Uma fé, uma fé crescente, quase telúrica, tem feito como que os adeptos do Benfica pairem, sem praticamente tocarem o chão que pisam, durantes estes últimos dois meses, agarrados à convicção de que a sua equipa estará pronta para se medir com o impossível, mais até do que isso, está ansiosa, desejando que o impossível lhe surja pela frente de forma a provarem que estão mesmo abençoados por uma aura divina que não admite abalos capazes de encherem de escolhos o longo caminho que ainda falta daqui até ao final da época. Ora, todos nós sabemos que, como diria o outro, “isto não vai lá com fezes”. E o treinador Roger Schmidt tratou de o sublinhar ontem mesmo, poucos minutos antes de o jogo ter início: “Só a motivação para hoje não chega!”
Queriam medir-se com o impossível? Pois o mais parecido com impossível que se arranjou aos encarnados nesta fase de grupos foi o Paris Saint-Germain e o seu trio de mágicos inimitáveis – Messi, Neymar e Mbappé. Não é, na opinião de quem escreve estas linhas, o autêntico impossível, como seriam os casos de Liverpool, Bayern de Munique ou Manchester City, equipas que atingem níveis de intensidade asfixiante durante um jogo. O PSG assenta mais na habilidade e na criatividade das suas estrelas do que propriamente num estilo coletivo que as obrigue a porem-nas ao serviço do conjunto. Talvez essa abdicação, se assim lhe quisermos chamar, tenha custos enormes num clube que na última década tem injetado milhões e milhões de euros na tentativa até agora frustrada de vencer a Taça dos Campeões Europeus. É uma opção estratégica que não está ao alcance de qualquer um e muito menos dos clubes portugueses ainda demasiado presos à vontade dos sócios para encararem a possibilidade de entregar a gestão a um fundo saudita ou qatari.
Filosofias Pois foi precisamente essas duas conceções de clube que as duas equipas levaram para o relvado da Luz. Será provavelmente exagerado chamar-lhe um confronto entre a fé e o dinheiro mas pode muito bem ter sido por um motivo do género que Cristo expulsou os vendilhões do templo.
O templo (a Luz neste caso), encheu-se de uma multidão excitada e ruidosa como a que rodeava os velhos circos de Roma. Não havia quem não se estivesse nas tintas para os milhões do adversário, para a Torre Eiffel, para os palácios em Versalhes ou para as areias mornas da Côte d’Azur: a noite de Lisboa era um fervilhante oceano vermelho e o facto de o Benfica ter entrado por cima no jogo e de Gonçalo Ramos (e pouco depois Neres) ter disposto de duas boa ocasiões para fazer golo tornou o vermelho quase rôxo. Mas a verdade é que em jogos assim o desperdício custa os olhos da cara. Por isso havia quem desesperasse. E blasfemasse.
Como era de esperar, o PSG surgiu divido em setores bem distintos (Vitinha foi uma espécie de tubo de cola que andou se um lado para o outro a resolver pontuais questões coletivas), sempre protegendo os seus mágicos de tarefas defensivas. E, na primeira vez que soltou um deles, Messi, fez golo, num lance perfeito de combinação concluído com um remate em arco. Aí estavam, escancarados, os portões do impossível. A fé pode mover montanha mas para Messi é igual. E a Luz caiu num silêncio magoado.
A equipa entristeceu também. Composta por jogadores pouco habituados a assumirem papéis menores, como que desapareceu numa estranha apatia, assistindo ao trocar de bola dos parisienses que basicamente faziam o que queriam e cada vez mais em cima da área encarnada. E a atitude? Onde estava a atitude? Na ponta esquerda onde Enzo teimou em ganhar uma bola e colocá-la com primor na cabeça de Gonçalo Ramos que não lhe tocou mas foi golo na mesma. A alegria voltou, vermelha em flor. Que passo dar, agora, após o intervalo? Um golpe de asa? Como responder também a um PSG mais agressivo, mais decido? A verdade é que os encarnados tinham pouca bola e, sem ela, não podiam ir a caminho do golo. Equacionando que um empate não seria mau resultado (ainda por cima perante as circunstâncias do jogo), havia que defender (que remédio!) com a maior segurança possível. Mas faltava tempo, muito tempo. Se Neres ainda ia conseguindo manter a bola nos pés em correrias avulsas, Rafa estava distante do jogo. Perante a diminuição do ritmo de Enzo Fernandez, Messi começou a desenvolver os seus lances numa parte de terreno mais recuada, tentando chegar à frente já em velocidade.
Com a fé restabelecida, a Luz volta a ferver. Mas é um ferver nervoso como se ouvíssemos umas centenas de milhares de unhas a serem roídas até ao sabugo. Os minutos escorrem, mecânicos, pelos ponteiros dos relógios. A águia bate-se mais do que joga, sente que não tem mais céu para voar. Consegue, ainda assim, demonstrar aquilo que Schmidt lhe deu: coesão. Não se desmancha. Rafa falha um golo de fazer inveja a Messi. E não, o PSG não era o impossível, como continua a não ser. Agora os céus de Paris ficam à espera de uma águia que teima em manter-se imbatível.