ao lado. Há um viés inerente, o da própria arte, e é desse lateral colóquio que nasce um entendimento fulcral. O bom texto nunca é sobre o que apresenta, mas sobre aquilo que o leitor (o bom leitor) entende estar por baixo da mesa. Por inerência do meio, a voltagem do jogo alusivo corre mais rápida na poesia. Já a ficção tem hábitos calmos e talvez aquela perturbação que o leitor nota à superfície da história avise, desde logo, sobre a vida de Ingeborg Bachmann, que entrava com este romance, pela primeira vez, nos baixios da escrita narrativa (onde, por limite biológico, não chegou a prosseguir viagem).
Lê-se um triângulo amoroso, esquemático afinal, tanto em estilo como em intenções, em cujo único ângulo (já dissemos que é uma figura esquisita) jaz uma mulher amargurada, confundível com a autora, não fosse ela cuidadosa em não a nomear e muito reticente em defini-la, sequer na lista dos personagens, onde antes de entrarmos nos esclarece dos detalhes que compõem os outros intervenientes.
Devoram-na, a esta mulher, primeiro um fogo-fátuo passional e logo depois angústias difíceis de nomear, mesmo usando a agilidade conferida pela sublimação literária. Avistamos traumas clássicos (um pai que abusa e manieta), e um mal de existir que é tanto psíquico e pessoal (indecisão, falhas de carácter, inseguranças abissais, patologias) como de abrangência histórica (a Viena culpada do pós-guerra).
Ao fundo das linhas que divergem da protagonista estão dois homens (Malina, que dá nome ao livro, e Ivan, aquisição recente), providenciais e ameaçadores, variantes de um masculino perfeito, indiferente, sensato e, reminiscência das reminiscências, paternal (pai, pátria, amante, é outro dos triângulos vísiveis). Contudo, os selos que definem os personagens oscilam; a mulher, Malina e Ivan parecem trocar entre si gestos e propriedades, como se estas fossem as peças de um jogo e o jogo o meio para denunciar uma dupla natureza: eles são imagens do real, como convém ao romance, mas também pretextos puros para levar ao fim uma espécie de oração. Senão, leia-se a seguinte linha, proferida num dos diálogos por Malina, o amante mais antigo, a comentar a comoção de Aleksei Leonov, astronauta russo e primeiro homem a caminhar no espaço: “Os seres humanos não mudam assim tanto. Há sempre qualquer coisa que os comove, basta ser infinito ou inimaginável ou insondável, de um negro profundo; passeiam na floresta ou vão para o espaço, levando o seu próprio segredo para o segredo do mundo.”
São palavras que parecem erigidas para se oporem ao desespero da protagonista mas não contribuem como gostaríamos, leitores bondosos que somos, para a purificação dessa alma, antes tentam afundá-la, apontando uma luz que afinal definem como irresgatável, negra e redundante. Os três intervenientes parecem multiplicarem-se uns nos outros, repetindo-se, como se não houvesse grande necessidade de existirem todos ao mesmo tempo (o que talvez devesse alertar o leitor para a eminente necessidade de um desbaste).
São seres vivos, todos, definidos, como qualquer humano, por pormenores práticos; são também figuras exemplares, tipos retirados das histórias primitivas, pulsões simbólicas dos contos medievais, representando um modo de resposta próprio (se tanto) a uma tristeza comum – a deles, a da História e a de cada um desses ordenamentos precários a que chamamos identidade (se cá fora podemos duvidar desta catástrofe universal, opondo-lhe razões concretas ou o simples bom-senso, dentro do livro não, e essa é a prova do seu bom funcionamento).
Gozamos, cumpre dizê-lo, de uma profusão de meios. Alguns diálogos consistem, belíssimos, numa concatenação de estribilhos combinados (santo-e-senhas trocados entre amantes, que não deixam de soar, et por cause, a versos); há capítulos que são pesadelos muito concretos, pontuados por curtas emergências na vigília e outros que recapitulam, em modo mais ou menos perverso, as fábulas ambivalentes dos irmãos Grimm.
Depois das intermissões, e duma gestão magistral dos múltiplos fragmentos, visitamos a final dissolução, talvez mais metafórica que real, embora se torne difícil, neste passo da viagem, distinguir já entre um país e outro. Nesta ambiguidade (ou lateralidade) residem a fraqueza e a força deste romance, visíveis conforme nos encontremos propensos à ficção canónica ou, pelo contrário, resignados a cortar os pulsos com a lâmina da poesia.
A indecisão acontece aos poetas de carreira, mesmo que nunca tenham escrito versos: veja-se, para só citar exemplos lusos, os começos de Herberto Helder (que besta híbrida, o Apresentação do Rosto), a obra de Rui Nunes ou Maria Gabriela Llansol, ou, bem mais perto, essa consumpção de pretextos líricos em forma de narrativa por bons meios esfarrapada, que é Condition Report, de Madalena de Castro Campos. Não é de espantar – conhecem-se versos tão ao lado de qualquer tema que se tornam indistinguíveis da fisga linguística em que foram esticados, e os catapultou para o lado da fala pura.
Aqui não se chega a isso, mas fica-se a passos do abismo: o leitor amante da denotação, que prefere ver a intuir, saber para depois pensar, em vez de ter de pensar para depois saber, pode ou não ficar entusiasmado com uma obra assim. Os outros, ou em resumo o bom leitor, não deixarão de admirar com calma este detalhado mergulho.