Geopolítica e futebol português: entre tribos e impérios

O amor pelo futebol em Portugal tem razões geopolíticas que a própria razão desconhece

Por Virgílio Machado, professor UALG e autor Portugal Geopolítico

Quando o zoólogo britânico Desmond Morris em 1981 deu à luz a sua obra de sucesso A Tribo do Futebol discerniu sobre a animalidade dos adeptos do futebol e suas características sociobiológicas de exclusão e inclusão, equiparadas a laços de sangue, geradores de rivalidades e afirmações de poder como controlo, violência e territorialidade. Sua versão moderna surgiu na segunda metade do século XIX na Inglaterra no coração industrial de um país, então expoente máximo do Império Britânico.

O Império devia criar um desporto-rei com essência política. Desde logo, o poder de atrair o lazer simultâneo a centenas ou milhares de espetadores num palco preparado. À semelhança dos circus no Império Romano. Afirmava-se também a superioridade da industria. Guarda-redes, defesa, meio-campo e avançados faziam parte de uma cadeia sequencial linear, progressiva e profunda onde o triunfo está reservado à organização, o coletivo. Neste, a conciliação é possível com uma unidade social, à semelhança de uma família. A equipa de futebol, então associação desportiva, representava ora um bairro ou uma cidade criando laços comunitários e identitários nacionais baseadas nas rivalidades entre cidades e internacionais com outros países ou nações. 

A ligação do futebol ao Império criou seus desafios. Às hierarquias coloniais, por exemplo, quando, na França congolesa dos anos 50, jogadores dos clubes nativos recusavam calçar botas europeias, preferindo jogar descalços. Em 1998, no Mundial em França, o Irão tirou desforço do imperialista americano, com a sua seleção de futebol a ganhar 2-1 à dos Estados Unidos, catapultando o país para um amor inaudito ao desporto. 

E Portugal? A sua história político-social acompanhou a do futebol. Os atrasos na industrialização e o ultimato inglês de 1890 são contemporâneos da introdução do desporto no país, em clima de rivalidade com a Inglaterra e nos alvores de uma revolução nacionalista que destituiria a monarquia em 1910. Nesses tempos, nasciam os principais clubes de futebol atuais.
Num país profundamente agrícola em que os laços sociais se baseavam na família, só com a industrialização do lazer, trabalhando o corpo e desenvolvendo o espírito, com o Estado Novo, o futebol se tornaria desporto de massas, com os contributos da rádio e televisão em décadas sucessivas. Conveniente para uma organização política que inauguraria a Exposição do Mundo Português em 1940, retratando um modelo colonial e ultramarino onde um desporto nascido num Império se inseriria favoravelmente. 

O auge desta conceção, por coincidência histórica deu-se em 1966, quando a equipa do império ultramarino português encabeçada por Eusébio, nascido em África, defrontou a rival congénere inglesa numa semifinal do Mundial em Inglaterra. Sabemos o resultado e a rivalidade renascida eterna que se forjou. 20 anos depois a desforra obteve-se no Mundial do México. Mas Portugal sairia inglório desta competição. A História tem as suas manhas, redes e padronizações.

Portugal teve transições políticas rápidas de tribos para Impérios ou vice-versa. Com os Lusitanos e sua derrota perante o Império Romano. Mais tarde, o fim do Império no Brasil originou disputa pelo poder dos clãs familiares na monarquia lusa com a Guerra Civil de 1828-1834. Entre as tribos e Impérios, o nascimento do futebol moderno acabou por constituir um elemento de agregação inclusivo da identidade geopolítica nacional. 

O amor pela bola está na esfera armilar que compõe a bandeira portuguesa. Com um globo também na sua, o Brasil acompanha-nos. A rede da baliza envolta pela bola triunfante em golo pode ser momento máximo de afirmação de um poder nacional. Que o diga Éder no Europeu de França em 2016. 

O mundo, pelo futebol, fica a nossos pés. Nos dos peregrinos em Fátima, dos emigrantes procurando melhor vida ou dos jogadores de futebol residem esperanças e futuro português. A identidade nacional forja-se no futebol em milhares de anos de nomadismo, de itinerância, de movimento. Nele convivem coletivo e individual. Todos podem aspirar a ser um Cristiano Ronaldo, libertando, como ele, o poder do seu corpo num desporto mágico que permite um todo de cabeça, tronco e, sobretudo, pés, na sua realização. Em suma, de uma individualidade portuguesa no mundo. O amor pelo futebol em Portugal tem razões geopolíticas que a própria razão desconhece.