Ouviram-se tiros quando um poeta hippie se esgueirou pela escotilha de um tanque soviético, a 21 de agosto de 1991. Ilya Krichevsky, de 28 anos, queria convencer a tripulação a não avançar contra dezenas de milhares de moscovitas barricados na Casa Branca russa. Protestavam contra o golpe de Estado orquestrado pela linha dura dos comunistas, sequestrando Mikhail Gorbatchev e tentando impedir o colapso da União Soviética.
“Para a maioria de nós, tanques são assustadores. Mas ele tinha servido numa divisão de tanques e não tinha medo deles”, explicou à época um dos melhores amigos de Krichevsky, Viktor Kolikov, à conversa com uma correspondente do Los Angeles Times. Krichevsky talvez pensasse que conseguiria apelar ao bom senso dos militares, como fizera Boris Iéltsin dois dias antes, chegando a subir para cima de um blindado. Mas as tropas deste batalhão de guardas Taman, uma força de elite, estavam decididas a não ceder. Quando abriram fogo sobre civis, fizeram os únicos mortos do Golpe de Agosto. Morreu também Dmitri Komar, de 23 anos, veterano do Afeganistão, que acorreu em auxilio de Krichevsky, bem como Vladimir Usov, de 37 anos, que pereceu debaixo das lagartas de um tanque. Ficou para a história o nome do comandante desse batalhão de guardas Taman, Sergei Surovikin, então capitão. Hoje lidera as forças russas na Ucrânia, aos 56 anos. Tendo começado por semear o terror, bombardeando alvos civis por todo o país, esta semana, de Kiev a Kharkiv, passando por Lviv e Odessa.
O papel histórico de Surovikin, enquanto único oficial disposto a derramar sangue para evitar a queda da URSS, conjuga-se bem com uma guerra em que Vladimir Putin tenta reconquistar a Ucrânia, joia da coroa entre as repúblicas soviéticas. Entretanto, Surovikin, após passar pelos brutais campos de batalha da Chechénia, ainda ganhou fama de carniceiro na Síria, tendo um papel de destaque na destruição de Alepo. Em 2017 até seria promovido à liderança da Força Aérea russa, o ramo que mais brutal e eficazmente contribuiu para salvar o regime de Bashar Al-Assad. Valendo a Surovikin a alcunha de “general armagedão”.
Não espanta que os canais de Telegram dos mais extremistas nacionalistas russos fervilhem de entusiasmo, após meses de frustração com sucessivos revesses militares do Kremlin. “Todos nos lembramos dos acontecimentos na Casa Branca, em agosto de 1991”, salientou o chefe dos mercenários da Wagner, Yevgeny Prigozhin. “Surovikin é o oficial que, sem hesitar, tendo recebido uma ordem, entrou num tanque e acorreu a salvar o seu país”, continuou, descrevendo o novo líder das forças na Ucrânia como sendo “o comandante mais competente do exército russo”, um militar “lendário”.
Contudo, não há mudança de liderança que seja milagrosa. Surovikin “é muito cruel mas também é um comandante competente”, garantiu Gleb Irisov, um antigo coronel da Força Aérea russa que trabalhou com o “general armagedão”. Em declarações ao Guardian, Irisov reconheceu a capacidade de Surovikin para coordenar diferentes ramos militares, algo que tem faltado ao Kremlin. “Mas ele não vai ser capaz de resolver todos os problemas. A Rússia tem falta de armas e recursos humanos”.
De Alepo até Severodonetsk “Tudo é um alvo, seja humano, árvore ou rocha”, contou um médico, que no mês anterior ficara ferido num bombardeamento russo, atingindo uma cidade arruinada. “Tudo está a ser exterminado em conluio com as Nações Unidas. Eles todos veem e ouvem, mas não respondem. E não conseguem parar esta máquina de guerra”.
O cenário em que este médico desabafou com o Guardian não foi Mariupol, Severodonetsk ou Lysychansk, mas o leste de Alepo, na Síria, então refúgio da oposição a Assad. O ano não era 2022, corria 2016. E então, como na Ucrânia, Surovikin destacava-se ao leme da máquina de guerra do Kremlin.
Para os sírios apanhados no meio deste conflito, parecia o fim do mundo. No entanto, para o regime de Putin foi um enorme sucesso. Mostrando que, sofrendo poucas baixas, podiam desafiar a hegemonia americana no Médio Oriente, que conseguiam intervir pelo mundo fora.
Foi uma escola tão importante para as forças armadas que o Kremlin fez questão que quase todos os altos quadros passassem por lá. Para conseguirem “instilar lições da Síria na educação da próxima geração de pessoal militar”, aprendendo observando oficiais como Surovikin aniquilar cidades, pedaço a pedaço, descrevia um relatório do Instituto para o Estudo da Guerra, publicado o ano passado.
Os militares russos já tinham posto isso em prática na capital chechena, Grosny, mas a Síria trouxe um novo requinte tecnológico. Talvez essa memória traga saudades a Ramzan Kadyrov, cujas milícias do pai combateram do lado do Kremlin na Segunda Guerra da Chechénia, entre 1999 e 2000. O ditador, que contou conhecer Surovikin desses tempos, reconheceu o talento destruidor mostrado pelo “general armagedão” em Alepo. Saudando a sua nomeação para comandante das forças da Ucrânia, após semanas a apelar que Putin fosse ainda mais duro.
“Agora estou 100% satisfeito com a maneira como a operação especial está a ser conduzida”, elogiou Kadyrov, no Telegram, quando decorriam bombardeamento de alvos civis na Ucrânia. No entanto, se isso funcionou em Alepo, onde os insurgentes não possuíam mais do que mísseis anti-aéreos de ombro, poderá não ter o mesmo impacto contra um inimigo que não está indefeso nos céus. Que possui uma força aérea própria e tem vindo a receber sistemas antiaéreos avançados vindos da NATO. Dos cerca de oitenta mísseis de longo alcance russos disparados esta segunda-feira, segundo o Governo ucraniano, uns cinquenta foram intercetados.
Desde os bombardeamentos desta semana, Berlim decidiu enviar para Kiev pelo menos quatro plataformas de mísseis IRIS-T, guiados por infravermelhos. O chanceler Olaf Scholz explicou que uma única unidade consegue defender “uma cidade inteira”. E Washington também promete enviar ainda mais defesas antiaéreas de última geração.
Surovikin não é o primeiro a comandar as forças russas da Ucrânia que traz consigo experiência síria. O seu antecessor, Alexander Dvornikov, até era alcunhado de “carniceiro da Síria”, mas não foi propriamente bem sucedido. O próprio “general armagedão” também teve dificuldades na Ucrânia, tendo liderado as forças russas no sul desde julho. Por um lado, é-lhe apontada a liderança do assalto devastador a Severodonetsk, uma das poucas vitórias de que o Kremlin se pode gabar. Por outro, apesar das suas tropas terem conseguido aguentar Kherson, têm sofrido baixas pesadas e recuado lentamente. Tendo perdido porções cruciais de território a oeste desta cidade estratégica, na semana antes de ser promovido, permitindo aos ucranianos atingir mais facilmente a retaguarda russa com mísseis de longo alcance.
Oligarcas com saudade do império Em 1991, Surovikin e Prigozhin estavam de lados opostos da barricada. “Nessa época eu estava do lado dos manifestantes, as forças liberais”, admitiu o chefe da Wagner. “Ainda estamos a pagar por esse erro”, confessou. Lamentando ter participado na desintegração da URSS, “o maior império dos nossos tempos”, algo visto como a “maior catástrofe geopolítica” do século XX por Putin.
Desde aí, Prigozhin e Surovikin seguiriam caminhos paralelos. Após seis meses na prisão, o capitão que massacrara civis no Golpe de Agosto foi perdoado pelo próprio Ieltsin, sendo depois promovido a major. Na caótica década de 90, quando gigantescas empresas estatais soviéticas foram vendidas ao desbarato a oligarcas ligados ao crime organizado, Prigozhin, que passara nove anos preso por assalto à armada, soube aproveitar para construir uma fortuna. Já Surovikin foi acusado de participar na pilhagem dos gigantes arsenais da URSS – um bênção sem precedentes para o mercado negro de armamento, alimentando conflitos por todo o globo – e seria condenado por tráfico de armas, acabando esta decisão judicial por ser revertida.
Não seriam as únicas investigações ao atual comandante do Kremlin na Ucrânia. Há dez anos até foi apontado pela imprensa russa como sendo o favorito do Ministério da Defesa para chefe da Polícia Militar, mas a sua nomeação foi bloqueada pela procuradoria-geral militar, notando que havia conflito de interesses. É que Surovikin foi acusado de espancar um tenente-coronel, em 2004, no mesmo ano em que outro dos seus subordinados, o coronel Andrei Shtaka, deu um tiro de pistola na cabeça diante do “general armagedão”, após ser publicamente alvo de duras críticas deste.
De facto, poucos incorporam a brutalidade inerente às forças armadas russas como Surovikin. Este militar, nascido em Novosibirsk, na extensão gelada da Sibéria, serviu nas spetsnaz – as temidas forças especiais soviéticas – durante a sangrenta ocupação do Afeganistão (1979-1989), e ao longo da sua carreira “foi perseguido por alegações de corrupção e brutalidade”, descreveu o Ministério da Defesa britânico.
Isso poderá causar problemas a Surovikin. “A ‘dureza’ que a comunidade pró-guerra tanto adora é um traço de personalidade da era soviética que resulta da brutalização”, avaliou o Instituto para o Estudo da Guerra. ”Isso causa medo nos subordinados, do tipo que inibe que relatem honestamente problemas ou falhanços, encoraja a mentir e a desviar as culpas. E produz a mesma abordagem robótica a executar ordens que contribuiu para os falhanços russos na Ucrânia”.
Não espanta que mal Surovikin tomou as rédeas, além de bombardear alvos civis, tenha empurrado as suas forças contra Bakhmut, onde se assistiu a duros combates, avançou a Reuters. Os russos têm tentado conquistar esta cidade no Donbass há meses, sem sucesso, numa lenta ofensiva com recurso aos seus habituais bombardeamentos massivos. Enquanto oficias ucranianos, cuja iniciativa e flexibilidade tática tem sido elogiada pela NATO, se dedicam a procurar buracos na longa linha da frente. Como aconteceu a sudeste de Kharkiv, em Izium, onde não hesitaram em lançar uma contraofensiva surpresa, veloz e em profundidade, com incrível sucesso.