A situação na linha da frente russa está complicada, mas em casa não está muito mais fácil. A batalha por Kherson parece prestes a começar, com a administração local imposta pelo Kremlin a retirar até 60 mil civis dos arredores da cidade, face ao avanço ucraniano.
Entretanto, Vladimir Putin declarou lei marcial nas regiões ucranianas anexadas. Permitirá aos russos controlá-las melhor, impondo recolher obrigatório, limitando o movimento e criando forças de defesa territorial, uma espécie de milícia local. Na prática, isso pode permitir ao Kremlin recrutar ucranianos à força – há relatos que tal já sucedida, mas agora poderia fazê-lo abertamente.
Visto da Rússia, onde cresce o descontentamento com a mobilização militar parcial, haverá quem veja com bons olhos a lei marcial declarada em Kherson, Zaporínjia, Donetsk e Lugansk. Desde o início da invasão que a narrativa do Kremlin é que tropas russas estão a morrer para proteger ucranianos russófonos. Agora, parte da mensagem que transmite com a lei marcial é que terão de ser estes a morrerem para se defender.
É algo crucial para Putin. Os conflitos étnicos dentro da Federação tornam-se cada vez mais notórios, até sangrentos, como se viu este sábado, num campo de treino em Belgorod, a meros 80km de Kharkiv. Recrutas das republicas russa do Daguestão e da Adigueia, maioritariamente muçulmanas, queixaram-se que a guerra na Ucrânia não era sua, lia-se num relatório do Instituto para o Estudo da Guerra.
Ao que um comandante respondeu que a invasão é “guerra santa” e apelidando o profeta Maomé de “cobarde”. Recrutas tajiques não gostaram, abrindo fogo e matando pelo menos onze pessoas, após pedirem aos camaradas muçulmanos que se afastassem da linha de tiro.
Têm sido militares oriundos de minorias étnicas russas que sofrem o grosso das baixas, estando sobre-representados nas Forças Armadas à partida – dado que tendem a ser mais pobres, alistavam-se mais em busca de melhores condições de vida – e multiplicando-se as queixas de que são atirados para onde os combates são mais duros. Contudo, se a periferia da Rússia treme, o centro do poder também.
Se as elites russas sempre se degladiaram nos bastidores, agora atrevem-se a fazê-lo publicamente, com extremistas como o chefe dos mercenários da Wagner, Yevgeny Prigozhin, a juntar-se ao líder checheno, Ramzan Kadyrov, para criticar generais e até o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, amigo próximo do Presidente, exigindo uma escalada do conflito.
“As elites tornam-se arrojadas e mais decisivas”, salientou a Foreign Policy. Enquanto Putin, em tempos quase omnipotente na Rússia, “foi forçado a submeter-se a correntes que não controla”, escolhendo para comandante na Ucrânia Sergei Surovikin, o general favorito de Prigozhin e Kadyrov.
Contudo, o próprio Surovikin admitiu que “o inimigo tenta continuamente atacar as posições das tropas russas”.
Explicando, esta quarta-feira, perante as câmaras de televisão, que “ações e planos adicionais relacionados com a cidade de Kherson dependerão do desenvolvimento da situação militar e tática, que não é fácil”.
À beira do horror do combate urbano Surovikin começou por bombardear infraestruturas civis, devastando em particular a rede elétrica, mas a crueldade não bastou para mudar o cenário na linha da frente. O seu segundo ato foi preparar a defesa de Kherson, gerindo a retirada de cerca de dez mil civis por dia, que se iniciou esta quarta-feira.
Já as autoridades ucranianas, que anunciaram esperar entrar em Kherson talvez ainda esta semana, apontam que as imagens de multidões vestidas à civil a atravessar o rio Dnipro podem não ser mais do que de um disfarce para uma retirada da cidade. Tendo apelado a que os seus cidadãos não acatem as ordens do Kremlin para fugir.
“Eles querem levar o nosso povo como refém e usá-los como escudos humanos”, acusou Yaroslav Yanushevich, responsável pela administração militar do oblast de Kherson, no Telegram. “Não permitam que o império malévolo se esconda atrás de vocês, dos vossos pais, dos vossos filhos”, apelou.