Nasceu no Rio de Janeiro. Que memórias guarda da sua infância?
resci no Rio, a gente tinha uma casa no interior do Rio, numa cidade chamada Miguel Pereira, que era bem chão de terra. Todos os fins de semana e nas férias longas os meus pais viajavam, mas a gente ficava sempre por lá, então tínhamos muitos amigos. É engraçado porque a nossa casa sempre foi o ponto de encontro dos amigos, então as melhores memórias que eu tenho era quando todo o mundo ia para lá e estávamos sempre muito misturados: adultos, avós, crianças… Os meus irmãos… um é 12 anos mais velho e o outro dois anos e meio mais velho, sempre foi muito misturado e é uma coisa que eu adoro até hoje. E agora também já tenho uma irmã, 27 anos mais nova.
À terceira foi de vez. O seu pai já adivinhava que vinha aí a ‘herdeira’ do seu legado?
Não faço a menor ideia. Acho até que não, eles não achavam que podiam ter uma menina porque o meu pai só tem irmãos homens, até então só tinham nascido filhos homens, só tinha homem na família! Uma das histórias engraçadas que a gente conta é que naquela época não se sabia [sexo do bebé] antes de nascer e, quando disseram à minha mãe que era uma menina, ela disse: «Não, não, vão lá ver direito que roubaram o meu filho, trocaram!» [risos]. Achavam que não vinha uma menina, não estava muito previsto. O meu pai diz que via em sonhos, mas ao mesmo tempo tomou um susto danado quando nasceu uma menina. Acho que para o meu pai a responsabilidade de criar uma menina, naquela altura… para eles era mais difícil do que criar os meninos.
Tinha 7 anos quando o seu pai concretizou a primeira edição do Rock in Rio, em 1985. Lembra-se do ambiente que se vivia?
Tenho poucas memórias de infância e pouquíssimas memórias do Rock in Rio! Lembro-me de brincar com os produtos oficiais: umas fitinhas de prender óculos, adesivos, os pins… Isso tudo era uma festa – e lembro-me de me perder na obra, na construção da primeira cidade do rock. Estas são as minhas memórias. Lembro-me de botar new wave no cabelo com a minha mãe, isso já no evento, e de dormir no chão debaixo de uma mesinha no camarote. Fora isso, dizem-me que fui dois dias ao Rock in Rio e houve um jantar lá em casa. Tenho fotos com os artistas todos, mas não tinha muita consciência do que aquilo era, era só muita confusão!
Mas o seu pai falava sobre como o Brasil estava a reagir a um evento destas dimensões?
Não tenho essa memória, engraçado. A partir do segundo [2.ª edição do RiR, em 1991], quando tinha 12 anos, aí já começo a ter mais consciência. Nesse já foi mais ‘curtição do show’, eu era fã do New Kids on the Block! Estava só querendo saber que o New Kids on the Block ia lá e acompanhei a montagem no Maracanã.
Porque a primeira cidade do rock tinha sido destruída.
Sim. E, na verdade, até passar a ter algum pensamento sobre o Rock in Rio, o que eu lembro era sempre muito ruim, porque o primeiro [RiR] foi um grande prejuízo! O meu pai ficou super mal, apesar do sucesso do evento – que foi um marco no país -, para ele, pessoalmente, tinha sido ruim. No segundo, em que já tinha alguma consciência, vi muitas coisas não bonitas acontecendo em volta daquela festa: palavras não cumpridas de amigas de escola que se aproximam; pessoas que não eram amigas e viram amigas para ganhar o bilhete e, no dia seguinte, já não falam com você… Eu vi esse lado e não achava bacana! Depois dos meus 12 anos, [o RiR] só voltou a acontecer quando fiz 20, quando já estava trabalhando. O dia-a-dia da minha casa era publicidade, agência… Essas eram as conversas. Com 16 anos botei no quadro o último cheque da dívida do primeiro.
Estudou Comunicação Social. Já a pensar no mundo dos eventos?
É engraçado, porque o que o meu pai fez comigo vejo-o hoje fazer igualzinho com a minha irmã! Nem o meu pai, nem a minha mãe… eles nunca disseram o que era para a gente fazer. Acho que o encantamento sempre veio pelas conversas com ele, que é um mago da comunicação, o jeito de falar… Tem uma jornalista brasileira, a Leda Nagle, que fala que ele vende água em peneira [risos]. A gente conversava muito, tínhamos a tradição de jantar juntos todas as noites e a gente ficava ouvindo ele contar as histórias: falava de política, falava de tudo, sempre foi muito pé no chão. A conversa lá em casa sempre foi muito aberta, a partir dos 12, que é quando tenho memória, lembro-me de ter conversas mais adultas com ele, éramos bastante expostos ao pacote completo e, morando numa cidade como o Rio de Janeiro, não dá para você não estar exposto, o problema está na esquina, não é?! Mas o que é curioso é que o meu pai não gosta de produção de eventos. O meu pai gosta de criar a ideia, a paixão dele é a comunicação, o encantamento, engajar as pessoas.
Ou seja, a produção…
A produção, o montar não é o barato dele! Mas, engraçado… quando eu tinha 17 anos, antes até, e era para fazer a prova para escolher a faculdade; a gente estava passeando num shopping – na frente de casa onde a agência dele estava fazendo um projeto de Natal com a Disney – e nós somos todos apaixonados pela Disney… O gerente de marketing perguntou se eu queria trabalhar com eles, eu ainda estava na escola, achei que ele estava querendo ser simpático para o meu pai e fui embora, não liguei, não dei atenção. Daí a uma semana ele liga lá para casa: «Então, você vem?», e eu pensei ‘Bicho, está insistindo o problema é teu, porque para trabalhar com o Mickey eu vou!’ [risos]. E lá fui eu e não fazia a menor ideia do que ia fazer. Fui assistente de marketing do shopping porque a equipa de produção, que fazia o show – a montagem do castelo no parque de estacionamento -, era já outra empresa. Mas o que é curioso é que a equipa de marketing me colocou para fazer a ponte com essa empresa externa de produção e, aí, eu comecei a ver como é que montava palco, como é que planeava, onde entravam e saíam as pessoas – aí, bicho, eu me apaixonei! Foi uma descoberta, foi aquele ‘fez-se luz!’, porque a produção não era conversa em minha casa e é o que eu amo até hoje. Talvez não fosse muitas vezes curtir para um festival, mas produzir é comigo mesmo, eu adoro organizar e isso é muito da minha mãe também. Lá em casa, a gente produzia tudo, as festas de aniversário, fazia as decorações… Nesse primeiro trabalho, quando descobri que a parte da produção era o que eu gostava, comecei a olhar para trás e percebi que sempre fiquei organizando as festas com a minha mãe, eu também participava de todas as produções de festas na escola. É uma coisa que, na verdade, já estava lá.
E, depois, integra o Rock in Rio, quando tinha 20 anos. O seu pai falava sobre como tinha surgido o conceito do festival?
Quando [o meu pai] começou a desenhar a terceira edição, primeiro eu não entendia como é que ele queria fazer um negócio que tinha sido tão ruim para ele… Acabei indo trabalhar com ele porque, na terceira edição [em 2001], o Rock in Rio passa a ser ‘Por um Mundo Melhor’ – a motivação era usar o mediatismo da marca para mostrar que, cara, se todas as empresas, se todos nós cuidássemos um pouquinho do outro, o mundo já era um lugar melhor. Essa é a minha relação com o Rock in Rio. A música pela música, o show pelo show, para mim não fazia sentido, mas essa explicação sim e, até hoje, é o que me conecta com o Rock in Rio. É engraçado porque tudo o que ouvi antes, hoje já não te sei dizer. O Rock in Rio surgiu numa era onde errar não era aceitável como hoje é, o sonho era uma coisa assim muito longe do capitalismo, mas o valorizado era o capitalismo, o dinheiro, se financeiramente deu certo… e os primeiros não deram certo! Por isso, a história era sempre contada na perspetiva da comunicação. O que viabilizou a primeira edição foi vender a ideia do festival para uma marca – a Brahma -, que era a principal cerveja do Brasil e que precisava de se aproximar do público jovem apesar de ser líder. Isso foi o que viabilizou [o RiR] numa época em que os patrocínios não existiam, era a lógica dele [Roberto Medina], que em termos de comunicação sempre teve um olhar muito além da media tradicional. Todos os grandes projetos que fez foi olhando além da media tradicional e com grandes marcas. A história sempre foi: «[O Rock in Rio] Nasceu para lançar uma cerveja»; eu olhava e pensava: ‘Essa parada não está fazendo muito sentido’. E, aí, falei: «Não, ‘bora’ contar a história do jeito que ela é», e a história é muito engraçada. Historicamente, quando o Brasil ficava ruim, a gente queria ir embora e, quem tinha algum poder económico, ia para Miami, Estados Unidos, tudo muito americanizado. Agora é Portugal [risos]. Naquele momento ele estava muito desacreditado porque o país estava saindo da ditadura militar – e estava muito desacreditado com o Rio, o que até é incoerente porque o meu pai é completamente fascinado pelo Rio de Janeiro, e esta continua sendo a grande motivação dele, herdou isso do meu avô, que também era assim. Quando ele diz: «Não quero mais, quero ir embora», a minha mãe, que sempre quis morar fora, disse: «Você não pode ir embora. Você tem de fazer alguma coisa pela sua cidade!». E aquilo… o meu pai é leão por leão – para quem acredita –, então ficou danado e, em vez de dormir, no dia seguinte de manhã tinha o Rock in Rio criado como resposta. Foi uma provocação [da minha mãe] e o publicitário [o pai] encontrou na música a resposta – o que também não surgiu do nada. Por que é que um publicitário pensou na música como uma resposta? Aí a gente teria de voltar para uns capítulos antes.
Até ao seu avô, produtor cultural no Rio na década de 1950?!
O meu avô paterno [Abraham Medina], que foi um garoto que construiu a história dele sozinho, veio do Pará, numa história bem Hollywood: madrasta que maltratava, foi morar com um tio e, aí, virou um dos grandes empresários no ramo dos eletrodomésticos dos anos 1950/60, a loja se chamava Rei da Voz. Essa mentalidade do meu pai de pensar fora da caixa vem do meu avô e o meu avô tinha uma convicção que era: o seu negócio só vai bem se a sociedade estiver bem, que é o que hoje me move muito, essa foi a parte que eu peguei. O meu pai cresceu com o meu avô inventando grandes loucuras – decorava a cidade para o Natal, construía praças, fontes -, tudo o que fosse para as pessoas da cidade, doava imensos produtos e, em determinado momento, começou a fazer espetáculos e montava teatros para criar uma agenda cultural na cidade. Um dos grandes momentos – para entender como é que o meu avô funcionava – foi quando lançaram a televisão. Como empresário da área, comprou muitos televisores para vender, mas não vendia. Por que é que não vendia? Chegou à conclusão de que a programação era uma porcaria, muito fraca. E o que é que o meu avô foi fazer para vender televisões? Montou o principal programa de televisão da história da televisão brasileira, que se chamava Noite de Gala e que patrocinava com o Rei da Voz. O Noite de Gala era como se fosse um programa de auditório para os dias de hoje só que ele levava grandes nomes da música internacional para se apresentarem e serem entrevistados. Tem uma história em que um rapaz foi fazer um teste na casa dele, de piano, para o programa – era Tom Jobim. É uma era de outro planeta. Para a gente hoje é: ‘Como assim, bicho?’. O Noite de Gala durou ainda uns anos, onde foram muitos artistas internacionais. E o Brasil tinha um grande sonho, e o meu pai cresceu ouvindo falar desse sonho: levar o Frank Sinatra ao Brasil, que nunca ninguém tinha conseguido. Em 1980, [Roberto Medina] para promover o Whisky Passport – um cliente que tinha na agência -, desafiou-o a fazer um anúncio com o Sinatra. Ele vai, consegue, realiza o anúncio e, quando está nessa conversa, diz: Eu quero levar você para o Brasil. Mas, como ninguém conseguia, ele montou uma maquete do Maracanã, com um palco incrível no meio, levou para o Sinatra e disse: «É isso aqui que te quero propor». Era uma proposta [financeira] muito abaixo das que o Frank Sinatra tinha, mas ele se encantou com o projeto porque nunca tinha cantado para tantas pessoas, nem acreditava muito que aquilo podia ser possível, mas topou. O maior show do Frank Sinatra foi o do Maracanã e tem imagens lindas.
O avô conseguiu esgotar todas as televisões?
Ah, isso sim! Foi tudo! O Noites de Gala existiu até mil novecentos e sessentas e tais, não sei se chegou a 70, porque depois brigou com o Governo Militar e aí destruíram-no, foi minguando e perdeu.
Porquê? Porque ele se pronunciava contra. Fecharam o programa, proibiram-no e, depois, começaram a cortar a linha de crédito. Foi quando o meu pai e os irmãos entraram para ajudar. Em 1980 o meu pai consegue levar o Frank Sinatra ao Brasil, já não trabalhava com o meu avô há muitos anos, logo no início eles não conseguiram trabalhar juntos. Mas há esse histórico. Ele cria o Rock in Rio em 1984 – quando ele é provocado pensa na música como plataforma de comunicação, ninguém acreditava que aquilo podia ser possível, a única referência que havia de festivais até então era o Woodstock, mas que não tinha nascido para ser um festival, era para ter sido uma festa e virou o que virou. Ninguém imaginou no Brasil que seria possível, mais a ideia que os artistas tinham do Brasil, que o meu pai veio a descobrir depois – não pagar os cachês, roubar o equipamento, etc… então os grandes nomes não iam ao Brasil.
E como conseguiu depois contratar os artistas?
Depois de viabilizar o patrocinador foi contratar os artistas: foi para Los Angeles e Nova Iorque – em 70 reuniões, foram 70 ‘nãos’. Zero. Ninguém acreditava que era possível e, é muito interessante, porque o meu pai foi pedir ajuda ao Sinatra – como já tinha feito o show com ele –, que convocou uma conferência de imprensa para ele fazer a apresentação da proposta e, aí, saiu na imprensa americana toda que o maior show de rock ia acontecer no Brasil. No dia seguinte o meu pai conseguiu contratar todos os artistas! O Rock in Rio nasce para promover o Rio de Janeiro e para provar para o mundo – na época da ditadura, da igreja -, que, bicho… eles diziam que os jovens juntos era problema, mas aí provou-se que não, que era possível juntar jovens e pessoas diferentes em paz e harmonia no mesmo lugar. Nasce assim. O projeto era uma ideia grandiosa porque para chamar a atenção do mundo tinha que ser um negócio muito diferente. Acho que havia uma outra coisa também, o meu pai não é produtor de música, o meu pai é todo certinho, só começou a usar jeans mais tarde. Começou a contratar os artistas e chegava lá de fato e gravata, ele diz que deviam achar que era do FBI. Então começou a descontrair um bocadinho, mas é todo certinho. Quando ele cria a cidade do rock, acho que, em parte, cria à sua imagem porque não tinha outra referência, então nasce muito diferente do que os festivais tradicionais oferecem. Depois foram nascendo cada vez mais, mas tudo muito descontraído, muito desencanado.
Referiu o Woodstock, festival que tem uma série na Netflix e que ajuda a perceber bem o que pode ser o verdadeiro pesadelo para quem trabalha na organização de eventos/festivais…
Eu tive nesse, no Woodstock’99. A gente estava começando a desenvolver o Rock in Rio [3.ª edição] e o Roberto [Medina] tinha conhecido o Michael Lang [promotor do evento] um pouco antes. Fui com mais três profissionais nossos conhecer para ver o que é que era, mas a gente saiu antes de começar a confusão. Lembro-me de ver galera vendendo água por 16 dólares, tem que dar ruim. Eu não vi o documentário, mas lembro-me dessa cena e ficava olhando para aquilo, que era muito diferente do que eu ouvia como indicação do que a gente tinha que fazer. Eu nunca tinha feito nenhum ainda, mas achei aquilo tudo muito estranho. Lembro-me de ver coisas que eram diferentes daquilo que eu estava sendo orientada para começar a pensar em casa. Fui conhecer os bastidores e assim, mas a gente não ficou para curtir e logo depois se deu a confusão de botarem fogo…
Com mais de 35 anos de história, o Rock in Rio também já merecia uma série?!
Agora foi lançado no Brasil, na Globo Play – plataforma de streaming da Globo -, um documentário de 5 capítulos. O que eu acho é que o documentário está até ligado à história do Brasil, mas cinco capítulos de meia hora não dão para contar 35 anos de história do festival. Acho que ele merece, é muito bacana poder contar mais profundamente porque tem tantas histórias, já são tantas referências. Eu lembro-me de ver entrevistas da galera que produz material para a gente durante o Rock in Rio, quantos artistas falando que sempre sonharam em estar ali, artistas internacionais de referência… E tem o glamour do Rio de Janeiro, o país tem todo um sex appeal, então ele é um ponto muito alto na carreira dos artistas. Cara, o nível de investimento que se põe para fazer um show no Rock in Rio é um ponto diferente. Não é mais um show, a gente prepara assim de uma forma muito especial.
O Rock in Rio chega a Portugal em 2004, com a Roberta Medina na frente. Já é um Rock in Rio à sua medida?
Ainda não era à medida da Roberta Medina, mas era produzido, sim.
Tinha 25 anos. Como foi essa fase?
O meu pai continua sendo o presidente da empresa e acho que o Rock in Rio verdadeiramente à minha medida foi este último. Quando estava todo o mundo com a confusão da pandemia, todo o mundo focado no Brasil e a gente focada aqui, com a equipa em Portugal, sinto que foi do início ao fim. O Rock in Rio tem uma coisa muito bacana e o meu pai estabeleceu isso de forma clara: as ideias podem vir de qualquer lugar. Se você der uma ideia boa aqui, agora, a gente vai atrás e vai desenvolver, não importa. O Rock in Rio não é de alguém, o Rock in Rio é uma realização coletiva. Por mais que cada um de nós possa ter protagonismo em determinada coisa, ele é coletivo: é do público, dos patrocinadores, a gente constrói ele desse jeito. Não é de alguém então é muito bacana. Quando eu vim para cá era uma missão e, bicho, missão dada, missão cumprida. Eu não vim achando que me ia mudar para Portugal, não vim com medo de coisa nenhuma. Ele [Roberto Medina] tinha vindo antes e já tinha estabelecido o contrato com a Câmara [de Lisboa], já tinha os primeiros patrocinadores. E disse-me: «Agora vem e produz». Acho que a ingenuidade sempre me ajudou muito, desde o primeiro. O primeiro foi assim uma escola porque eu não sabia produzir a sério grandes coisas, por isso não vim preocupada para Portugal, vim curiosa. Vim sozinha no início e também foi bom porque todas as minhas relações eram com portugueses e entendendo que quem tinha que aprender era eu.
Quais foram os maiores desafios?
O embate de como era o Rock in Rio e de como era a produção local, acho que esse foi o maior desafio. A gente começou a planear o Rock in Rio um ano antes [em Lisboa a primeira edição do festival decorreu em maio de 2004]. Ficavam a olhar para a nossa cara e perguntavam: mas por que é que querem orçamentos para uma coisa que é daqui a um ano? Não lhes fazia o menor sentido, mas com a dimensão do Rock in Rio, se não fosse assim, a gente tinha a certeza de que não era possível concretizar. Foi super enriquecedor e aí muito rapidamente eu me apaixonei por Lisboa. Descobri que a nossa personalidade pode ter mais a ver com uma personalidade de uma cidade. Lisboa, comparando com o Rio – e morei também em São Paulo -, é tão mais suave, a frequência é mais baixa, e isso é uma coisa que me faz bem.
E trabalhar diretamente com o pai é simples ou depende dos momentos?
Acho que tem vantagens e desvantagens nessa relação familiar. Com ele, todo o mundo dá risada porque eu chamo-o de Roberto se eu estiver falando do presidente e falo pai se eu estiver falando do pai. Na frente dele tem que ser sempre pai, ele fica danado se eu chamar de Roberto, não gosta. Mas preciso de separar assim os personagens. Se eu estiver numa reunião e ele não estiver presente eu digo Roberto; se ele estiver presente eu falo pai ou tento não falar nada [risos]. Para ver se me levam a sério [risos]. O desafio de começar a existir perto de um cara tão iluminado, uma coisa é ser-se bom profissional; outra coisa é ter um visionário ao lado, e ele é um visionário. Você fica ali buscando o seu espaço. A relação? A gente perde algumas coisas e ganha outras, o meu pai é uma pessoa que se relaciona muito através do trabalho, é a linguagem dele, é um sonhador e pensa 24h sobre 24h, não é a minha forma de ser, então isso afasta um pouquinho, mas ao mesmo tempo a gente é mais próximo que nunca. A gente se parece muito e pensa muito igual, temos conversas deliciosas e essas são as melhores partes. O que eu perdi é que, em alguns momentos, por exemplo, se eu tivesse dúvidas no trabalho, eu não podia perguntar para ele, essa é a minha sensação, porque é como se eu estivesse passando o problema para ele. Sempre me senti menos apoiada apesar de, na verdade, ser exatamente o oposto: eu também conseguia avançar tão rápido na carreira porque eu era a filha, está claríssimo, não tenho a menor dúvida em relação a isso. Tive muitas portas abertas para conquistar o meu espaço, eu não tinha esse lado da ajuda e, ao mesmo tempo, também não tinha muitas broncas, talvez ele ficasse meio constrangido. Lembro-me uma vez, já muitos anos depois de a gente estar trabalhando junto, dele dar uma bronca assim maior e de eu ficar: ‘Ai, que alívio, bicho, pelo amor de Deus, dá para dizer, essa coisa do feedback é fundamental’. Não dá para ser sempre bom e essa troca acabou sendo prejudicada um pouco. Agora, sem dúvida nenhuma, eu hoje tenho a certeza de que para ele foi muito mais difícil porque a gente começa na ingenuidade, ele educou-nos a todos para darmos opinião, imagina as barbaridades que a gente dizia enfrentando ele. O maior desafio de trabalhar com família é não conseguir estabelecer muito bem o limite da intimidade. Claro que a vida inteira falei coisas para ele que ninguém iria falar para o presidente. Certamente que teve que ter paciência de Jó, para ele foi mais desafiador.
Ainda hoje sente algumas barreiras ou inseguranças?
Ah não, já passou! Nessa questão estou super bem: sou filha. Aliás, eu primeiro sou filha depois é que sou outra coisa qualquer [risos]. Essa já passou. Dá muito trabalho no início, no início não, por uns bons anos, mas estou muito à vontade nesse lugar. Sou filha mesmo, bicho, essa é a coisa mais importante. Se eu tiver de escolher? Escolho ser filha! Eu lá quero saber da executiva. Não tenho problema com isso!
E quando é que decidiu mudar-se definitivamente para Portugal?
Tinha casa cá, mas na verdade não estava aqui. Estive em Espanha, Varsóvia, projetos na Roménia – e eu amo, estava feliz da vida -, mas comecei a sentir falta de raízes. Aí fui comprar um cachorro porque tinha de voltar para algum lugar, tinha que alimentar o cachorro e foi a melhor coisa que fiz. Eu pensei: ‘Eu tenho de ter a minha casa’. Comecei a tentar ter um pouco mais de raízes e Lisboa sempre foi a escolha. Logo depois comecei a namorar o Ricardo [Acto] e aí a gente começa uma fase diferente, o Rock in Rio voltou para o Brasil [4.ª edição aconteceu em 2011] e, entre 2010 e 2017, a gente morou um ano em cada país, com filhos, dois cachorros… Houve uma hora em que a gente teve uma conversa: «Não aguento mais isto, não» – moro num lugar e noutro e noutro, pediatra aqui, pediatra lá, escola aqui, escola lá, veterinário aqui, veterinário lá… A gente estabeleceu que quando a Lua entrasse no primeiro ano era a hora de parar essa gracinha. Claro que dava para continuar neste registo, mas eu já estava muito cansada e colocar a criança também exposta a tanta mudança, se a criança não tiver perfil para isso pode ser bastante desafiador. De 2017 para cá comecei a ficar mais aqui, a gente já não mudou – vai lá dois meses para fazer o Rock in Rio [Brasil] e volta. Ele [Ricardo] viaja muito e acho que agora o que está acontecendo é que ele está começando a cansar de viajar, porque ele tem viajado muito, e eu estou pronta para viajar de novo [risos]. Mas agora vou começar a viajar de novo mais por causa do The Town, em São Paulo.
Daí o nome escolhido para a filha, para parecer sempre um programa mais romântico: eu, tu e a Lua?
[risos] Não, de todo! Quando estava grávida da Lua, a gente tinha vários nomes que concordávamos para menino, mas nenhum para menina, foi uma coisa muito estranha. Aí há um dia em que estou passeando no jardim, com o Ricardo e com o cachorro, e a minha madrinha de coração, ela sempre desde pequenininha me ensinou a olhar para a Lua e a dizer: «Boa noite, Dindinha lua», então eu sempre, até hoje, olho para a lua e digo: «Boa noite, Dindinha lua» e, naquela noite, como sempre, disse isso e, aí, fiquei pensando: ‘Caraca, Lua!’ O que é que eu achei? O tuga nunca vai deixar, não é?! Até porque uma das provocações entre brasileiros e portugueses é por causa da lista dos nomes [risos]. O tuga vai achar que eu enlouqueci, mas ele nem titubeou: «É esse!».
Agora já está muito mais abrangente…
A parte mais engraçada é que ela nasceu no Brasil, ele [Ricardo Acto] foi registá-la e, naquela altura, disseram-lhe: «Não pode». O registo dos nomes no Brasil é localizado, ou seja, no cartório da Barra da Tijuca, onde ela tinha que ser registada, não tinha nenhuma criança com o nome Lua. A mulher deve ter implicado com ele, alguma coisa aconteceu, porque mandou para o juiz – que mandou para o Ministério Público -, esquece, bicho, e eu surtando, ligando para a advogada daqui [Portugal]: «Drª.Susana!!!». Eu sabia que, enquanto cidadã brasileira, aqui [em Portugal] podia registar o nome: «Drª Susana, como é que eu registo aí, porque aqui está esta confusão toda?!». Eu passei anos sacaneando os meus amigos portugueses por causa da lista [dos nomes] e, afinal, deu problema no Rio e o nome Lua estava na lista daqui [risos]. É daquelas mesmo de você morder a língua, bicho! Problema no Rio para registar nomes? Esquece, não existe isso no Rio, eu nem sabia que existia algum tipo de registo de limitação no Brasil, hilário! O Theo já foi tranquilo.
O Rock in Rio no total já tem 22 edições: 9 no Brasil, 9 em Portugal, três em Madrid e uma nos EUA.
Eu tenho 20.
É possível voltar a fazer o Rock in Rio em Madrid e EUA?
Madrid foi uma experiência muito interessante, a gente chegou em Madrid numa fase em que os festivais estavam tendo um boom. No nosso primeiro festival em Madrid [em 2008] havia 90 festivais anunciados e, no ano seguinte, por causa da crise, eram metade. A gente chegou e em 2007/2008 entrou a crise económica, esse mercado só foi decrescendo e o projeto era muito grande para a Espanha. O maior festival na altura tinha 70 mil pessoas, a gente tinha 180 mil e para a gente era muito pequeno. A gente começou com duzentos e tal mil e terminou com 180 mil [3.ª e última edição do Rock in Rio em Madrid aconteceu em 2012]. Era um país quatro vezes maior que Portugal e aí começa a não fazer sentido. Fomos para os Estados Unidos [edição única, em 2015], que foi também um sucesso, mas ali a gente foi achando que se resolvia tudo numa edição e no mercado americano você leva pelo menos três/quatro edições para estabilizar.
E levar a marca para outros países?
O RiR voltou para o Brasil em 2011 e o mercado brasileiro começou a ser tão forte para a marca… desde 2011 que a gente esgota todos os festivais, que é um negócio que eu nem sabia que existia, como assim esgotar tudo?! O mercado ficou tão potente que eu particularmente não acho que faça sentido expandir. O único mercado que eu acho, e o meu pai tem horror quando falo nisso – ele fica assim torto -, que poderia fazer sentido era voltar para os EUA, que é muito forte, mas para expandir o esforço é muito. A gente começou a desenvolver um outro modelo, para tentar ser um modelo meio franquia mas eu não acho que seja essa a história do Rock in Rio, não acho. Agora a decisão e a visão que ele [Roberto Medina] teve em criar o The Town acho que é o mais acertado – expandir no mercado brasileiro com uma outra história e um outro produto.
E a moda da música alternativa está a passar?
Eu acho que cada país é de um jeito, Portugal é muito alternativo, ou melhor, eu acho que Portugal é mais aberto à novidade, digere tudo muito rápido, não sei se pelo tamanho do país. Mesmo os programas televisivos: a gente consegue ver o The Voice ou o Big Brother; o Ídolos, quando eu participei, havia dificuldade de fazer sempre porque o mercado se esgotava muito rápido, as pessoas cansavam do formato mas também isso vai mudando, né?! O tipo de consumo que a gente tem hoje vai mudando de perfil, mas Portugal digere muito rápido tudo o que é novo. O Brasil é muito menos alternativo até pela dimensão, o Brasil é muito sertanejo, axé… O pop rock está muito no sudeste e, alguma coisa, no nordeste e no centro, são núcleos. Então tem muito a ver com cada país. Agora, é verdade que as tendências normalmente começam, hoje em dia já não, até por causa das redes sociais, mas a gente vem de gerações em que as modas começavam num núcleozinho e, de repente, chegavam a todo o mundo. Lembro-me de Coldplay ser alternativo e, de repente… A gente hoje consegue trabalhar muito mais o público de uma forma segmentada do que antigamente era possível. Com o fenómeno do mundo digital é muito mais fácil de aceder do que antes na grande mídia. Acho que tem espaço para tudo.
Recentemente deu-se a polémica com a Anitta, que disse nas redes sociais que não voltaria nunca mais a pisar o palco do Rock in Rio.
Adoro [risos]. É muito louco, bicho, ela tinha acabado de tocar aqui [em Portugal, no passado mês de junho], já tocou com a gente no Brasil [em 2019], eu não entendo… A gente ficou sem entender porque é que ela de repente… A gente teve um stress com ela, na apresentação dela no Brasil [em 2019], porque os Black Eyed Peas atrasaram a chegada do equipamento e ela não pôde passar som, o que é horrível, mas é verdade que o palco mundo tem uma hierarquia, o artista que toca por último tem prioridade. Então ali, de facto, ela não pôde fazer a passagem de som e isso é muito ruim para o artista. Só que ela ficou muito mal-humorada, na altura discutiu com o nosso CEO, mas depois fez um showzão, beleza. Depois, já tinha tocado aqui [no Rock in Rio Lisboa, em 2018] com a gente, tocou agora de novo e eu achei que essa história já estava passada. No dia seguinte ao festival [a edição de 2022 do Rock in Rio Brasil terminou no dia 11 de setembro], que foi um sucesso incrível, ela demonstrou a irritação dela… A gente não sabe de onde vem, por que é que vem, se ainda é reflexo daquilo…
E se decidir mudar de ideias, poderá voltar?
Claro que sim, bicho! Não tenho nada contra, muito pelo contrário, ela é um fenómeno.