A Arquidiocese de Braga está a reunir testemunhos de vítimas e outros tipos de provas relacionadas com o cónego Fernando Sousa e Silva, que durante décadas terá abusado, no confessionário, de dezenas de crianças de Joane, uma aldeia do distrito de Vila Nova de Famalicão.
Essas provas serão incluídas num relatório a elaborar pela Comissão de Proteção de Crianças e, uma vez concluído, será enviado ao arcebispo de Braga que decidirá se o caso avança ou não para o tribunal eclesiástico e se o Vaticano será notificado.
Denúncias enviadas ao arcebispo já vêm de 2003
Os alegados abusos, como confirmam documentos a que o nosso jornal teve acesso, têm sido denunciados pelo menos desde 2003, mas D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga entre 1999 e 2021, foi ignorando os alertas.
Uma das denúncias foi feita por um cidadão de Joane, Custódio Silva, formado em Direito, e com uma longa passagem pelo seminário de onde saiu já noviço. Na vasta correspondência trocada com D. Jorge Ortiga, confirma-se que aquele informava o clérigo dos abusos com menores praticados pelo cónego Fernando.
O bispo, aparentemente, mostrara a sua abertura para o assunto mas com uma condição: «Necessitamos de elementos verdadeiramente objetivos».
E Custódio tratou de os arranjar. A 8 de maio de 2010 seguia para a arquidiocese de Braga uma missiva onde anexara uma carta de uma das vítimas que lhe pedira que a fizesse chegar ao então arcebispo para que este afastasse o sacerdote em causa. O relato, desta vez de uma rapariga, era quase uma cópia dos anteriores, mas chegava com um pedido que era mais um prenúncio: «Espero piamente que o Sr. Bispo possa tomar alguma atitude em relação a este referido senhor… Pois se não o fizer a nossa igreja vai continuar em decadência e com falta de jovens pois o Sr. Padre Fernando insiste em afastar-nos do bem e da própria igreja».
Só em 2019, perante uma nova denúncia e tendo já em vigor as novas orientações do Papa Francisco, é que o caso acabou julgado. Com um histórico de ocultações, D. José Ortiga salta as normas eclesiásticas, forma um tribunal ad hoc e despacha o assunto para o Vaticano sem ouvir o cónego que, por decisão da Santa Sé, foi então proibido de ministrar missa e fazer confissões.
Manteve-se, porém, como padre da diocese de Braga.
Investigação do Nascer do SOL acelera mudança de posição
Foi só depois de uma investigação do Nascer do SOL, publicada a 17 de setembro passado, que o atual arcebispo de Braga, D. José Cordeiro, se deslocou à aldeia e ali pediu desculpa às vítimas, tendo acelerado o processo que pode levar agora à reabertura do caso.
De imediato, a Comissão de Proteção de Crianças, Jovens e Pessoas Vulneráveis da Arquidiocese de Braga organizou um grupo para ouvir em exclusivo as vítimas do cónego Fernando. Desconfiadas da súbita atenção por parte da Igreja, as pessoas inicialmente resistiram. Mas as reações públicas do cónego, veiculadas em alguns órgãos de comunicação social – em que não só negava a versão das vítimas como lhes exigia que se retratassem –, fizeram com que o dique da indignação transbordasse de novo.
Manuel Cunha, uma das vítimas ouvidas pelo Nascer do SOL – e que, tal como outras, denunciou de seguida a sua história à Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, liderada por Pedro Strecht –, não perdeu um segundo e enviou um e-mail à Comissão da Arquidiocese de Braga.
Aí começa por relembrar as declarações do cónego Fernando a alguns jornais: «No que foi publicado nesses órgãos de comunicação, era referido um depoimento do referido cónego em que ele afirmava: ‘Nunca confessei ninguém podendo ter contactos físicos com as pessoas, sempre estive fechado no confessionário e as pessoas estavam do lado de fora e separadas pelo crivo’».
Com a fúria das recordações, Manuel Cunha acusa: «É mentira! Durante décadas, o padre Fernando ‘confessava’ crianças com elas dentro do confessionário e com a cortina tapada. Nunca confessou uma criança estando separados pelo tal ‘crivo’. Também é verdade que muitas vezes confessava dentro da sacristia, estando apenas o ‘confessor’ e o ‘confessado’ nesse local».
Comissão da Arquidiocese ouve testemunhas dos 2 lados
A comissão da Arquidiocese também não perdeu tempo e já ouviu José Cunha. E, tal como num processo judicial, a comissão não ignora o respeito pela presunção de inocência e também está a ouvir testemunhas abonatórias do cónego.
Recorde-se que, nos testemunhos recolhidos pelo Nascer do SOL, os relatos das vítimas eram muito semelhantes: o sacerdote obrigava as crianças a entrarem no confessionário, a ajoelhar-se entre as suas pernas, enquanto lhes fazia perguntas íntimas do foro sexual e as tocava.
A aguardar também o relatório final da comissão está outro caso que o Nascer do Sol também noticiou e que a comissão enviou para a Polícia Judiciária de Braga. Trata-se de uma denúncia feita presencialmente em 2019 por Olga (nome fictício) a D. Jorge Ortiga, referente aos seus filhos menores e a um sacerdote da zona.
Mas também aqui, mais uma vez, o arcebispo nada fez. Só três anos depois, a dias de ser substituído por D. José Cordeiro, apercebendo-se de que iria haver mudanças, chamou a denunciante para lhe fazer um estranho pedido: «Queria que eu dissesse, no caso de alguém me questionar, que sempre tinha tido o seu apoio».
E foi o seu sucessor que enviou o caso para a PJ de Braga que, uma vez que os factos ainda não estão prescritos, o está a investigar.