O mundo árabe, fanático por futebol, celebra estar prestes a receber, pela primeira vez, o Campeonato do Mundo de Futebol, mas o resto do globo está mais apreensivo. O problema não são só as suspeitas de corrupção na escolha do Qatar como país anfitrião, os choques culturais ou as queixas de que os fãs só podem beber álcool numa mão cheia de espaços, a preços proibitivos, pagando 50 riais por caneca de cerveja Budweiser, quase 13 euros. Há receios de que esta monarquia absoluta espie os mais de 1,2 milhões de visitantes que deverá receber, teme-se pela segurança de adeptos LGBT+ num país onde a homossexualidade pode ser punida com pena de morte. E é difícil apreciar as imponentes infraestruturas que surgiram nos desertos do Qatar quando nos lembramos das condições atrozes vividas por quem as construiu. Não se sabe sequer o número oficial de migrantes que morreram ou ficaram feridos nos estaleiros, a trabalhar sob o calor abrasador do deserto, muitas vezes com poucas condições. Mas a Amnistia Internacional estimou o ano passado que tenham perecido mais de 6500 pessoas.
Mas o que já passou, passou, implorou Gianni Infantino, presidente da FIFA. “Por favor, agora vamos focar-nos no futebol”, pediu, em declarações à Sky News. Contudo, é duvidoso que tenha sorte. Aliás, ainda na quinta-feira se soube que nenhum alto dirigente da União Europeia deverá comparecer na Copa do Mundo, dadas as criticas aos abusos de direitos humanos no Qatar avançou o EUObserver. Já o ministro dos Negócios Estrangeiros do reino, o xeique Mohammed bin Abdulrahman Al-Thani, tem-se mostrado irritado e até pouco diplomático. “Há muita hipocrisia nestes ataques, que ignoram tudo o que conseguimos”, acusara, em declarações à Reuters.
Se o ministro dos Negócios Estrangeiros qatari tem tido dificuldade em aceitar críticas, talvez seja por não estar habituado a isso. À semelhança de tanto outros membros do Executivo do reino, faz parte do todo-poderoso clã dos al-Thani, a família governante desde o século XIX. Não só controlam a política mas também a economia, dado que “o cenário empresarial nos seus mais altos escalões é um grupo extremamente fechado, dominado pelos al-Thani”, frisou Priya D’Souza, consultora de relações públicas especializada no reino, num guia sobre como navegar as redes de poder qataris, notando que 82% das empresas aqui listadas na bolsa têm pelo menos um al-Thani no Conselho de Administração.
Quando se criticam os abusos de direitos humanos no Qatar, é sobretudo a este clã que se aponta o dedo. Em particular ao seu líder, Tamim bin Hamad Al-Thani, de 42 anos, que herdou do pai o estatuto de anfitrião do Campeonato do Mundo de 2022, ganho há mais de uma década. No rescaldo disso, o regime foi pressionado a fazer reformas nos direitos laborais dos migrantes, mas só acabou há dois anos o kafala, qualquer coisa como “apadrinhamento”, um sistema quase feudal que proibia trabalhadores de mudar de emprego sem autorização dos patrões, expondo-os a todo o tipo de abusos. Havendo na altura também um aumento do salário mínimo, que ainda assim pode ser equivalente a pouco mais de um euro por hora. Algo visto como um escândalo, dada a riqueza – muitas vezes ostentada de forma opulenta – que a elite qatari tem extraído de recursos como o gás natural e o petróleo.
As reformas laborais soavam bem no papel, mas uma lei vale de pouco se não houver fiscalização. O regime do emir “falhou em implementar e aplicar as reformas, permitindo a práticas abusivas ressurgir e revivendo os piores elementos do kafala”, sentenciou a Amnistia Internacional. Existem obstáculos burocráticos quase inultrapassáveis para mudar de emprego sem autorização do patrão, avaliou esta organização não-governamental, praticamente não há vistorias para evitar roubo de salários ou trabalhos forçados, as normas de segurança são vistas como opcionais. Continua a não haver qualquer direito à greve ou a formar sindicato no Qatar, tendo os patrões ainda o privilégio de revogar os vistos de residência de trabalhadores estrangeiros a seu bel-prazer.
Já o emir mostra-se até ofendido com quem se queixa. “Inicialmente, lidamos com o assunto de boa fé”, lamentou Tamim bin Hamad Al-Thani, no mês passado, num discurso perante as câmaras de televisão. Queixando-se de que a suposta difamação do Qatar “inclui fabricações e duplos padrões que são tão ferozes que infelizmente levou muitas pessoas a questionar os verdadeiros motivos por trás dessa campanha”. O seu ministro dos Negócios Estrangeiros seria ainda mais explícito umas semanas depois. Queixando-se numa entrevista ao Frankfurter Allgemeine Zeitung que a Europa acha que o Qatar “não está intelectualmente preparado para receber um Campeonato do Mundo”. E que isso soa “muito arrogante e muito racista”.
Mesmo que a Europa não esteja muito entusiasmada com este Mundial, os vizinhos do Qatar – que também não são propriamente conhecidos pelo respeito pelos direitos humanos – estão. A competição será “um marco histórico para os árabes”, elogiou Mohammed bin Rashid Al-Maktoum, vice-presidente dos Emirados Árabes Unidos (EAU) e governante do Dubai, citado pela Gulf News. O emir qatari bem precisa de estar nas boas graças das restantes monarquias do golfo, que mantiveram o seu reino sob bloqueio durante anos, acusando-o de incentivo ao terrorismo e – provavelmente ainda mais importante – de manter relações estreitas com o Irão, numa altura em que este trava uma espécie de Guerra Fria regional contra a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. No entanto, no que toca ao Campeonato do Mundo, “todas as nações e povos da região estão dedicados a apoiar o sucesso deste grande evento global”, assegurou Al-Maktoum.
Pérolas e petróleo
Não é por acaso que os controlo dos trabalhadores estrangeiros no Qatar é tão duro. Quando este país de xeiques ricos quer fazer surgir cidades no deserto, sempre teve de chamar gente de fora. Hoje estima-se que entre os cerca de 2,8 milhões de habitantes do Qatar pouco mais de 300 mil são de origem qatari, segundo o censo de 2017. Sobretudo indianos, nepaleses, filipinos ou paquistaneses, boa parte deles mal pagos e absolutamente indispensáveis para a sociedade qatari funcionar.
Sob a alçada dos al-Thani, o Qatar deixou de ser somente uma terra de beduínos e xeiques árabes que moravam em pequenas cidades na costa, subsistindo do comércio marítimo – graças à posição privilegiada desta península no Golfo Pérsico, uma das mais importantes artérias comerciais do planeta – e da pesca, retirando-se para tendas no deserto durante o inverno. Antes do petróleo, já a rápida subida do preço das pérolas, na viragem para o século XX, transformara o então protetorado britânico, antiga província otomana, que enriqueceu quando as pérolas se tornaram um artigo de luxo, ansiosamente desejado pela alta sociedade ocidental.
“A região sempre foi o palco de booms no comércio de matérias-primas”, explicou à Vox Natasha Iskander, professora de Políticas Públicas na Wagner School of Public Service, autora do livro Does Skill Make Us Human? Migrant Workers in 21st-Century Qatar and Beyond (Princeton University Press, 2021). E estes booms sempre foram restringidos pela disponibilidade de trabalhadores. Por isso levavam-se pessoas para lá, sob muitos diferentes sistemas, incluindo como escravos”, salientou. A apanha das pérolas era dura e perigosa, implicando estar horas na água, à torreira do sol. Os qataris não o queriam fazer, por isso iam buscar mão-de-obra à África Oriental, aquilo que é atualmente o Afeganistão ou o Irão. Quando o preço das pérolas caiu, tão rápido como subiu, com a invenção das pérolas de cultura, em 1919, foram deixados à sua sorte, numa catástrofe humanitária, enquanto a população do Qatar caía, chegando a atingir uns meros 16 mil habitantes na década de 1940. Foi aí que a produção de petróleo mudou o cenário, dando origem ao Qatar que conhecemos hoje, tornando-o um dos países mais ricos per capita e atraindo imigrantes.
“Com dinheiro suficiente pode-se fazer mel a partir de atum”, diz um provérbio qatari, e é mesmo isso que o emir procurou fazer com este Campeonato do Mundo. Sob o olhar da elite do reino, migrantes construíram arranha-céus, hotéis, estradas, sistemas de transporte público e estádios. Mas as condições em que o fizeram podem custar ao Qatar o soft power que queria obter com isso, havendo cada vez mais apelos ao boicote.
Já a situação dos direitos das mulheres e pessoas LGBT+ também causa preocupações. O regime qatari já prometeu não aplicar as suas regras contra estas comunidades de forma tão estrita no que toca aos fãs que vão assistir à competição. Mas é difícil ficar descansado face a comentários como os de Khalid Salman, antiga estrela da seleção do Qatar e embaixador da competição. “É haram”, resumiu, utilizando o termo “proíbido”, em árabe, para se referir à eventual visita de adeptos homossexuais ao seu país, numa entrevista à emissora alemã ZDF. “Por que é que é haram? Eu não sou um grande muçulmano, mas é haram, porque é um problema mental”, declarou Salman, causando enorme polémica.
Mesmo o autoritarismo do regime qatari ficou ainda mais evidente com a organização do Campeonato do Mundo, tendo autoridades alemãs, francesas e norueguesas apelado a que os adeptos não façam download de duas aplicações que o Qatar tem pedido aos visitantes que usem, dado estas poderem permitir que o regime as espiasse. Uma delas até permitia a recolha dos números para que cada telemóvel ligava, avançou o Politico.
Estes alertas extraordinários não só mostram que estamos perante uma das mais polémicas edições do Campeonato do Mundo, mas também uma rutura na relação entre o Qatar e os países europeus. Mais espantosa ainda, dado a União Europeia ainda estar mais dependente energeticamente do reino do que o costume, dado a invasão russa da Ucrânia ter forçado os europeus a comprar desesperadamente mais gás natural liquefeito (LNG, na sigla inglesa) aos qataris.