A arte contemporânea não seria tão instigante se não gravitasse em torno de um elemento enigmático. Mas, sempre que a incerteza assume um papel central, e é até um aspecto decisivo do desafio que determinado fenómeno nos lança, logo se abre margem para todo o tipo perversões e logros. De facto, a vida é de uma simplicidade quase brutal, como nos lembra Borges, mas se todos estão conscientes de que no seu grémio particular ou congregação abundam a superstição e as imposturas, é estranho como provamos a nossa ingenuidade numa crença quase cega em relação àqueles princípios e leis que nos revelam o universo. É importante introduzir a incerteza, devolver ao caos o seu protagonismo e ânimo, ir corroendo essa tentação que faz da nossa uma espécie que cede tão facilmente à credulidade. E a recente descoberta de que um quadro do pintor holandês Piet Mondrian poderá ter passado os últimos 77 anos de cabeça para baixo no museu alemão onde está exposto veio acicatar as vozes daqueles que não se cansam de denunciar o logro da arte contemporânea.
Mesmo depois da polémica, para já tem resistido essa espécie de lacuna amaldiçoada numa peça inacabada do pintor com o título: “New York I”. Trata-se de uma tela cujo relevo surge das camadas de linhas cruzadas de fita adesiva vermelha, azul, amarela e preta. E a prova de que o quadro terá sido pendurado de forma incorrecta é uma fotografia que foi tirada no estúdio de Mondrian na década de 1940, pouco antes da sua morte, e ainda da posição de um outro quadro do mesmo ciclo, que está exposto no museu de Beauborg, em Paris. Contudo, e apesar de alguns especialistas terem assumido de forma peremptória este erro que persistirá há décadas na forma como o quadro tem sido apresentado ao público, outros disputam essa asserção, especialmente por se tratar de uma peça inacabada e que o artista nem chegou a assinar. De resto, sabe-se que não era invulgar Mondrian virar os seus quadros quando trabalhava. Mas o facto é que, assim que a notícia se espalhou, desencadeou-se aquele regime da resmunguice exaltada dos que não se cansam de denunciar como, no mundo da arte contemporânea, os agentes não passam de um bando de intrujões e vigaristas mais ou menos hábeis que têm sabido encher os bolsos com o modelo especulativo que engoliu a arte contemporânea, sendo indesmentível que o principal objectivo dos museus é obter a confiança do público e valorizar as suas colecções, de forma não muito diferente do que fazem as instituições de crédito ou financeiras, que, de resto, estão metidas até ao pescoço no mundo da arte.
Como nos diz Gianfranco Sanguinetti num curioso panfleto com o título “O logro da arte contemporânea”, publicado pela editora Barco Bêbado, “a moral é hoje apenas o lucro, e a arte transformou-se na moral”. Este autor nota que já nem é necessário que o artista seja admirado, e nem importa que revele talento, nem se chega muitas vezes a perceber se há alguma criatividade ou originalidade na sua produção, bastando que se torne conhecido no mercado, que conquiste um espaço e veja as suas peças circularem de tal modo que vejam o seu valor aumentar, e isto porque o que atrai a cobiça é essa ideia do valor de mercado, que, no entender de Sanguinetti, é tudo aquilo que “o vulgo” entende a respeito da arte. Num certo sentido, o logro é reforçado por um público que colabora e gosta até de visitar os museus para sinalizar a sua participação naquele regime cosmopolita de recreação, forjando a aparência de um certo gozo dos valores propostos, ao mesmo tempo que se isenta de qualquer apreciação mais firme, desobrigando-se de emitir um juízo. E isto é de tal modo assim que a maioria das pessoas que visitam museus ficariam embaraçadas ou até iradas se lhes fosse pedido que tentassem transformar a sua deambulação num discurso minimamente coerente e de apreciação pelas obras em exposição, sendo quase certo que a maioria reprovaria no esforço de não tornar evidente a sua ignorância e a falta de instrução em relação àquilo que tem diante de si.
Sanguinetti define de forma espantosamente clara e, ao mesmo tempo, dilacerante este logro da arte contemporânea, explicando que este consiste em fazer crer aos contemporâneos que a arte é aquilo que hoje se vem apresentando enquanto tal. “Já se sabe que o logro é um delito pouco castigado, pois os juristas consideram que quem o comete tem sempre um cúmplice naquele que é enganado, culpado de credulidade e, portanto, co-responsável.” Este é um momento de análise crucial, sendo uma crítica que consegue fazer-nos cócegas, fazer rir ao mesmo tempo que põe os dedos tão fundo na ferida que atira sobre a contemporaneidade uma suspeita de que será muito difícil esta libertar-se. Para Sanguinetti, no abuso do termo “arte”, nos sinais de uma operação de falsificação sem fim à vista, confrontamo-nos com um exame post-mortem dos delírios da nossa época, que revelam como esta é “essencialmente uma tola crédula, além de ignorante”, e como se lhe pode pôr à mesa, todos os dias, mil alimentos falsificados, rotulados como “arte”, e ela não deixará de se alimentar deles sem nunca protestar, do mesmo modo que “não protesta contra a neo-comida que se vende em todos os supermercados”.
Perante este regime, os espectadores (ou consumidores) são levados à condição de meros cúmplices, e ninguém parece muito interessado em discutir seriamente se uma determinada peça merece ou não ser considerada arte nem, muito menos, se um quadro famoso está ou não de cabeça para baixo. Mas o facto é que o possível erro na forma como o quadro de Mondrian está exposto há décadas no museu Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen K20, em Düsseldorf, motivou um inesperado dilúvio de manchetes quanto à arte abstracta do século passado.
Ora, esta controvérsia envolvendo um Mondrian talvez tenha assumido um inusitado destaque por surgir num momento particularmente conturbado na vida dos museus, e na sequência de outras controvérsias relacionadas com o abuso a que as obras de arte se vêem sujeitas com o fito de chamar a atenção do público para causas que, à primeira vista, nem parecem ter relação com o mundo da arte. Mas, uma vez mais, as aparências iludem, e se esquadrões de activistas climáticos se aperceberam de que nenhuma das suas acções de protesto conseguiu o mesmo efeito de disrupção mediática do que as que têm como alvo uma obra de arte nalgum desses grandes museus, é porque, de facto, parecem ter tocado o calcanhar de Aquiles ou, pelo menos, um nervo mais sensível na trama dos valores que excitam o temor do público.
Num meio como o nosso, que se basta com o reaccionarismo primário dos comentadores, uma classe já de si tão pouco diversa e em que um bando bastante restrito se reveza há décadas entre as colunas de opinião na imprensa e os programas televisivos onde mesmo a tensão ideológica entre a esquerda e a direita se subsumem à variação entre palhaços mais ricos ou mais pobres, com uma excepção, o tema não foi alvo de grande análise. Houve margem, contudo, para as típicas admoestações daqueles que parecem sempre mais empenhados na prescrição de um certo regime de etiqueta, não desperdiçando nenhuma oportunidade de tratar como parvos todos os que manifestam uma preocupação que raia o desespero em relação a uma crise que a comunidade científica há muito vem sinalizando como o grande desafio existencial dos nossos dias. Mas já é hábito que quando alguém grita fogo, surjam de imediato aqueles que vêm lembrar que isso não são modos de uma pessoa se ver dominada por uma constatação terrível.
“No nosso país/ tenho às vezes a impressão/ de que há muito tempo/ soou o alarme/ e todos julgaram/ que era apenas/ o som dos sinos ao domingo”, lê-se num poema de Franz Hohler, que descreve na perfeição o “sentimento” geral perante a placidez dessas beatas que, fingindo devolver um certo reflexo da nossa perplexidade face ao nosso tempo, apenas neutralizam qualquer reacção autêntica. No fundo, para a maioria dos nossos comentadores, parece ser menos importante que se imponha à mesa a discussão de um assunto que pode arruinar a família do que garantir que ninguém perde a compostura e vai ao ponto de pôr os cotovelos sobre a mesa. Só Rogério Casanova, na sua crónica no Público, se deteve num exame mais demorado dessa “relação de causa e efeito [que] permitiu à danificação de obras de arte ser integrada no arsenal do protesto político”.
O seu texto não pode ser resumido sem que se perca alguma coisa de um esforço sério para dissipar a ingenuidade e introduzir alguma subtileza num debate bastante complexo, e o crítico literário remete-nos, assim, para antecedentes bastante expressivos, como o movimento sufragista inglês que, “depois de uma frustrante década de petições e marchas bem-comportadas, organizou uma escalada de violência: nos primeiros meses de 1914, incendiaram três castelos escoceses e dezenas de mansões, colocaram bombas em estações ferroviárias, recintos desportivos e igrejas (incluindo a Catedral de Westminster), e espatifaram centenas de montras de rua. Mas nenhum outro protesto teve a repercussão mediática dos ataques a quadros, especialmente a mutilação da Vénus de Velázquez na National Gallery.”
Quando um bando de activistas do clima lançaram sopas de lata e tinta amarela sobre os Girassóis de Vincent van Gogh, o qual nunca esteve em risco, pois estava coberto por um vidro, com vista a enfatizarem numa clara encenação que procurou elevar o elemento dramático sem, no entanto, causar um sério dano, não faltaram os entendidos na dissecação da imensa carcaça mediática, que vieram condenar as jovens activistas garantindo que a sua iniciativa era “contraproducente” e até “estúpida”. A larga maioria passou até ao lado do facto de aquele quadro testemunhar ele mesmo o género de fervor emocional que os activistas se propunham estimular. Afinal, como notou Adam Gopnik num artigo na The New Yorker (onde não deixa de reprovar o protesto), “nos 40 mil anos desde que a humanidade tem habitado o planeta, nenhum homem como van Gogh se mostrou inspirado de forma tão compassiva, ao ponto de raiar o êxtase, no confronto com a natureza, e nenhum outro provou também ser um companheiro tão humilde perante as dificuldades que enfrentam as pessoas comuns nem tão inclinado para as enobrecer através da arte”.
Gopnik lembra até como Van Gogh foi uma influência decisiva para que Mondrian viesse a dedicar-se à pintura, e, a respeito da polémica que envolve agora o quadro de Mondrian, diz-nos que a própria incerteza em relação à posição definitiva em que a peça deve ser exposta toca precisamente naquilo que mais importa compreender na relação com uma obra como aquela. “Se eu virar o quadro ao contrário, arrisco-me a destruí-lo”, terá comentado o curador responsável pela exposição que assinalará os 150 anos do nascimento do artista. “E pode ser que nem haja uma orientação certa e uma errada…”, adiantava numa entrevista a uma publicação alemã. Ora, no entender de Gopnik o papel da arte abstracta passa por criar esta indefinição, interrogar as premissas sem deixar de cativar a audiência. Ele defende que o objectivo de Mondrian não era criar obras-primas, ainda que isso tenha acabado por acontecer, mas antes provocar uma suspensão na forma como ajuizamos as coisas. “Ele reduziu os usos e procedimentos da pintura, as tantas questões à volta do como e por que meios, a um porquê que deve residir na base de tudo”, insiste Gopnik.
Mas quando o crítico da revista norte-americana lamenta que os activistas do clima tenham decidido invadir os museus para interrogar a nossa sociedade sobre as suas prioridades, e até sobre a hipocrisia que leva a que quadros como os Girassóis atinjam valores delirantes nos leilões e sejam pendurados nos museus e sujeitos a uma forma de adoração que tantas vezes os esteriliza, nesse momento parece passar ao lado do elemento de desespero que faz com que um artista aprenda a traduzir o seu grito num exercício de contemplação que captura o eco e o prende para a eternidade. Não, certamente, para que este fique ao dispor dessa forma de prostituição que oferecem os museus, em que tudo se torna tão ambivalente que o quadro se vê destituído do seu grito e acaba sujeito ao tráfico próprio de meros activos financeiros. E isto a um ponto que tem levado tantos a denunciar o regime pernicioso do museu enquanto fábrica da desrealização, que permite elevar o kitsch à máxima potência e a retirar à arte e à cultura todo o efeito. Entre essas vozes, destaca-se a do crítico de arte francês Michel Leiris que não podia ter sido mais claro na denuncia desse regime: “Nada me parece assemelhar-se tanto a um bordel como um museu. Lá se encontra o mesmo aspecto equívoco e petrificado. Num, as Vénus, as Judites, as Susanas, as Junos, as Lucrécias, as Salomés e outras heroínas, em belas imagens imobilizadas; no outro, mulheres vivas, com os seus trajos tradicionais, com os seus gestos, a sua linguagem e os seus hábitos completamente estereotipados. Em qualquer destes lugares, estamos, de certa maneira, sob o signo da arqueologia; e se gostei durante muito tempo de bordéis é porque eles próprios têm que ver com a antiguidade, pela sua faceta de mercado de escravos e de prostituição ritual.”